São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007

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Materialismo UNIVERSITÁRIO

Adversário teórico de Roberto Schwarz, Luiz Costa Lima elogia, com restrições, coletânea sobre o autor de "Ao Vencedor as Batatas"

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Pelo livro que se resenha, Roberto Schwarz recebe uma apreciação que nenhum outro crítico brasileiro jamais conheceu.
Qualquer que seja o grau de divergência teórico-analítica que se tenha com o autor, há de reconhecer que é justa a sua homenagem.
Das três partes que compõem o livro, sou obrigado a tratar apenas da primeira -tão-só se ressalve que as contribuições de R. Kurz e R. Scholz não devem passar despercebidas a quem se interesse pelo horizonte aberto ao mundo contemporâneo.
O ensaio de Leopoldo Waizbort impõe-se em primeiro lugar, pois aborda uma questão central à obra de Schwarz: o legado de Lukács, Adorno e Auerbach. É certo que uma obra que ofereça a reaproximação daqueles três autores quanto a uma análise socioistórica das formas terá de ter alguma singularidade, se outra não fosse a de lidar com orientações tão diversas. Waizbort tem o mérito de acentuar que essa reaproximação não se cumpre mecanicamente.
Assim, referindo-se à leitura de "Iaiá Garcia" por Schwarz, assinala que, "no Machado da primeira fase, o princípio do decoro/paternalismo dá certa apresentação da sociedade brasileira, mas o faz preservando o estilo elevado".
Com isso, evitando os temas "baixos", Machado tanto se afastava da ênfase na vida popular, própria ao realismo privilegiado por Lukács, quanto do auerbachiano, com sua quebra da separação entre os estilos elevado e humilde.
A diferença, continua Waizbort, resultava da própria distinção da sociedade brasileira, onde "o decoro diz mais sobre a vida concreta dos homens que o papel determinante do dinheiro (como era o caso da Europa)", sendo pois também adequada a manutenção da separação dos estilos.
Já no Machado da maturidade, a diferença quanto a Lukács resulta de a apreensão realista da sociedade realizar-se com "os de cima", e não com "os de baixo".
Ao mesmo tempo, a mistura de estilos se cumpre, mas por motivo completamente diverso do apontado por Auerbach: em vez de influência do cristianismo contra a tradição greco-romana, ela decorre de que, nos termos do próprio Schwarz em "Ao Vencedor as Batatas", "a freqüentação alexandrina e mercurial de todos os estilos acaba sendo o nosso único estilo autêntico" .
Esses são momentos analíticos preciosos, pois mostram concretamente, não de modo apriorístico, a contribuição do homenageado ao entendimento de Machado.

A lamentar
Por isso mesmo é de lamentar que Waizbort não tenha estendido seu exame à comparação interna dos autores privilegiados; o que teria sido tanto mais necessário porque é sabido que a Lukács não só o marxismo de Adorno era detestável como descartável o que Auerbach entendia por realismo.
Adorno, de sua parte, não faria por menos; sua separação valorativa das obras do jovem Lukács, anteriores à sua "conversão", deveria deixar furioso o autor húngaro.
Já quanto a Auerbach, nada de explícito pode-se dizer, pois seu ceticismo irônico-melancólico o mantinha afastado de polêmicas com os contemporâneos (com a exceção do amigo-inimigo Spitzer e de seu antípoda, E.R. Curtius). Mas seu leitor reconhecerá a enorme reserva que deveria ter tanto de Adorno como de Lukács.
Na falta de um exame específico, talvez seja justo pensar em um deslocamento: Lukács, absoluto na obra de estréia, cede progressivamente o lugar ao marxismo "ocidental" de Adorno, embora com recaídas, presentes, por exemplo, no louvor ao "Cidade de Deus", de Paulo Lins. De todo modo, é inconteste que a mímesis é a categoria pela qual Adorno, Auerbach e Lukács são aproximados.
E aí a questão se torna mais acesa: o realismo sob constante metamorfose com que Auerbach opera era uma maneira refinada de manter a concepção da mímesis como "imitatio", que, de sua parte, era afirmada sem problemas pelo Lukács pós-conversão, enquanto a posição de Adorno se punha na antípoda de ambos. Como Schwarz se comporta diante da discórdia?

Ataque e resposta
Lamento que o exemplo mais direto me envolva pessoalmente. Silvia López cita a passagem do ensaio "Adequação Nacional e Originalidade Crítica": "A divisão imaginada por Luiz Costa Lima se poderia formular da maneira seguinte: de um lado, no partido do atraso, a mímese da realidade histórica, ausência de inquietação formal, redundância ideológica, ilusão da linguagem transparente, sem tração própria; de outro, o partido avançado, a produção literária do novo, a ruptura antimimética, a consciência de eficácia específica da linguagem, bem como o desligamento da antena referencial".
O artigo fora originalmente publicado na revista "Novos Estudos-Cebrap" nš 32 (março, 1992). Como o próprio Schwarz me abriu as páginas para que lhe respondesse, o fiz em seu número seguinte, sob a forma de um curto comentário.
Pareceu-me que seria um abuso fazê-lo de modo mais extenso porque já escrevera todo um livro a respeito da questão da mímesis e da necessidade de revisá-la ("Mímesis e Modernidade", 1980, reeditado em 2003 pela ed. Graal).
O argumento básico consistia em afirmar que, só quando confundida com a "imitatio", a mímesis supõe que a obra de qualidade tenha de ter um cunho realista. A mímesis por certo implica um relacionamento entre o social e a forma. Entendida como "imitatio", essa relação se torna entre termos desproporcionais: o social guarda o traço determinante, que se estabelecerá na forma da obra, cujo valor se comprova por essa reinstalação.
Como daí Schwarz extraíra a concepção que me atribui? A explicação plausível seria a de que não lera o livro e se deixara guiar por falsas pistas. Mas Schwarz republicaria seu artigo em "Seqüências Brasileiras" (Cia. das Letras, 1999), quando, nesse entretempo, eu já editara outro livro que desdobrava a questão da mímesis ("Vida e Mímesis", ed. 34, 1995). Era pouco verossímil que não tivesse tido a curiosidade de verificar o que diziam os dois livros.
A explicação havia então de ser outra.
De duas uma: ou Schwarz concluiu que minha busca em resgatar a mímesis de sua secular associação com a "imitatio" era descabida na prática, concordando com Lukács e afastando-se de Adorno -que já procurara aquele resgate- ou devemos levar a sério a advertência de Luís A. Fischer.
Embora Fischer seja um admirador de Schwarz, não deixa de apontar para o que chama de tendência à aporia, que "muitas vezes encerra e restringe o pensamento materialista da esquerda paulista e uspiana". A inclinação para a aporia poderia ser formulada noutros termos: a tendência autoritária de um grupo que interpreta toda discordância como manifestação de incompetência. Por isso mesmo é deplorável que a justa homenagem não seja mais rigorosamente analítica.


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .

UM CRÍTICO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO
Organização:
Maria Elisa Cevasco e Milton Ohata
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 59 (408 págs.)


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