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CINCO TÍTULOS RECÉM-LANÇADOS NO BRASIL
APONTAM PARA UM RENASCIMENTO DE TEXTOS DE INSPIRAÇÃO LIBERTÁRIA, SOBRETUDO ANARQUISTAS, E RECOLOCAM EM DISCUSSÃO SUA DURA POLÊMICA COM OS MARXISTAS
DOCES BÁRBAROS
Ricardo Antunes
especial para a Folha
Quando principiou o século 21?
Em 1989, com o fim da União Soviética e a proliferação da apologética de Fukuyama e seu imaginário "fim da história"? Ou em 11 de setembro de 2001, com a destruição das Torres Gêmeas, que aflorou a vulnerabilidade
do império que parecia tão inviolável? Ou
foi em 1994, com a explosão zapatista, no
mesmo momento em que um conhecido
(ex)intelectual mexicano afirmava que finalmente adentrávamos na era da "utopia
desarmada"? Ou ainda em 1999, com a célebre "batalha de Seattle", nos EUA, que
sacudiu o coração nacional de um mundo
já tão transnacional?
Se é difícil datar o início do novo milênio,
é possível perceber que ele se inicia sob a fibrilação amplificada do tecido social, sob a
pulsão acentuada das rebeldias estampadas nos novos (e velhos) movimentos sociais, mais ou menos vinculados às forças
sociais, ao trabalho, aflorando seus laços
relacionais com as questões étnicas, ecológicas, de gênero e geracionais.
Os exemplos são abundantes: a explosão
dos "piqueteros" na Argentina, a rebelião
social na Bolívia, a resistência popular na
Venezuela, as greves que sacodem os países do Norte, as confrontações operárias e
estudantis que assustam o mundo asiático,
a resistência incansável do povo palestino.
Se nossa geração cresceu aprendendo que
um dia o mundo seria espelhado no "american way of life", o que hoje se percebe, no
fulgor da reeleição protofascista de George
W. Bush, é o esparramar de um sentimento "antinorte-americano", tão global
quanto as mercadorias "made in USA".
Esse cenário estaria indicando um revival do anarquismo?
Se não estamos às vésperas de seu renascimento, estamos presenciando um salutar retorno da literatura de inspiração libertária, com toda a gama diferenciada
presente no seio desse movimento, que experimentou o mutualismo de [Pierre-Joseph] Proudhon [1809-1865], o anarquismo coletivista de [Mikhail] Bakunin [1814-1876], passando por [Peter] Kropotkin
[1842-1921], [Errico] Malatesta [1853-1932], pelo anarco-sindicalismo, dentre
outras variantes libertárias.
Veja-se o exemplo do livro "História do
Movimento Operário Revolucionário",
coletânea (originalmente publicada na
França em 2001) que percorre diversos
momentos da presença do sindicalismo
revolucionário, de que foram exemplo, no
início do século 20, a CGT francesa [Confédération Générale du Travail - Confederação Geral do Trabalho], a Fora argentina
[Federación Obrera Regional Argentina
-Federação Regional do Trabalho da Argentina], os IWW nos EUA [Industrial
Workers of the World -Trabalhadores Industriais do Mundo], a USI na Itália [Unione Sindicale Italiana - União Sindical Italiana] ou ainda os diferentes experimentos
ocorridos na Alemanha, Rússia, México,
Peru, Uruguai, Japão e Brasil.
A polêmica com os marxistas é (quase)
sempre áspera. Ilustre-se com o curioso
exemplo do Japão, que, na "epiderme", se
assemelha ao caso brasileiro: "Um certo
extremismo anarquista, mais ou menos
organizado, mas amiúde estéril, conduziu
militantes a juntarem-se ao PCJ [Partido
Comunista Japonês] quando da sua criação, em 1922, embora muitos deles se retirem, em seguida. Muito tarde; o mal está
feito. Os militantes anarquistas ou influenciados pelo anarquismo forneceram ao
primeiro PCJ sua base operária, sem a qual
ele só teria sido composto por intelectuais
mais ou menos desclassificados" (pág.
260). Sabemos que, no caso do PCB, nascido também em 1922, dentre seus nove delegados fundadores, somente um, o socialista Manuel Cendón, não tinha um passado anarco-sindicalismo. E contava com dois intelectuais humanistas nada "desclassificados", como Astrojildo Pereira e
Cristiano Cordeiro.
Os textos de Colombo (Argentina), Antonioli e Venza (Itália), F. Madri (Espanha), Portis (EUA), Pelletier (Japão), De
Jong (sobre a AIT), F. Mintz (Espanha),
Colson (França), Samis (Brasil), Lorry (indicação bibliográfica) oferecem um panorama amplo dos embates anarquistas.
Textos por certo engajados, olhando e refletindo sobre o passado, mas com uma
(talvez tênue e mesmo nostálgica) esperança de um "revival" anarquista.
Se a polêmica entre anarquistas e marxistas, particularmente em torno da Associação Internacional dos Trabalhadores,
criada em 1864, está presente ao longo de
vários capítulos do livro citado, ela retorna
em "Autoritarismo e Anarquismo", que
traz artigos escritos por Errico Malatesta.
Sabemos que a questão da abolição do Estado, a negação visceral da ação política, a
recusa peremptória dos partidos, a negação da luta no âmbito eleitoral e parlamentar, as reservas quanto às formas de organização (e seus riscos de centralização) são
os pontos nodais da controvérsia entre as
duas das mais importantes variantes do
movimento operário.
Em sua polêmica, Malatesta é direto: "Os
socialistas são autoritários, os anarquistas
são libertários" (pág. 97). Talvez valesse a
pena rememorar um belo artigo ("Marx/
Bakunin"), do saudoso [sociólogo] Maurício Tragtenberg [1929-1998], espírito herético e heterodoxo, ao afirmar a atualidade
do debate entre anarquistas e marxistas,
"desde que não se limitasse à oposição "a-histórica" entre autoritarismo e liberdade
somente". Fica o registro.
Melhor a derrota
Se Malatesta não é
exceção, na dura polêmica travada por
anarquistas e comunistas, seu senso de liberdade transparece neste forte libelo: "Se,
para vencer, tivéssemos de construir cadafalsos nas praças públicas, eu preferiria ser
derrotado" (pág. 51).
E esse é o tema de outro livreto libertário,
"Nada É Sagrado, Tudo Pode Ser Dito", do
belga Raoul Vaneigem, colaborador de
Guy Debord. Para Vaneigem "nada é sagrado. Toda pessoa tem o direito de exprimir e de professar, a título pessoal, qualquer opinião, qualquer ideologia, qualquer religião" (pág. 22).
Panfleto provocador, ataca os donos da
"mass media", guiados pelo "espírito de
comércio", cuja ação se converte freqüentemente numa "arte de ocultar o essencial
e manejar, por meio do choque emocional,
a insistência patética e os efeitos de repetição, territórios de sombras e de silêncios
em que rumores e suspeitas se confundem" (pág. 18).
Sendo um valor humano essencial, a liberdade de expressão deve contemplar o
direito de externar também o "desumano",
mesmo quando eivado de racismo, xenofobia, sadismo, discriminações sexistas etc.
(pág. 29). Mas a pergunta que fica é: o que
fazer quando a "liberdade total" permite
inclusive aos "nazi" vociferar as suas diatribes contra a humanidade? Aqui, Vaneigem
parece seguir numa vaga mais liberal que
libertária.
É na linhagem de um comunismo heterodoxo e libertário que se insere o livro de
Negri e Hardt, com o sugestivo título "O
Trabalho de Dioniso". O labor, o Estado, as
leis e o direito, o comunismo, o sujeito, a
multidão, o neoliberalismo, a violência, a
ontologia, o socialismo real, o reformismo
e o comunismo jurídicos -são várias as
temáticas presentes neste livro. Seu eixo
central: reiterar o papel fundante do trabalho vivo. Este não apenas nega a sua abstração no processo de valorização capitalista
mas faz aflorar a autovalorização do trabalho humano, "afirmação da própria vida"
e, enquanto tal, exercício de subjetividade,
"pré-requisito do comunismo".
Da fábrica à sociedade
Remetendo a
discussão do trabalho para a esfera do valor e da produção social da riqueza, os autores procuram compreender, então, a ampliação do seu espaço, seu salto da "fábrica
para a sociedade". A fábrica, acrescentam,
não pode mais ser concebida como o espaço paradigmático do trabalho, que se amplificou para toda a sociedade. O que sempre, segundo os autores, nos leva a um paradoxo: mesmo onde a teoria não enxerga
o trabalho, ele se tornou a substância comum, o "mundo torna-se trabalho".
É aí, então, que Hardt e Negri avançam
para sua exploração analítica mais ousada:
estamos sob a vigência do trabalho imaterial, "altamente científico, afetivo, cooperativo", cuja relação passa a ser fortemente
permeada pela função social junto da comunidade (pág. 29). Do que decorre que o
trabalho vivo, em sua modalidade contemporânea, "tende para a completa imaterialidade" (pág. 41).
Brotam algumas perguntas: 1) não estarão os autores cometendo risco similar
àquele presente no livro "Império" [ed. Record]: tomar uma tendência e a ela conferir
prevalência? Ou, de outro modo, o trabalho imaterial poderá se sobrepor à dimensão corpórea, material do labor, quando se
toma a totalidade do trabalho social, em
que, vale lembrar, a maioria da humanidade que labora vive no chamado "Terceiro
Mundo"? 2) Estamos mais próximos do
"trabalho do afeto" ou diante do mundo do
trabalho-"desafeto"?
3) Se a tendência à "completa imaterialidade" se efetivasse, onde poderíamos encontrar o chão social capaz
de desmantelar a dura ordem material? Seria na multidão [título do
mais novo livro de Hardt e Negri]?
"Estamos Vencendo (A Resistência Global no Brasil)", com texto de
Pablo Ortellado e fotos de André
Ryoki, estampa nossa juventude rebelde que trocou faz pouco tempo as
visitas coisificadas aos McDonald's
pela sua rejeição visceral por meio de
ações estruturadas em rede, sintonizadas com a luta da Ação Global dos
Povos, contra os organismos bilaterais e multilaterais -como Organização Mundial do Comércio, Fundo
Monetário Internacional, Banco
Mundial-, que, aliás, causam muito mais que simples efeitos colaterais. A autonomia dos movimentos,
seu sentimento anticapitalista, seus
embates contra a "mercadorização"
do mundo são apresentados junto
com uma irreverência forte que só a
juventude consegue imprimir e que
foram tão bem capturadas pela máquina de Ryoki.
Roteiro do capital
Além do belo material iconográfico, o livro (em
cuidadosa edição) traz uma cronologia dos acontecimentos desde a "batalha de Seattle", além de panfletos
utilizados nos embates, como o sarcástico "Conheça o Capital - City
Tour pela Cidade de São Paulo", começando pela Bolsa de Valores,
Banco de Boston, shopping Light,
McDonald's, cemitério da Consolação, avenida Paulista e, finalmente, o
Consulado dos EUA. Aqui há, certamente, algo da verve e ironia dos antigos movimentos libertários...
O século 21 não parece comportar
um "revival" do anarquismo. E nem
do nefasto "socialismo real", que,
sob a batuta de Stálin, também feneceu no curto século 20. Mas, despidas de suas formulações mais dogmáticas, as duas mais importantes
vertentes emancipatórias que marcaram os dois últimos séculos, certamente têm algo (ou muito) a dizer.
Tomara que elas se reencontrem,
mais livres e mais generosas, neste
atormentado limiar do século 21.
Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Os Sentidos
do Trabalho" (Boitempo) e "Adeus ao Trabalho?" (Cortez).
História do Movimento Operário
Revolucionário
360 págs. R$ 56,00
Vários autores. Tradução de Plínio Augusto
Coêlho. Ed. Imaginário (r. Ciro Costa, 94, conjunto 1, Perdizes, CEP 05007-060, São Paulo,
SP, tel. 0/xx/11/3864-3242).
Autoritarismo e Anarquismo
104 págs., R$ 15,00
de Errico Malatesta. Tradução de Plínio Augusto Coêlho. Ed. Imaginário.
Nada É Sagrado, Tudo Pode Ser Dito
104 págs., R$ 10,00
de Raoul Vaneigem. Tradução de Marcos
Marcionilo. Ed. Parábola (r. Clemente Pereira, 327, Ipiranga, CEP 04216-060, São Paulo,
SP, tel. 0/xx/ 11/6914-4932).
O Trabalho de Dioniso
228 págs., R$ 22,00
de Antonio Negri e Michael Hardt. Ed. da
Universidade Federal de Juiz de Fora (r. Benjamim Constant, 790, CEP 36015-400, prédio
da reitoria, Juiz de Fora, MG, tel. 0/ xx/32/
3229-3992).
Estamos Vencendo
- Resistência Global no Brasil
176 págs., R$ 25,00
de Pablo Ortellado e André Ryoki. Ed. Conrad
(r. Simão Dias da Fonseca, 93, CEP 01539-020, SP, tel. 0/xx/11/ 3346-6088).
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