São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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Ponto de fuga

Divulgação
Bill Murray em cena de "Encontros e Desencontros", quando seu personagem é o convidado em um "talk show" japonês


Jorge Coli
Especial para a Folha

Sussurros secretos

Não vale contar o final do filme. Mas nele está o enigma ou seu emblema, e esse enigma traz a chave. "Encontros e Desencontros" é, no original, "Lost in Translation", ou seja, "perdido na tradução". Os distribuidores bem que poderiam ter procurado uma idéia melhor para o título brasileiro.
O que se perde numa tradução? As tangentes nos significados de cada frase, modos alusivos que permitem intuição ampla e nuançada do que é dito. Sofia Coppola, a diretora, escolheu o Japão para seu filme, um país que, de uma certa forma, traduziu o Ocidente para sua própria cultura. Tudo parece ocidental, mas tudo é diferente. O hotel é o porto de ancoragem. É igual ao de qualquer metrópole, uma espécie de não-lugar, indiferente, onde as pessoas como que flutuam fora das realidades. Na estranheza do país, no desconforto do jet lag, nas andanças à deriva pelo hotel, matando o tempo, a realidade de cada um (família, afetos, tudo aquilo que, em princípio, deveria dar um norte às existências) se esvazia.
Bill Murray, no papel de Bob Harris, um ator de cinema americano cinqüentão, vê-se num velho filme transmitido pela TV. Dublado, saem palavras incompreensíveis de sua boca. Em outro momento, conversa com um velho japonês num hospital. Fazem gestos, tudo é engraçado, não importa a ignorância das línguas: o entendimento implausível ocorre. Os protagonistas falam por telefone com a família. As frases, em inglês, são compreensíveis, mas não, de fato, seus significados. Sem afetações, perpassa um leve tom metafísico quando é a vida de cada um que parece carecer de sentidos.

Nonchalance - Sofia Coppola trata seu mundo e seus personagens com um sorriso muito suave e os envolve numa flutuação melancólica, contida com elegância. Essa elegância vazada no não dito das relações humanas é própria também de um Eric Rohmer, cujos personagens falam sem cessar para dizerem outras coisas do que dizem, coisas que estão fora da língua. Em "Lost in Translation", ao contrário, a fluência não existe e as conversas são entrecortadas sem parar por obstáculos. A língua tropeça nas suas dificuldades e nos seus limites: de novo, como nos filmes de Rohmer, aqui também o essencial se situa fora dela.
Há dois momentos esplêndidos, entre os mais engraçados do filme. O primeiro: uma jovem atriz de Hollywood dá uma entrevista coletiva para jornalistas, e tudo o que diz, e que está prestes a ser amplificado pela imprensa, é de uma irrelevância absurda. O segundo: um japonês, apresentador de TV, extravagante, agitado e pernóstico, uma metralhadora de palavras, recebe Bob Harris, a quem Bill Murray empresta um cinismo reservado. Absolutamente nada no "talk show" tem qualquer espécie de importância. Ao que parece, o programa de TV existe mesmo.
Mas há um terceiro momento, crucial, discreto: Sofia Coppola faz com que o espectador deixe de ouvir coisas ditas ao pé do ouvido. Pode-se conjeturar, sem certeza; uma esperança, pequena réstia luminosa surge, invisível e no entanto presente.
No dia-a-dia, as expressões "linguagem cinematográfica" ou, subindo no grau de generalidade, "linguagem artística" são freqüentes e banais. O filme de Sofia Coppola demonstra claramente: linguagem é linguagem, e cinema é cinema.

Afinidade - O herói maduro de "Lost in Translation" está em crise de existência. Tem, como par, uma jovem, interpretada por Scarlett Johansson, que, no momento da filmagem, passava dos 17 aos 18 anos. Seu bumbum, que abre o filme numa calcinha cor-de-rosa transparente, é uma falsa promessa de Lolita. A relação entre ambos não tem nome. Não evidencia amor, erotismo, paternalismo ou sentimento filial. Há um pouquinho de cada coisa, dissolvido em cumplicidade amiga, único laço que parece verdadeiro aos dois nos dias de estranhamento que passam juntos.

Aquário - Frase de Sofia Coppola: "Quando se vai ao Japão, a diferença de fuso horário se faz sentir de maneira tão pesada que andar em Tóquio, com todos esses estranhos anúncios luminosos, se torna, literalmente, um sonho".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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