São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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Sob o pano de fundo da crise da aristocracia e a ascensão da burguesia no século 19, "Armance" e "O Vermelho e o Negro", de Stendhal, misturam ficção e autobiografia

Os novos donos do poder

Evando Nascimento
especial para a Folha

Dois livros de Stendhal, "Armance" e "O Vermelho e o Negro", estão sendo republicados com grande apuro editorial e em excelentes traduções. Romance de estréia do autor, aos 43 anos, segundo ele a idade ideal para iniciar uma carreira literária, "Armance" (1827) é composto de inúmeras citações, a começar pelas epígrafes dos capítulos. Shakespeare aí comparece diversas vezes e mesmo um inesperado Camões, ambos citados em idioma original na própria edição francesa. Algumas dessas referências são contudo truncadas ou falsamente atribuídas. Se Stendhal fosse um erudito, o defeito seria grave, mas, como se trata de um escritor imaginativo, se torna mais um dos lances do jogo ficcional. De tais lições Machado de Assis fez imenso proveito, citando Stendhal desde o prefácio das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", com relação a cem possíveis leitores, embora o defunto autor previsse um número ainda menor para sua obra. A ironia da expressão "happy few" já é uma citação de Shakespeare.

Jogo de interesses
Grande parte do entrecho de "Armance" se faz por meio da disparidade entre o caráter singular do protagonista Octave e a hipocrisia da sociedade parisiense da Restauração, depois da queda do regime napoleônico em 1814. Ele é um herdeiro de 2 milhões de francos, em busca de uma "bela alma" que não se deixe conduzir pelo jogo de interesses, o qual nivela, a seus olhos, o aristocrata e o burguês em ascensão. Essa alma será sua prima Armance, a estrangeira russa que não compartilha os valores da época, mas com a qual Octave não poderá efetivar os laços conjugais, por causa de um segredo jamais revelado. Stendhal traduziu o enigma como impotência sexual, em carta a Prosper Mérimée, porém não deixa de ser redutor toda vez que o autor fornece uma interpretação a seus textos. O sentido traumático da individuação, próprio ao início da era moderna, leva Octave ao desejo de suicídio. Tentando traçar seu rumo além das disposições familiares e sociais, maldito apesar de si próprio, ele molda um caráter que, se perdeu sua idealidade posteriormente ao longo de dois séculos, não perdeu sua força reflexiva para nós, hoje. E, tal como em "Hamlet", cujo texto fornece uma das epígrafes, sendo também uma das paixões literárias do jovem Henri Beyle, verdadeiro nome de Stendhal, matar-se poderia ser a solução para uma vida infeliz se houvesse certeza quanto ao que vem depois. "O que é a morte?", indaga-se o hamletiano personagem, consignando o mal do século, o "spleen" que fornecerá o veneno e o bálsamo de mais de uma geração.

Estilo seco
Considerado um texto "romântico", por tratar do amor e seus desvarios, "Armance" é igualmente classificado como "realista" pela crítica especializada, que tateia qualificativos para o famoso estilo "seco" de Stendhal, correndo mesmo o risco do anacronismo. Segundo Erich Auerbach, num magnífico ensaio de "Mimesis", o diferencial de Stendhal é o de pela primeira vez na história da literatura o texto estar em plena sintonia com o presente. Perfeito animal político, tudo em princípio acontece em sua ficção sobre o fundo de um país que tenta resgatar os valores aristocráticos, sabendo-se contudo impossibilitado de um retorno ao Antigo Regime. Em "O Vermelho e o Negro", de 1830, a situação romanesca de Octave se inverte. Julien Sorel desempenha o papel de quem não tem bens suficientes para realizar seus intentos amorosos e sociais com facilidade. Ele é o jovem camponês que sonha ascender, seja assumindo o vermelho do uniforme militar, seja vestindo o negro da batina. Ambos os projetos fracassam, e ele acaba condenado, apesar da intervenção de suas duas amantes, Madame de Rênal e Mathilde de la Mole.


O jogo imaginativo vai além da substituição dos nomes reais pelos fictícios, pois se tem toda uma realidade política e econômica criticamente recriada


O que encanta em Stendhal é o refinamento da linguagem, nada pedante e de uma agilidade completamente atual, em intenso diálogo com seus leitores. Não esqueçamos que a história de Julien Sorel se baseia num "faits-divers", um caso policial que o autor conheceu por meio da imprensa. Mas o jogo imaginativo vai além da substituição dos nomes reais pelos fictícios, pois se tem toda uma realidade política e econômica criticamente recriada. É também preciso lembrar que grande parte da literatura francesa, até o início do século 20, passava pelos salões das classes dominantes, que fizeram a fortuna e a desgraça de artistas e escritores. Stendhal lustrou em vários deles, sabendo depois retratá-los com ironia e acidez. Proust terá sido o último a fazer a pintura do declínio dos aristocratas, em processo de substituição pelos novos donos do poder, os burgueses, que passarão a impor cada vez mais a moda, na literatura e no "grand monde". Mas, ao contrário de Proust, que precisou se afastar da mundanidade para recuperar o tempo perdido via escritura, Stendhal exerceu com grande verve a função de "causeur", ao tempo em que escrevia seus livros.

Celebridade
Como relata Michel Crouzet, um de seus melhores biógrafos, Henri Beyle/ Stendhal conheceu em vida a celebridade que ambicionava, sendo admirado por Balzac, de que não gostava, e por Goethe, que amava e o qual cita, dando o título de "As Afinidades Eletivas" a um dos capítulos de "O Vermelho e o Negro". Este livro toma como ponto de partida as "Confissões", de Rousseau, que é uma das obras de cabeceira de Julien Sorel. Assim, o texto autobiográfico do filósofo iluminista, que se assemelha a um romance, pontua diversas atitudes do protagonista de Stendhal.
A vida ficcional de Julien será construída por meio de suas leituras e devaneios, tal como mais tarde no mesmo século a Madame Bovary de Gustave Flaubert se deixará conduzir pelos livros que lê. Em contrapartida, Stendhal escreveu suas próprias memórias sob modo romanesco, em "Vida de Henry Brulard" (1835). Resumamos: Rousseau ficcionaliza suas confissões, rompendo os limites entre autobiografia e romance, seu leitor Julien Sorel mistura perigosamente a ficção com a vida, e o próprio Stendhal imbrica passagens da existência às de suas criações literárias, tornando-se personagem de si mesmo. Há nisso um deslizamento de máscaras que torna a literatura um refazer constante dos textos e das biografias que os acompanham, tal como redescobre a crítica contemporânea.

Evando Nascimento é pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), autor de "Derrida e a Literatura" (Ed. da Universidade Federal Fluminense) e de "Ângulos - Literatura & Outras Artes" (Ed. da Universidade Federal de Juiz de Fora/Argos).

Armance
288 págs., R$ 28,00 de Stendhal. Tradução de Leila de Aguiar Costa. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, SP, tel. 0/xx/11/3661-2881).

O Vermelho e o Negro
576 págs., R$ 49,00 de Stendhal. Tradução de Raquel Prado. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/ 11/3218-1444).



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