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"História do Mundo em Seis Copos" traça a evolução das sociedades
a partir do consumo de cerveja, vinho, destilados, chá, café e Coca-Cola
Bebidas de deuses e burgueses
HENRIQUE CARNEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Por qual fio de continuidade
podemos buscar compreender a história do mundo? Pela
forma como os seres humanos nascem, matam, morrem, fazem
sexo ou constroem suas habitações?
Ou pela maneira como ingerem líqüidos? A esfera do consumo, da vida material, ou seja, aquilo que o
corpo ingere -alimentos, bebidas,
drogas- pode revelar não só as
contingências da sobrevivência, os
caprichos do gosto e a busca de sentidos simbólicos nos atos e gestos
humanos, mas espelhar toda uma
civilização.
A dimensão do cotidiano assumiu
relevância historiográfica e sociológica e vem sendo abordada a partir
de múltiplos ângulos, particularmente aqueles que revelam os
meandros da "cultura material", ou
seja, como se bebe, se come, se veste,
se habita etc.
Esse tema, longe de esgotar-se, encontra facetas novas sendo reveladas
a partir da investigação das estruturas do cotidiano em sua interação
com as formas da exploração econômica e da dominação política, especialmente, na constituição dos Estados e dos impérios modernos.
O livro "História do Mundo em
Seis Copos", de Tom Standage, jornalista da "Economist", é um bom
exemplo. Com base em uma ampla e
atualizada bibliografia historiográfica, o autor percorre por meio de seis
bebidas (cerveja, vinho, destilados,
chá, café e Coca-Cola) os contextos
históricos que deram origem a esses
hábitos e as suas profundas repercussões culturais, religiosas e econômicas em diferentes épocas.
Linha do tempo
A invenção da agricultura é contemporânea à produção dos fermentados de cereais, a cerveja, por
exemplo, cujo uso no Egito e na Mesopotâmia antigos tinha uma relevância tão grande como a do pão,
servindo, além de alimento, como
meio de pagamento e medicamento
e sendo levada às tumbas tanto de
faraós como de pessoas comuns.
O vinho, por sua vez, tornou-se
não apenas um dos principais produtos no comércio do Mediterrâneo, em barcos carregados de ânforas, como assumiu a condição de bebida sagrada, cujas libações se tornaram mais tarde, na cultura filosófica
da Grécia Antiga, o instrumento revelador dos segredos da alma, nos
"simpósios", que eram banquetes ritualizados onde floresceu o amor
pela sabedoria e uma moralidade do
"saber beber".
Os destilados são emblemáticos da
época moderna, quando, pela primeira vez, as bebidas alcoólicas de
alto teor se tornaram disponíveis em
massa. Sua origem e utilização fazem delas as primeiras bebidas "globalizadas": produzidas com técnica
de origem árabe, com um produto
de origem asiática (cana-de-açúcar),
com mão-de-obra escrava africana e
consumidas no mundo inteiro, especialmente na ração dos marinheiros, o rum e a cachaça, assim como
outras aguardentes, passaram a
constituir um dos principais produtos da época mercantilista, estocando a riqueza dos cereais transformados em álcool, fornecendo imensos
lucros aos mercadores e impostos e
taxas aos aparelhos fiscais dos Estados modernos em construção.
Cafeína operária
O café e o chá não apenas fizeram
da cafeína a droga mais consumida
no planeta como ajudaram a edificar
a potência imperial do Reino Unido.
Seu consumo foi elogiado como
produtor da sobriedade, antagônico
ao álcool e, portanto, símbolo dos
valores burgueses da época do Iluminismo. Consumidos por operários, eles ajudaram no aumento da
produtividade laboral; e, por intelectuais e escritores, contribuíram para
a exaltação dos valores da concentração mental.
O último dos "líquidos vitais" analisados por Standage, a Coca-Cola,
tornou-se desde a Segunda Guerra
Mundial não só o refrigerante mais
consumido no mundo como um dos
símbolos do "século norte-americano", com suas fábricas tendo se espalhado pelo mundo juntamente
com os quartéis do exército, e chegando, nos dias de hoje, a fornecer
3% de todos os líquidos ingeridos
pela humanidade.
Finalmente, na conclusão, o autor
analisa brevemente o significado da
água potável e do seu futuro num
planeta em que ela se torna cada vez
mais um bem em escassez, já que ao
menos cerca de 20% da população
mundial não tem acesso e em torno
de 80% das doenças ainda são provocadas por água contaminada. O
mercado de água engarrafada, no
entanto, é um dos que mais crescem
nos países desenvolvidos, superando, em alguns casos, até mesmo o
consumo de água de torneira.
Henrique Carneiro é professor no departamento de história da USP e autor de "Pequena Enciclopédia da História das Drogas e
Bebidas" (Campus/Elsevier).
História do Mundo em Seis Copos
240 págs., R$ 32,50
de Tom Standage. Tradução de Antonio Braga. Ed. Jorge Zahar (r. México,
31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/
2240-0226).
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