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Bangue-bangue à italiana
Imigração europeia não-ibérica no Sudeste do país aponta para uma nova relação entre o público e o privado
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
O calor saariano corria solto quando a
alguém ocorreu
provocar a irmã
mais nova: "E aí,
Ornella, como é mesmo aquela
história de sua avó matando o
marido com a cumplicidade
dos 12 filhos?".
A pergunta foi proferida em
alto e bom tom para que, atracada a pratos e copos na cozinha ao lado, a irmã mais velha
também ouvisse.
"Não é verdade. A vó Bela é
que era bem fogosa. Arrumou
um amante, e foi ele, ou alguém
a seu mando, que matou o vovô. Puro ciúme."
A resposta ainda ecoava
quando, igual a um furacão,
Santa, a mais velha, invadiu a
varanda, ainda com sabão e pano entre as mãos.
"Você não sabe de nada", decretou feroz. "Matou sim! Deu
cabo do vovô a tiros de carabina na cara. Na porteira da fazenda, bem na frente dos 12 filhos em fila. Em fila!"
Ornella é letrada, beira os 60
anos, possui documentos da família, simboliza sociologicamente seu presente urbano e o
passado camponês. Sabe descender da mescla entre imigrantes italianos desembarcados na última década do século
19 e caburés despossuídos que
erravam de fazenda em fazenda no Sudeste.
Carlo, o avô a que se refere,
desembarcara no Brasil em
1893 e, pouco depois, instalara-se entre o Espírito Santo e Minas Gerais.
Também sabe que os mais
afortunados da geração de seus
avós tornaram-se pequenos e
médios proprietários dedicados à pecuária e ao café. Foi essa a trajetória de Carlo até
1928, ano de sua morte.
Com certa amargura, Ornella
relata o clássico processo de
fracionamento da herança familiar, a decadência que obrigou seus pais a venderem primeiro os animais, depois a própria terra.
Lembra ainda das incontáveis madrugadas subsequentes, em que ela e os irmãos iniciavam a labuta na lavoura de
parentes, como meeiros.
Consciência mágica
Semiletrada, 70 anos, Santa
é, ao contrário, suporte de uma
consciência absolutamente
mágica. Sua memória genealógica alimentou-se sobretudo
das histórias das tias em noites
frias, alumbradas por rezas, sacis e lobisomens. Era então que
ouvia à exaustão a versão tupiniquim do rapto das Sabinas,
mito fundador de inúmeras linhagens camponesas do Norte
ao Sul do Brasil.
E logo os presentes são remetidos ao périplo do macho italiano que adentra o sertão e "laça" a indiazinha em flor à sua
aldeia, sem que qualquer dos
dois dominasse por completo a
língua portuguesa.
No entanto, ao invés de amar
sua Iracema de ocasião, o bruto
constantemente a espanca, entre as pencas de filhos que se
sucedem. Bate, humilha e trai.
O martírio feminino culmina
na morte do macho pelas mãos
da mulher ofendida, com o beneplácito da prole aliada.
Não fosse a truculência da
polícia, tudo terminaria aí. Mas
o silêncio da avó, presa logo
após o "justiçamento" do marido, somente poderia ser quebrado mediante tortura. Por isso as seguidas surras com toalhas molhadas -para não deixar marcas- e as agulhas enfiadas com requinte nas unhas.
A tudo a velha Bela resistiu, e
acabou solta por falta de provas. Não sem antes gravar os
nomes e as feições de cada um
dos policiais, cujos corpos foram aparecendo sem vida em
encruzilhadas e descampados
nos anos seguintes.
Santa e Ornella nasceram
nos grotões do Sudeste nos
anos 30 e 40 do século passado.
Não demorou muito para que
elas e seus inúmeros irmãos
engrossassem o maciço êxodo
rural que tomou fôlego a partir
do golpe militar de 1964, tendo
o Rio de Janeiro, São Paulo e
Belo Horizonte por destinos.
Ornella abandonou o agro e
sua cultura. Mas em sua irmã o
mundo rural permanece tão vivo e presente quanto as ruas e
edifícios que enfeitam a metrópole por onde ela circula todos
os dias.
Ao reivindicar uma origem
mítica, Santa instaura uma idade de ouro perdida, naturalmente ausente da pobreza dos
miseráveis caburés que por outras vias insistem em povoar-lhe a mente. Tudo se passa como se os verdadeiramente seus
tivessem origem quando da
concretização do sonho da propriedade da terra, propiciado
pelo avô italiano que algum dinheiro trazia.
Lei do silêncio
De igual modo, a trajetória da
antepassada espancada e vingativa remete simultaneamente à violência que permeava a
todas as relações, e à mulher
transformada em esteio de famílias fluidas, sempre à beira
do desmembramento.
O imaginário de Santa desvela ainda filhos aliados que encarnam o código de honra fundado no silêncio, adequado à
reprodução de um mundo fugaz, povoado por vendetas e
transgressões de todo tipo.
As duas irmãs resultam de
uma cultura camponesa etnicamente nova no Sudeste pós-abolicionista, marcada pelos
tradicionais substratos indígena e negro, mas temperada por
elementos europeus não-ibéricos. Sua efêmera existência talvez explique a pouca atenção
que lhe é dispensada por boa
parte dos historiadores, acostumados a tomar o Sudeste
brasileiro como um mar de latifúndios desde a época colonial.
Mesmo sobrevivendo por
poucas gerações, o caso desse
campesinato não-ibérico é emblemático. Ele sugere que a ordem patriarcal e a consequente
prevalência do poder privado
assumiram múltiplas facetas,
transbordando a época da escravidão, as áreas de fronteira e
a grande propriedade.
No limite -e ao contrário do
que imagina certo viés historiográfico evolucionista-, o Brasil
arcaico podia se alimentar da
própria imigração que, em tese,
deveria enterrá-lo.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
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