São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cinema

Computação gráfica reproduz as emoções humanas com cada vez mais precisão e já substitui os atores reais em filmes como "Homem-Aranha 2" e "O Expresso Polar", que também estréia no Brasil no dia 26

DUBLÊS DIGITAIS

Gregory Huang
da "Technology Review"

Em cima de um trem elevado que atravessa a "downtown" [em Nova York] em alta velocidade, um mascarado usando roupa vermelha e azul está tendo problemas. Não apenas está combatendo um cientista lunático que tenta matá-lo com seus tentáculos robóticos como precisa salvar os passageiros do trem. Tudo isso é apenas parte do dia-a-dia normal do super-herói Peter Parker, também conhecido como Homem-Aranha, mas exige meses de trabalho para uma equipe de elite de gurus gráficos. A sequência de ação do megassucesso "Homem-Aranha 2" deslumbrou milhões de espectadores em todo o mundo. Olhe de perto para o vilão, Dr. Octopus (representado por Alfred Molina), e você o verá sorrindo e gritando como maníaco enquanto anda em cima e nas laterais do trem. Mais tarde na mesma cena, o Homem-Aranha (Tobey Maguire) perde a máscara ao brecar o trem com seu próprio corpo. Suas expressões faciais frenéticas convencem pela naturalidade aparente. Com todos os cortes rápidos entre imagens do super-herói e do vilão, o público provavelmente nem sequer desconfia de que os rostos e corpos que aparecem na tela boa parte do tempo não são reais: são imagens digitais criadas dentro de um computador na Sony Pictures Imageworks, em Culver City, na Califórnia.

Trem em movimento
"Já chegamos a um ponto em que podemos fazer tudo por computador, desde o vidro estilhaçado no trem até todos os prédios, os trilhos e as pessoas", diz Mark Sagar, supervisor gráfico de "Homem-Aranha 2" e especialista da Imageworks na área de rostos humanos digitais. Ele aponta para a seqüência do trem, que se desenrola na tela de seu computador. "Observe o que a câmera faz. Aqui ela está acompanhando o trem em movimento pela lateral, depois ela está por baixo dos atores, em seguida na frente deles, depois faz uma tomada ampla. Como seria possível fazer isso com uma câmera real?" Mas os rostos digitais das pessoas são a última e mais importante peça desse quebra-cabeça. No passado, inserir imagens de atores reais numa cena digital exigia câmeras reais, trabalho difícil de dublês e muito mais para conseguir uma correspondência visual entre as imagens reais e virtuais. A capacidade de fazer tudo por computador, incluindo rostos humanos, abre uma gama enorme de possibilidades criativas. Rostos digitais fotorrealistas -ou seja, que podem ser confundidos com fotos de rostos reais em imagens paradas ou na tela grande- figuram entre as últimas fronteiras do trabalho de computação gráfica. Até recentemente, os rostos digitais, quando olhados de perto, pareciam falsos, razão pela qual eram relegados a cortes rápidos e tomadas de pano de fundo. O problema é que somos extremamente exigentes quanto à aparência que devem ter rostos humanos; é muito mais fácil enganar pessoas com um dinossauro gerado por computador do que com um humano digital. Mas os avanços mais recentes na recriação de pele, iluminação de cenas digitais e análise de imagens de atores reais para fins de referência estão permitindo que artistas e programadores controlem a textura e o movimento de cada minúsculo grupo de pixels em um rosto computadorizado. A equipe da Sony espera que o público não consiga detectar a diferença entre Tobey Maguire e seu dublê digital. As apostas em jogo são imensas. Os efeitos digitais são um negócio de bilhões de dólares e que está crescendo rapidamente; hoje em dia o orçamento de um "blockbuster" qualquer chega facilmente a US$ 150 milhões, sendo que a metade disso vai para as empresas que criam efeitos especiais. "Homem-Aranha 2" é apenas um exemplo do uso crescente que Hollywood vem fazendo de pesquisas gráficas avançadas para criar atores digitais melhores, num trabalho que abrange desde dublês digitais de Neo e os muitos agentes Smith nos filmes "Matrix" até o personagem Gollum, da trilogia "O Senhor dos Anéis". A coisa já chegou a um ponto em que se fala, ainda em tom de brincadeira, da possibilidade de substituir atores por computadores (aliás, é justamente esse o argumento do filme "S1m0ne", de 2002). A Sony Pictures Imageworks, fundada em 1992 e que já contribuiu com 40 longas-metragens, está na vanguarda das empresas de efeitos especiais que concorrem para trabalhar com os grandes estúdios.

Horário nobre
A grande vantagem do uso de atores digitais não é a possibilidade de substituir atores vivos, mas a chance de criar cenas que levam o espectador a lugares onde nenhum ator ou câmera poderia ir. "É o fato de proporcionar mais flexibilidade aos atores e lhes permitir fazer ações que não poderiam com dublês humanos", explica Scott Stokdyk, o supervisor de efeitos visuais da Imageworks e encarregado da série "Homem-Aranha".
"No passado, os diretores e atores basicamente manipulavam diferentes ações rápidas e ângulos distintos da câmera", diz. "Hoje, esse tipo de limitação não existe mais." Hoje os diretores podem acompanhar atores sintéticos voando em volta de arranha-céus e esquivando-se de balas em "slow motion" [câmera lenta]. Os atores podem ser digitalmente rejuvenescidos ou envelhecidos, sem precisarem passar horas sendo maquiados. Existe a possibilidade de ressuscitar digitalmente atores e atrizes de cinema mortos há muito tempo.


As técnicas digitais devem levar a simulações de treinamento médico, a games e a filmes interativos mais realistas


E o cinema é apenas o começo. As técnicas de criação de humanos digitais estão levando ao avanço da fronteira maior dos gráficos e interfaces computadorizados. Esse trabalho pode levar ao surgimento de simulações de treinamento médico altamente realistas, avatares realistas para e-mail e bate-papos na internet e, em breve, personagens muito mais convincentes de games e filmes interativos. Segundo Mark Sagar, "a tecnologia está pronta para ser usada no horário nobre". Sagar sempre se sentiu dividido entre a arte e a ciência. Depois de concluir a faculdade, passou três anos viajando pelo mundo, desenhando retratos para ganhar a vida. Mas a atração da tecnologia o levou a voltar à universidade na Nova Zelândia, seu país de origem, para estudar engenharia. "Nunca imaginei que eu passaria anos de minha vida estudando o rosto humano", ele admite, sentado em sua sala na Imageworks, cercado por livros e papéis sobre percepção visual. De acordo com Sagar, a compreensão da ciência que existe por trás dos rostos humanos o ajuda a fazer com que a mensagem de um personagem digital apareça mais claramente na tela. Expressões como olhos tristonhos ou cenho franzido são indicativos do estado emocional da pessoa e fornecem pistas quanto a suas intenções. O caminho de Sagar até Hollywood se abriu quase por acaso. Em meados dos anos 1990, quando estudava na Universidade de Auckland e fazia seu pós-doutorado no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts], ele desenvolvia simulações computadorizadas do olho e rosto humanos para ajudar estudantes de medicina a aprenderem técnicas cirúrgicas. Suas simulações pareciam tão reais que um grupo de empreendedores "pontocom" o convenceu a co-fundar uma empresa de computação gráfica chamada LifeFX. A companhia comercializava softwares que podiam ser usados por setores diversos, desde cineastas até empresas na web, passando por provedores de e-mail, para gerar imagens fotorrealistas de pessoas. Em pouco tempo, Sagar se tornou uma das maiores autoridades no uso de rostos digitais no entretenimento. Em 1999, ele se mudou para Los Angeles para trabalhar com animações de rostos gerados por computador em filmes, incluindo uma do ator Jim Carrey. O pesquisador gráfico Paul Debevec, que fez nome criando ambientes virtuais e promovendo técnicas de iluminação digitais, assistiu aos filmes de Sagar numa conferência e ficou intrigado: nunca antes tinha visto rostos falsos tão convincentes, quando vistos de perto. "Foi esse o momento que me fez acreditar que um rosto computadorizado real viraria realidade nos cinco anos seguintes", diz Debevec, que hoje trabalha no Instituto de Tecnologias Criativas da Universidade do Sul da Califórnia. Os dois cientistas começaram a colaborar, usando as técnicas de iluminação de Debevec para criar os rostos digitais de Sagar -uma combinação que rapidamente os impeliu para a vanguarda de seu campo de trabalho. Acontece que, quando se simula um rosto, é extremamente importante acertar a iluminação. Diferentemente de simulações computadorizadas anteriores, que pareciam estranhas em contextos diferentes e tinham que ser ajustadas por tentativa e erro, os rostos criados por Sagar e Debevec podiam ser adaptados para adequar-se à iluminação de qualquer cena. Isso era possível porque eles eram criados com a ajuda de um grande banco de dados de rostos reais fotografados desde ângulos diferentes e iluminados por muitas combinações de luz distintas. Quando a LifeFX fechou suas portas, em 2002, a Imageworks contratou Sagar especificamente por sua perícia no trabalho com rostos. Sagar imediatamente começou a trabalhar no teste das novas técnicas num longa-metragem comercial, "Homem-Aranha 2". As cenas de ação no filme exigiam simulações detalhadas e expressivas dos rostos de atores conhecidos -um problema especialmente difícil, segundo Sagar. Não apenas o público facilmente rejeita rostos humanos artificiais de modo geral como se mostra especialmente sensível a rostos que reconhece; qualquer discrepância entre digital e real poderia ser detectada como falsa. Para que as simulações pudessem funcionar, os pesquisadores precisavam de muitas imagens de referência dos atores reais, sob condições de iluminação diferentes. Assim, Tobey Maguire e Alfred Molina passaram um dia cada um no laboratório de Debevec. Sob a supervisão do programador de pesquisas Tim Hawkins, sentaram-se num aparelho especial conhecido como "palco de luz", enquanto quatro máquinas fotográficas faziam centenas de imagens de seus rostos e cabeças fazendo uma série de expressões e iluminados desde todos os ângulos possíveis. Foram feitos moldes em gesso e a laser de seus rostos e suas cabeças, para que modelos digitais tridimensionais em alta dimensão de suas imagens pudessem ser construídos no computador.

Atores sintéticos
Na Imageworks, Sagar e sua equipe criaram softwares de uso fácil para que dezenas de artistas pudessem utilizar os gigabytes de dados de imagens sem se atrapalharem com detalhes técnicos. Para fazer a seqüência do trem ficar com a aparência certa, por exemplo, o software de Sagar combinou imagens da criação de Debevec em "composites" que correspondiam à iluminação real no set de filmagens, depois transferiu os "composites" para modelos computadorizados tridimensionais dos atores. Para fazer os rostos se moverem, os animadores manipularam os modelos quadro por quadro, usando imagens paradas e em vídeo existentes dos atores como guia aproximado. O software calculava modificações velozes baseadas na maneira como os rostos dos modelos se deformavam e iluminava a pele digital de acordo com elas.
O resultado são atores sintéticos que se parecem com Maguire e Molina (entremeados com cenas dos atores de carne e osso) voando pelo ar, dando a volta em arranha-céus, passando sobre trens e debaixo d'água, sem, em nenhum momento, deixar de mostrar suas emoções.
A Imageworks é um exemplo perfeito de como as empresas de efeitos estão integrando novas pesquisas à sua produção mais rapidamente do que faziam alguns anos atrás (o público pode gostar do que tem visto nos cinemas recentemente, mas a tecnologia gráfica fundamental usada no cinema não avançou muito nos anos 1990). "Até agora, havia sempre um descompasso temporal muito grande. Alguma coisa era criada, e então esperávamos dez anos para uma empresa de software comercializar essa coisa", diz J.P. Lewis, especialista em gráficos e animação no laboratório de gráficos de computador e tecnologia imersiva da Universidade do Sul da Califórnia. "Acho que hoje as empresas têm mais consciência das pesquisas e tendem a aproveitá-las em menos tempo." Apesar dos milhões de dólares gastos para resolver o problema, os rostos humanos digitais ainda têm muito a avançar. O que ainda falta ser feito pode parecer secundário -fazer os movimentos oculares parecerem menos robóticos, captar mudanças no fluxo sangüíneo para fazer os rostos corarem, conseguir que a pele se enrugue da maneira certa durante um sorriso-, mas são vários problemas que se somam. "Os 20% que faltam podem levar 80% de nosso tempo para serem resolvidos -mas não há dúvida de que só nos faltam esses 20%", diz Darin Grant, diretor de tecnologia na Digital Domain, de Venice, na Califórnia, que criou as animações de personagens para "Eu, Robô". No final, é o público comercial quem vai decidir o valor desses dublês digitais. "O teste maior do nosso trabalho é como ele aparece na tela e como se traduz na produção", diz Grant. Seu colega Brad Parker, diretor da Digital Domain, afirma que os humanos digitais serão cada vez mais úteis para os cineastas -e também para a comunidade gráfica. Ainda não se sabe exatamente porque o problema é tão difícil, ou seja, exatamente o que nossos olhos detectam como estando errado num humano digital. Mas os pesquisadores gráficos Lewis e Ulrich Newmann, da Universidade do Sul da Califórnia, estão tentando descobrir. Em experimentos recentes, seu grupo mostrou imagens de rostos reais e digitais a voluntários para ver se estes detectariam a diferença entre eles.

O outro grande mercado
Os resultados foram marcantes -e frustrantes. "Passamos um ano trabalhando nesses rostos, mas não enganamos as pessoas nem por um segundo", conta Lewis. Ele prevê que seu trabalho leve à criação de modelos estatísticos do comportamento de rostos humanos reais, modelos esses que, por sua vez, resultarão em ferramentas de software que artistas possam usar para fazer personagens mover os olhos ou mudar de expressão de outras maneiras sutis que podem ser cruciais para sua verossimilhança. E os avanços não vão se restringir ao cinema. As mesmas ferramentas de simulação gráfica que cineastas estão começando a dominar também vão ajudar a mover o próximo grande mercado para rostos digitais: os videogames. Os games de hoje ostentam criaturas e cenários deslumbrantes, mas seus personagens reais nem sequer se aproximam do fotorrealismo. Simplesmente não é viável programar cada ângulo e expressão que possa surgir durante um jogo interativo de múltiplos níveis. É aí que entra George Borshukov. Cientista da computação que desenhou humanos digitais para os filmes "Matrix" (os agentes Smith em "Matrix Reloaded" e "Matrix Revolutions" são obra de sua equipe), ele hoje aplica a tecnologia de rostos aos games. Ex-supervisor de tecnologia na ESC Entertainment, de Alameda, na Califórnia, Borshukov recentemente se transferiu para a empresa de videogames Electronic Arts, de Redwood City, também na Califórnia. Ele diz que a próxima geração de hardware para games vai chegar perto do exibir rostos fotorrealistas em tempo real. Mas, para que isso possa acontecer, serão necessários outros avanços, aproximações e compressões de dados. O problema é que, com os games, tudo precisa acontecer na hora. Mesmo assim, ainda são necessárias algumas horas para criar um único quadro dos melhores rostos digitais de hoje. É viável quando se tem meses para criar as cenas, como acontece num filme. Mas num jogo ou filme interativo, a imagem específica pedida pode não existir até ser pedida pelo usuário. Para viabilizar tudo isso em games serão necessários softwares que sejam milhares de vezes mais velozes do que os atuais. Os especialistas dizem que, dentro de cinco anos, um híbrido de game e filme pode permitir que espectadores/jogadores desenhem e dirijam seus próprios filmes e até mesmo se incluam na ação. Primeiramente, se poderá "escolher o elenco" de um filme, visualizando fotos de pessoas reais -por exemplo, do próprio diretor e seus amigos- e usando softwares para criar modelos tridimensionais fotorreais dessas pessoas. Em seguida, em tempo real, será possível dirigir a ação do filme com um controlador ou teclado seguro na mão. Para Borshukov, "o verdadeiro futuro está no entretenimento interativo". De volta à Imageworks, Mark Sagar está cercado de atividade frenética. Os artistas trabalham intensivamente em outro projeto envolvendo atores digitais, "O Expresso Polar" [que estréia no Brasil no próximo dia 26], baseado no popular livro infantil homônimo. Mas Sagar, que não está diretamente envolvido no projeto, está encantado com o que o futuro promete: uma abordagem mais refinada dos rostos digitais, baseada em princípios científicos subjacentes. "Vejo o trabalho de hoje como etapa interina na qual ainda precisamos captar muitos dados", diz ele. "Com o tempo, tudo será feito com modelos matemáticos que traduzirão como as coisas se movem e como refletem a luz."

Modelos humanos
Sagar também visualiza aplicações muito mais amplas de humanos digitais em gráficos médicos, simulações de treinamento cooperativo para funcionários de serviços de emergência e interfaces humano-computador que podem ajudar usuários a comunicar-se com mais eficiência com máquinas e outras pessoas. Fora do setor do entretenimento, grandes organizações, como Microsoft e Honda, estão levando adiante pesquisas sobre gráficos avançados e criação de modelos humanos, incluindo softwares com os quais se podem criar personagens virtuais realistas e avatares digitais com base em apenas uma foto.
Algoritmos relacionados também poderiam ajudar computadores a reconhecer rostos e interpretar expressões, ou para fins de segurança ou para prever as necessidades de um usuário.
"Estamos vivendo numa era interessante, em que vamos começar a poder simular humanos até o último detalhe", diz Sagar. Sua afirmação encerra certa ironia. A partir do momento em que os humanos digitais passarem a ser criados com perfeição, será impossível distingui-los dos atores reais, e o público nem sequer se dará conta de que artistas e cientistas como Sagar mudaram o rosto do entretenimento e da sociedade.

Tradução de Clara Allain.


Texto Anterior: + quem são
Próximo Texto: + livros: Doces bárbaros
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.