São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

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Bangue-bangue à italiana

Imigração europeia não-ibérica no Sudeste do país aponta para uma nova relação entre o público e o privado

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

O calor saariano corria solto quando a alguém ocorreu provocar a irmã mais nova: "E aí, Ornella, como é mesmo aquela história de sua avó matando o marido com a cumplicidade dos 12 filhos?".
A pergunta foi proferida em alto e bom tom para que, atracada a pratos e copos na cozinha ao lado, a irmã mais velha também ouvisse. "Não é verdade. A vó Bela é que era bem fogosa. Arrumou um amante, e foi ele, ou alguém a seu mando, que matou o vovô. Puro ciúme." A resposta ainda ecoava quando, igual a um furacão, Santa, a mais velha, invadiu a varanda, ainda com sabão e pano entre as mãos. "Você não sabe de nada", decretou feroz. "Matou sim! Deu cabo do vovô a tiros de carabina na cara. Na porteira da fazenda, bem na frente dos 12 filhos em fila. Em fila!" Ornella é letrada, beira os 60 anos, possui documentos da família, simboliza sociologicamente seu presente urbano e o passado camponês. Sabe descender da mescla entre imigrantes italianos desembarcados na última década do século 19 e caburés despossuídos que erravam de fazenda em fazenda no Sudeste.
Carlo, o avô a que se refere, desembarcara no Brasil em 1893 e, pouco depois, instalara-se entre o Espírito Santo e Minas Gerais. Também sabe que os mais afortunados da geração de seus avós tornaram-se pequenos e médios proprietários dedicados à pecuária e ao café. Foi essa a trajetória de Carlo até 1928, ano de sua morte. Com certa amargura, Ornella relata o clássico processo de fracionamento da herança familiar, a decadência que obrigou seus pais a venderem primeiro os animais, depois a própria terra. Lembra ainda das incontáveis madrugadas subsequentes, em que ela e os irmãos iniciavam a labuta na lavoura de parentes, como meeiros. Consciência mágica Semiletrada, 70 anos, Santa é, ao contrário, suporte de uma consciência absolutamente mágica. Sua memória genealógica alimentou-se sobretudo das histórias das tias em noites frias, alumbradas por rezas, sacis e lobisomens. Era então que ouvia à exaustão a versão tupiniquim do rapto das Sabinas, mito fundador de inúmeras linhagens camponesas do Norte ao Sul do Brasil. E logo os presentes são remetidos ao périplo do macho italiano que adentra o sertão e "laça" a indiazinha em flor à sua aldeia, sem que qualquer dos dois dominasse por completo a língua portuguesa. No entanto, ao invés de amar sua Iracema de ocasião, o bruto constantemente a espanca, entre as pencas de filhos que se sucedem. Bate, humilha e trai. O martírio feminino culmina na morte do macho pelas mãos da mulher ofendida, com o beneplácito da prole aliada. Não fosse a truculência da polícia, tudo terminaria aí. Mas o silêncio da avó, presa logo após o "justiçamento" do marido, somente poderia ser quebrado mediante tortura. Por isso as seguidas surras com toalhas molhadas -para não deixar marcas- e as agulhas enfiadas com requinte nas unhas. A tudo a velha Bela resistiu, e acabou solta por falta de provas. Não sem antes gravar os nomes e as feições de cada um dos policiais, cujos corpos foram aparecendo sem vida em encruzilhadas e descampados nos anos seguintes.
Santa e Ornella nasceram nos grotões do Sudeste nos anos 30 e 40 do século passado.
Não demorou muito para que elas e seus inúmeros irmãos engrossassem o maciço êxodo rural que tomou fôlego a partir do golpe militar de 1964, tendo o Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte por destinos. Ornella abandonou o agro e sua cultura. Mas em sua irmã o mundo rural permanece tão vivo e presente quanto as ruas e edifícios que enfeitam a metrópole por onde ela circula todos os dias. Ao reivindicar uma origem mítica, Santa instaura uma idade de ouro perdida, naturalmente ausente da pobreza dos miseráveis caburés que por outras vias insistem em povoar-lhe a mente. Tudo se passa como se os verdadeiramente seus tivessem origem quando da concretização do sonho da propriedade da terra, propiciado pelo avô italiano que algum dinheiro trazia.

Lei do silêncio
De igual modo, a trajetória da antepassada espancada e vingativa remete simultaneamente à violência que permeava a todas as relações, e à mulher transformada em esteio de famílias fluidas, sempre à beira do desmembramento. O imaginário de Santa desvela ainda filhos aliados que encarnam o código de honra fundado no silêncio, adequado à reprodução de um mundo fugaz, povoado por vendetas e transgressões de todo tipo. As duas irmãs resultam de uma cultura camponesa etnicamente nova no Sudeste pós-abolicionista, marcada pelos tradicionais substratos indígena e negro, mas temperada por elementos europeus não-ibéricos. Sua efêmera existência talvez explique a pouca atenção que lhe é dispensada por boa parte dos historiadores, acostumados a tomar o Sudeste brasileiro como um mar de latifúndios desde a época colonial. Mesmo sobrevivendo por poucas gerações, o caso desse campesinato não-ibérico é emblemático. Ele sugere que a ordem patriarcal e a consequente prevalência do poder privado assumiram múltiplas facetas, transbordando a época da escravidão, as áreas de fronteira e a grande propriedade. No limite -e ao contrário do que imagina certo viés historiográfico evolucionista-, o Brasil arcaico podia se alimentar da própria imigração que, em tese, deveria enterrá-lo.


MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .


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