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Ponto de Fuga
A caveira da elite
Do combate violento à corrupção, "Tropa de Elite" se insinua pela vida privada, evitando todo clichê; é como uma polifonia coral: cada voz tem seu percurso, mas confere sentido às outras
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Scarface", filme de Brian
de Palma (1983), expõe os
mecanismos do tráfico
internacional de cocaína. Conta a trajetória de um chefão da
máfia que começou de baixo e
passou por todas as etapas. Indica, em níveis progressivos, as
articulações dessa grande rede
criminosa.
Brian de Palma retoma, atualizando e dilatando, o outro
"Scarface", de 1932, mítico, dirigido por Howard Hawks.
Há um paralelismo de situações. Brian de Palma fala da cocaína; Hawks das bebidas alcoólicas, já que sua trama se
passa nos tempos da Lei Seca
norte-americana.
"Tropa de Elite", dirigido por
José Padilha, inscreve-se nessa
linhagem.
Com, pelo menos, duas diferenças importantes. Primeiro,
seu eixo centra-se na polícia, e
não nos bandidos. Segundo, o
vetor vertical, conduzido por
um protagonista, é abandonado. O filme se espraia horizontalmente.
Enfrenta circunstâncias intrincadas no meio policial, graças a diversos personagens e situações. Seu objetivo não é alcançar a esfera dos manda-chuvas maiores, nacionais ou
internacionais, nem do lado da
lei nem do lado do crime.
Aqui e ali, surge alguma alusão a um oficial superior ou a
um deputado.
Do combate violento à corrupção, o filme insinua-se pela
vida privada, evitando todo clichê ou simplificação. Ao caracterizar ambientes complementares, festa de gente rica, aula
na faculdade, a convicção permanece.
"Tropa de Elite" é como uma
polifonia coral. Cada voz tem
seu percurso justo, individualizado, mas confere sentido às
outras vozes que cantam ao
mesmo tempo, sem nunca entrar em uníssono.
Modulação
Esse modo de filmar, expondo vários enfoques, dando humanidade, por vezes contraditória, à trama de relações humanas, tende a diminuir o maniqueísmo. Há, de início, os
bons e os maus policiais. Há a
classe média, acusada de consumir drogas e, assim, de ser a
verdadeira responsável pelo
tráfico.
Mas o bom soldado se transforma pouco a pouco num animal feroz.
Na última cena, ao assassinar
o líder dos criminosos, sua arma aponta, ameaçadora, para a
câmera, ou seja, para a própria
classe média que constitui a
platéia. A mensagem moralista
("ao usar drogas vocês, os ricos
inconseqüentes, estão matando meninos no morro") dissolve-se na fúria violenta.
Bemol
Uma passagem em "Scarface", de Brian de Palma, diz que,
de cada 10, apenas 1 carregamento contrabandeado de drogas é apreendido. Essa proporção pequena estaria prevista na
contabilidade dos traficantes.
No mundo inteiro, quem quiser consegue facilmente a maconha, o ecstasy, a cocaína que
desejar. Sinal de que o combate
está perdido de antemão.
Maior
Emana uma lição implícita
do "Scarface" de 1983 e do antigo, de 1932, quando são postos
lado a lado. A Lei Seca, nos
EUA, serviu apenas para que os
criminosos se organizassem e
se fortalecessem.
Em escala muito maior, a criminalização das drogas, hoje,
não faz outra coisa. Em "Tropa
de Elite", a voz "off" fala num
"sistema" para caracterizar as
relações de corrupção inerentes ao funcionamento policial.
As tropas de elite querem sair
desse sistema pela honra, pela
coragem, pela honestidade.
Elas conseguem apenas cair
num outro, muito maior, que as
ultrapassa. Um sistema cujas
determinantes estão fora da legalidade, mas que tem leis próprias indestrutíveis e impõe
uma guerra terrível, crônica,
com milhares de vítimas, diretas ou colaterais, e destinada
sempre ao fracasso.
jorgecoli@uol.com.br
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