São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

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Corpo nu e cru

NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha

A exposição "Francis Bacon - O Corpo Humano", está sendo apresentada na Galeria Hayward do Centro Cultural da Margem Sul, em Londres, até 5 de abril. A escolha do local foi propícia. Para quem vem de Charing Cross, no centro da cidade, o acesso requer o percurso de toda a movimentada avenida do Strand até a ponte de Waterloo e, através dela, direto para o Centro Cultural. É o próprio desfile da miséria humana. Ao longo dessa artéria central se encontram estirados pelo chão toda uma legião de miseráveis e maltrapilhos, a maioria jovens, gente que teve educação e criação decentes, mas foi engolfada pela onda implacável do desemprego. Diante das vitrines das lojas e fachadas de restaurantes, eles exibem seus corpos contorcidos e encolhidos de frio, o rosto inflamado e corroído pelo vento intenso, os olhos vazios de vidas desmoralizadas pela obsolescência precoce. Todo o percurso cheira a cerveja derramada, urina e fezes dos seus cães inseparáveis, única fonte de calor e afeto.
Ao virar para a ponte de Waterloo a cena muda drasticamente. Barcos lotados de turistas, sentados ordeiramente com suas câmeras e atentos às explicações dos guias, sobem e descem o Tâmisa sem parar. Da perspectiva das barcas eles vêem a imagem mais cenográfica da cidade, seu lado vitrine, o cartão-postal de Londres ao vivo. Imediatamente atrás desse cenário mirífico está a cena degradante do Strand, encoberta pelas fachadas e prédios monumentais. O choque desse contraste é uma boa preparação para o que se vai encontrar na Galeria Hayward.
Bacon é um dos artistas que neste século sondou mais profundamente os modos pelos quais nossa cultura condiciona a percepção do corpo humano. Ele cogita sobre como nosso olhar opera sob um filtro de valores e experiências que seleciona o que se vê e o que está excluído de qualquer registro sensorial. Mais que isso, ele confronta a natureza histórica e política desse filtro, disposto a se livrar dele e descobrir o que jaz por trás dessa ética das aparências sanitizadas. Nesse sentido sua obra ameaça de modo desagradável nossos hábitos visuais e relutamos muito em nos reconhecer nela. Ele próprio estabelecia esse desafio de maneira franca e crua. Várias vezes repetiu "se você quer entender a lógica da nossa relação com a carne, olhe bem para o bife no seu prato".
A exposição é discreta, apenas 18 telas isoladas e 5 trípticos, umas das formas favoritas de Bacon, que ele soube explorar à perfeição, instilando uma dinâmica intensamente dramática em suas imagens. O responsável pela mostra é o crítico David Sylvester, um dos maiores especialistas na obra do artista e o responsável pelas principais exposições de seus trabalhos, como a de Veneza em 1993 e a maior de todas, no Centro Georges Pompidou, em Paris, em 1996. A grande vantagem de uma exposição em pequena escala como essa, de um artista tão prolífico, é ser conduzido pela sensibilidade sutil de Sylvester direto aos momentos decisivos de uma tormentosa jornada de exploração artística.
Sylvester, tendo sido amigo pessoal de Bacon, concebeu a exposição em duas dimensões paralelas. De um lado ele procurou assinalar as circunstâncias mais dramáticas da vida do artista, já que sua obra tem um teor autobiográfico, talvez maior que a de qualquer outro pintor moderno. De outro ele pretendeu demonstrar como a resposta de Bacon aos impasses em que o destino o precipitava era sempre pronunciada por meio do pincel, pela escolha das cores, a densidade das tintas, a energia do gesto, a secura da composição e a incorporação dos acidentes do processo da pintura, num diálogo com a imagem em que o resultado final lhe era sempre imprevisível. Nas suas palavras, "se a coisa de algum modo surge na tela, é por causa da estranheza de formas desconhecidas que surgiram durante o trabalho e que transtornam as convenções da aparência".
Essas "convenções da aparência" compõem o tal filtro que condiciona o olhar. No nosso tempo elas comportam duas camadas básicas. Uma é formada pelo legado da história da arte e sua ambição platônica de compor um código abstrato e universal da visibilidade. A outra é o surgimento dos meios de reprodução técnica da imagem, pela fotografia e cinema, logo incorporados pelas indústrias do entretenimento e da publicidade. No primeiro desses níveis a imagem do corpo humano é uma idealização, no outro um objeto de consumo. Pretendendo sair desse circuito conformista, Bacon tentou ver o que havia por trás desse desfile das imagens consensuais, o lado escuro do grande painel visual do século 20. O que ele encontrou é exasperante.
Ele se deparou, por exemplo, com a violência, sua grande conhecida. Nascido na Irlanda em 1909, de pais ingleses, sua vida foi sendo uma multiplicação de experiências violentas. O pai era treinador de cavalos e militar, o que o submeteu a uma educação modelada pelo adestramento sob o chicote de equitação. Foi para Londres durante a Primeira Guerra, quando o pai trabalhou no War Office. De volta à Irlanda se viu várias vezes sitiado pela guerrilha, vivendo na casa da sua avó, então casada com o Comissário da Polícia. Esteve na Alemanha durante a ascensão do nazismo, em Paris durante os distúrbios do Front Populaire, na Argélia durante as lutas anticoloniais. Durante a Segunda Guerra trabalhou no serviço de ambulâncias em Londres, recolhendo vítimas dos bombardeios, gente queimada, mutilada, esviscerada. Sua imaginação entretanto ficou particularmente marcada pelos filmes militares sobre os campos de extermínio e as bombas nucleares.
Todas essas experiências violentas tinham como foco de ação o corpo humano. Em nenhuma outra era da história os corpos foram submetidos a formas tão extremas e extensivas de controle, disciplina, vigilância, experimentação científica, robotização, massificação, manipulação e destruição coletiva. Ao mesmo tempo, a explosão das comunicações gerava uma miríade de imagens que, paradoxalmente, tirava todo o poder das representações visuais, na medida em que elas se tornavam ícones vazios e distantes da realidade concreta das pessoas. Ao agravamento das contingências do corpo, correspondia uma inflação visual que desvalorizava suas formas de representação, entorpecendo a percepção do processo crescente de perda da dignidade da criatura humana. Bacon buscava alternativas para essa equação nefasta. Não era a sua pintura que era maldita.
Sua primeira obra de grande impacto é o tríptico de 1945, "Três Estudos para Figuras na Base de um Crucifixo". Ele representa figuras monstruosas, deformadas ainda mais pelo esforço de um riso compulsivo e sarcástico, contra um escandaloso fundo cor de laranja. A confusão começou pelo título, pois o que Bacon tinha em vista era uma passagem de Ésquilo relativa à crueldade sádica das Fúrias da mitologia grega, como contraponto irônico ao teor sacrificial da civilização cristã. No contexto do fim da guerra, a obra foi interpretada como um desrespeito aos sofrimentos sem precedentes causados pelo conflito e como uma distorção de mau gosto da figura humana, incompatível com o otimismo da reconstrução democrática. Considerou-se como uma perversão do próprio Bacon aquilo que ninguém queria reconhecer em si e que a guerra pusera às claras para quem quisesse ver sem o filtro das conveniências. Sylvester inicia a exposição com um estudo para essa obra, raro e apresentado pela primeira vez ao público, tendo em vista que o pintor destruiu a maior parte de suas obras iniciais.
O que explica em grande parte o papel peculiar e a originalidade da obra de Francis Bacon, deriva do fato de ele nunca ter frequentado nenhuma academia ou escola de artes. O que lhe garantia a independência tanto em relação a compromissos com o passado ou com a modernidade quanto com quaisquer tendências, estilos ou correntes artísticas. No seu esforço para observar o corpo humano com crueza e não com crueldade ou mistificação plástica, ele faria uso sobretudo da fotografia. Uma vez mais não a fotografia como gênero artístico, mas imagens de livros médicos, os fotogramas de análise do movimento de Muybridge, fotos casuais da imprensa ou encomendadas ao seu amigo de bar John Deakin. Foi estudando o fotograma do grito da ama-seca quando perde o carrinho na escadaria de Petrogrado, no "Encouraçado Potemkin", de Eisenstein, que ele concebeu o papel decisivo da boca aberta como foco visual para exprimir as tensões emocionais mais profundas do corpo. Essas fotos lhe permitiam trabalhar os efeitos do afastamento frio e impessoal dos cientistas, técnicos e das instituições.
Outra das suas fontes era a arte barroca. Como seus grandes temas são o Poder e a Fé, do primeiro ele deriva o sentido da autodisciplina e do segundo o impulso da autopunição, ambos nascidos de uma compulsão exacerbada de culpa.
Daí nasceu sua impressionante série de "papas", baseada em distorções apavorantes da tela "Papa Inocêncio 10º", de Velásquez. A partir dessa matriz Bacon se voltaria para a pintura dos retratos de seus amigos, dentre os quais há vários na atual exposição, com destaque para os do pintor Lucien Freud, de Henrietta Moraes e de seus modelos e ex-amantes Peter Lacy e George Dyer. A relação com Dyer foi particularmente tormentosa e ele acabou morrendo de overdose num banheiro de hotel em Paris. Bacon lhe dedicou dois trípticos envolvendo os temas da autoviolência, drogas, alienação e morte, um premonitório, em 1964, e outro após a tragédia, em 1973, uma das obras em que ele elevou ao clímax sua trilogia do patos humano: solidão, dor e silêncio.
Tanto quanto o corpo propriamente, o espaço que o circunscreve é um dos elementos chaves da imaginação artística de Bacon. Ele é sempre claustrofóbico, homogêneo, anódino, vazio de nexos afetivos, como um quarto de hospital, de hotel, uma cela, uma jaula ou teatro cirúrgico. Nele as personagens estão sós, em geral nuas, retorcidas sob o apelo das compulsões físicas a que se entregam, as drogas, o sexo, a masturbação, a exibição narcisista, a vergonha, a vertigem ou a agonia. Uma ou outra peça irrelevante de mobiliário, uma ponta de cigarro, garrafa vazia ou seringa hipodérmica. Mas a grande mágica está sempre no pincel. Bacon trabalha com a ciência descondicionadora dos borrões, das massas grossas e granuladas de tinta, das sinuosidades dançantes e aleatórias, das texturas opacas e superfícies rarefeitas, sempre preocupado em deslocar quaisquer apoios por meio dos quais o observador pudesse reencontrar o conforto convencional das aparências. A última obra da exposição é um de seus inúmeros auto-retratos. Nele se reconhece o artista que é o último representante da grande tradição figurativa da arte ocidental. Lá está a imagem que pode ser a do meu ou do teu corpo e, definitivamente, o retrato da nossa condição.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura do departamento de História da USP.



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