São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

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POESIA
A luz preta

SYLVIO BACK
especial para a Folha

O poeta João da Cruz e Sousa é um estigma literalmente escuso da literatura brasileira. Por ser uma exceção provocante na então sociedade escravocrata do século 19, sua soberba negritude acabou por matá-lo aos 37 anos. Sua "igualdade" era demais. O preto no branco, preto-e-branco. Desde o início ele soube, como se uma película de nitrato fora, que seria "incendiado". E não "incensado" - simbólico expediente comum na alvorada do cinema (que lhe foi vizinha), quando as salas eram perfumadas durante a exibição de filmes místicos. Como o personagem de "Le Petit Soldat", de Godard, Cruz e Sousa tentava abarcar a tela, entrar na cena, assumir a visibilidade de ilusão. Inutilmente. Sua ambição e obra ficaram na penumbra do "mainstream" da poesia do seu tempo. A exemplo do então "bizarro" cinematógrafo, o "Assinalado" ("A Terra é sempre a tua negra algema..." ) sobreviveu à madrastice dos contemporâneos. Antes que vitimá-lo, a posteridade reservou-lhe o portal da glória. Fragmentariamente biografado, sua trajetória em Nossa Senhora do Desterro (nome original de Florianópolis, SC) -do nascimento em 1861 ao Rio de Janeiro entre 1890 e 1898-, assemelha-se a um filme velado. Sobram vácuos e contornos anímicos que mais confundem do que decifram. Mesmo que se queira desideologizar o personagem, desenraizá-lo d'África ou "despaisá-lo" do Sul, aproximar-se dele por meio de sua órfica e lunar poesia será sempre uma metáfora sobre a tragédia que é ser negro no Brasil -em todos os tempos. Essas reflexões vêm a propósito do filme "Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro", em cujo roteiro invisto não "apenas" no mote "quem é", mas "o que é" João da Cruz e Sousa, filho de escravos, poeta, "ponto" de teatro, jornalista, amanuense. Um negro de "alma branca" -segundo o torpe perfil que a lenda chancelou? Um preto apaixonado por loiras germânicas, flertando com um vocabulário de corte nórdico, valquiriano, e cuja poesia tem induzido críticos a disfarçadamente até "nazificá-lo" avant la lettre (ao ponto de, como Roger Bastide, contar os fonemas que "trairiam" sua etnia)? Ou "o negro que não conhecia seu lugar", um "preto estrangeiro" (na expressão do amigo e testamenteiro Nestor Vítor)? Então um negro culto e abusado, sempre elegante e galante, na busca por uma auto-arianização como atalho para ascender, fugir da casta (talvez espelhando-se no seu igual-desigual Machado de Assis -um "mulato à inglesa", como se dizia numa época em que ninguém queria ser negro ou cafuso)? Ou o pânico letal do crioulo gênio, crente que basta o talento para ser reconhecido -sem desconfiar que para além do racismo mais vil germina o cancro da inveja. Nem a desgraça pública e a morte prematura de Cruz e Sousa redimiram os seus algozes das redações, dos suplementos literários, das editoras, da repartição, das rodinhas e tertúlias literárias. Nem o negro bem-sucedido José do Patrocínio, de olho na história ao pagar seu enterro, inconscientemente sobre o caixão deitou em forma de coroa o alívio e o escárnio de toda uma geração. A pessoalmente ciclópica obra de Cruz e Sousa, única em toda a língua portuguesa, é a maior vingança. Estes os virtuais quadros do futuro "movie" sobre Cruz e Sousa -a contrapelo da perversa mitologia- aguardando por vida a 24 quadros por segundo: Cruz e Sousa é o vagão de gado, o cadáver tísico, batom de sangue fresco nos lábios -ao colo grávido da amada Gavita, a "preta doida" do Encantado. Cruz e Sousa é o andor que alegre carrega as paixões pela atrizinha branca Julieta dos Santos e pela adolescente Pedra Antióquia, negra "deidade linda" -sua noiva-donzela por oito anos. Cruz e Sousa é o tantã da musa atávica, "vozes veladas, veludosas vozes/ Volúpias dos violões.../ ... Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas". Cruz e Sousa é a sombra chinesa que passa incógnita pela sofisticada rua do Ouvidor, empobrecido, adoecido e tão "enegrecido" quanto todos os exilados pela cor. Cruz e Sousa é o próprio rio "amargamente sepulcral, lutuoso, amargamente rio" -nele suicidando-se em sonhos de grandeza literária e nobreza social. Cruz e Sousa é a fome de Gavita e dos filhos, "indigência terrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada...", que ele inerme assiste de um palco mambembe. Cruz e Sousa é a solitária vela acesa no altar -encimado com sua última foto-, onde os parcos e fiéis simbolistas lhe "rezam" os poemas em uníssono. Cruz e Sousa é a pomba-gira que baixou à revelia no terreiro da poesia brasileira, desossando-a de toda e qualquer possibilidade de um duplo. Cruz e Sousa é o excitado Eros ("Carnais, sejam carnais tantos desejos...") a banhar-se nas areias desérticas da lagoa da Conceição no Desterro. Cruz e Sousa é o voyeur impertinente da vaziez provinciana que o expele, como depois a Corte o tritura. Cruz e Sousa é a abolição das senzalas, das tribunas e guerrilhas literárias: " (Escravocratas) eu quero castrar-vos como um touro -ouvindo-vos urrar!". Cruz e Sousa é o "emparedado" -a atroz rejeição e desqualificação inclusive entre os seus, para quem sempre foi "branco demais". Cruz e Sousa é a efígie do olhar ebúrneo no túmulo do cemitério São Francisco Xavier do Rio de Janeiro, testemunhando a própria ressurreição. Cruz e Sousa é "a luz preta" que enche a brancura telúrica da tela.


Sylvio Back é cineasta e poeta. Prepara atualmente as filmagens de um "docudrama" de longa-metragem sobre Cruz e Sousa.




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