São Paulo, domingo, 15 de março de 2009

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Ponto de Fuga

Do amor pela música

As mulheres e a música viveram uma história de exclusão: as compositoras são poucas, as maestrinas, raríssimas

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Stendhal era apaixonado por música. Vivia comparando com ela seus entusiasmos amorosos. Escreveu que nunca mulher alguma lhe havia proporcionado momentos tão doces quanto os de ouvir uma nova e bela melodia. Que era capaz de percorrer 60 léguas para assistir a uma ópera, coisa que nenhuma de suas amadas havia conseguido que ele fizesse por elas. Mas o canto feminino o arrebatava. As mulheres e a música viveram uma história de exclusão. Cantoras, sim, admitiam-se, já que a ópera as exigia. Mesmo aí, em certos períodos, e em certos lugares, como nos antigos Estados da igreja em que eram proibidas de subir aos palcos, os homens, castrados, substituíam-nas. As pianistas às vezes mudavam em carreiras de solistas o que lhes era concedido como prenda doméstica. Harpistas também, por causa das sonoridades angelicais. Embora Lily Laskine, lendária intérprete, tivesse declarado: "É claro que a harpa é um instrumento masculino. Se não fosse, eu não o tomaria em meus braços". A flauta, o violino permitiam também às mulheres um percurso profissional. Mas o domínio pertencia de fato aos homens. No século 20, se o panorama melhorou bastante, desequilíbrios evidentes continuaram. Não faz muito, uma instrumentista declarou, com ironia: "O violoncelo é meu marido. Paga todas as minhas contas e vive no meio das minhas pernas". São poucas as compositoras. As maestrinas, cuja atividade é de comando, são raríssimas.

Andorinhas
A Sinfônica de Campinas ofereceu o primeiro concerto desta temporada. No ano 2000, ela se renovou, quando esteve sob a regência de Aylton Escobar. Depois, com Cláudio Cruz, atingiu um nível técnico muito alto. Em seguida, foi um período discreto, apesar da presença constante do maestro suíço Karl Martin. Agora, há um clima de entusiasmo. Martin permanece como convidado principal, mas há novo titular. O mundo terrível dos maestros é atravessado por concorrências cruéis, que expulsam as mulheres do pódio. Bela notícia, portanto, saber que Ligia Amadio assumiu os destinos dessa sinfônica, cuja história é expressiva. São 53 apresentações previstas para 2009 (www.osmc. com.br). Incluem vários regentes brasileiros e excelentes solistas, a começar por Nelson Freire. Retomam os grandes títulos do repertório, mas se abrem também para composições raras: o "Concerto para Violino" de Henrique Oswald, com Artur Huf, spalla da orquestra e excelente intérprete; o "Notturno", de Martucci, compositor caro a Toscanini, injustamente esquecido; a "Sinfonia em Ré", de Jan Václav Vorísek, contemporâneo de Beethoven e de Schumann.

Primeiro voo
No concerto inicial, no dia 7 de março, a Sinfônica de Campinas enfrentou duas obras complexas: o poema sinfônico "Morte e Transfiguração", de Richard Strauss, e a "Sinfonia nº 4", de Tchaikovski. Ligia Amadio rege com intensidade e entusiasmo. Sabe transmitir suas intenções emotivas para seus músicos. Não se embebe em sonoridades. Enérgica, avança pelos fluxos musicais com rapidez, leva o público ao delírio nas explosões sonoras. Possui uma evidente personalidade musical. Resta agora corrigir imperfeições, equilibrar o conjunto, ajustar naipes defeituosos, delinear bem os fraseados. Questão de tempo, sem dúvida.

Respiro
"As notas, eu não as faço melhor do que muitos pianistas. Mas as pausas entre as notas -ah! é aí que reside a arte!" (Arthur Schnabel).
jorgecoli@uol.com.br



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