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POLÍTICA
Faces da imoralidade
A morte do índio Galdino envolve o mais cruel dos crimes, o da indiferença
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JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha
Como seria de esperar, o resultado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, amenizando a pena
dos assassinos de Galdino Jesus
dos Santos, provocou uma forte
reação de indignação. Fala-se de
incentivo à impunidade e de complacência para com os crimes cometidos pelos privilegiados no
Brasil. De fato, neste país os poderosos gozam de favores impensáveis em outros lugares. Mas, pergunto, é isto o que mais importa
no assassinato de Galdino? Acho
que não. Como disse o jurista
Márcio Tomaz Bastos: "A Justiça
deve ouvir a voz das ruas, mas tem
de agir com cuidado para não cair
na chamada teoria do pêndulo,
onde se elege um cristo para aplacar a consciência de um país que
vive num mar de impunidade".
Do ponto de vista moral, o crime
praticado pelos garotos de Brasília
vai além de um assassinato hediondo, com ou sem intenção de
matar a vítima. Ele é a cara de nossa cultura neste fim de século. No
discurso oficial, o Brasil aumentou seu Produto Nacional Bruto
para cerca de US$ 800 bilhões,
portanto o país enriqueceu. Não
obstante o enriquecimento, temos
a mais alta taxa de desemprego
desde 1985 e uma das piores concentrações de renda do planeta. A
questão é simples: para onde vai
todo o dinheiro vindo da exploração das riquezas naturais e da população assalariada? Uma grande
parte, sabemos, vai para o bolso
dos especuladores "globalizados"
e para o financiamento de empresas multinacionais. O que sobra fica com os ricos e a alta classe média que não medem o que gastam
em Miami e Nova York, não param de engordar as contas dos paraísos fiscais e só pensam em investir na especulação imobiliária e
financeira ou no turismo moral e
ecologicamente predatório, como
mostra o infeliz exemplo do Nordeste. A situação é aceita com a
maior tranquilidade pelos que têm
voz e vez na condução político-econômica da nação. É assim que
deve ser, pois é isto que recomenda o civilizado "Primeiro Mundo",
alegremente empolgado com o
"exemplo brasileiro". O termo
"brasilianização" tornou-se sinônimo de ricos cada vez mais ricos,
pobres cada vez mais pobres.
Este universo de feroz desprezo
pelo que é humanamente relevante é o berço de milhares de jovens
socioculturalmente aparentados
aos assassinos de Galdino. Desde
cedo, eles se habituam a ver, pelos
vidros dos automóveis de luxo, o
espetáculo de humilhação e brutalidade do "estranho" mundo vizinho ao seu: garotos sem ter o que
comer ou tendo que assaltar velhos, mulheres e crianças para
conseguirem o que eles têm com
um estalar de dedos e um piscar de
olhos. Quando adolescentes, adquirem a linguagem que dá o toque de classe a seus projetos e
preocupações. Nas conversas com
familiares e amigos o assunto é
sempre o mesmo: quem é mais rico e famoso do que quem; qual a
próxima viagem à estação de esqui; quando ocorrerá o próximo
show de desperdício consumista
nas cidades americanas; como o
povo brasileiro é "atrasado e corrupto" e como os europeus, japoneses e americanos são moral e intelectualmente superiores à nós. O
Brasil que interessa é o das patriotadas midiáticas sobre acontecimentos esportivos, nos quais, novamente, o foco da atenção são os
milionários salários dos craques
em qualquer coisa.
Pois bem, o que este perdulário
mundo de dólares e facilidades
materiais tem a ver com mendigos
sujos, famintos e estropiados vivendo em canos de esgoto e debaixo de viadutos ou dormindo sob
marquises de lojas e abrigos de
pontos de ônibus? Ou, indo direto
à conclusão e dispensando argumentos intermediários: o que os
garotos assassinos aprenderiam
sobre justiça e liberdade apodrecendo nos porões infectos de prisões, se jamais tiveram condições
sociais ou psicológicas de pensar
no que estas palavras significam!
Pode-se dizer que o castigo teria
efeito exemplar e dissuasivo, que
levaria os condenados a assumirem a responsabilidade pelo que
fizeram e que mostraria a força da
lei num país de infratores crônicos. É possível. Mas, com exceção
do castigo imposto aos criminosos, que tem mais gosto de vingança do que aspecto de justiça, temos
o direito de perguntar se a exibição da força da lei em "feriados
morais" resolve o cotidiano de indecências, injustiças, desigualdades e desumanidade em que estamos mergulhados. Por que não
imaginamos penas que, efetivamente, comprometam os garotos
com o trabalho de se transformarem moralmente, adquirindo o
sentido de responsabilidade para
com os outros? Por que não imaginá-los trabalhando em favor dos
proscritos deste país, em vez de
envenená-los com o germe do ressentimento, do medo, do ódio ou
da frustração? Por que, enfim, não
pensar que tais iniciativas só vêm à
cabeça de uns poucos cidadãos
porque à maioria não interessa resolver o lixo moral que alimentou
o espírito daqueles jovens!
Não é preciso muito esforço para
ver o quanto andamos, depois do
crime de Brasília. O que os abastados "papais e mamães", indignados com a "monstruosidade", fizeram para mostrar aos filhos que
ninguém tem o direito de decidir
sobre quem deve viver ou morrer?
Para responder, é suficiente olhar
o que se passa ao lado. No Rio, para falar no que vejo, os vôos para
os centros de compra americanos
estão cada dia mais lotados. Nas
ruas, o cortejo de reluzentes carros importados, dirigidos por jovens ricos, não pára de crescer,
nem de furar sinais vermelhos depois da meia-noite, nem de ultrapassar os limites de velocidade do
novo código de trânsito. Fora isto,
o que surgiu de novo na cena cultural retrata bem os costumes morais das moderníssimas elites econômicas, políticas e intelectuais.
Importamos outro jargão, novinho em folha, e em inglês, é óbvio.
De agora em diante, os jovens ricos vão cansar de ouvir, nos escritórios, na imprensa, nas universidades, nas casas e nos papos com
os "mais experientes" que o atual
modelo de desenvolvimento social
é o do "market pulled", em vez do
tradicional "science pushed".
Mas, falta acrescentar, como o
"market" só puxa o que dá lucro,
esperemos novos desabrigados
pelas inundações, novos apagões,
novos desabamentos, novos assaltos, novas falcatruas, novos sequestros, novas drogas, novas
compras e vendas de votos, novas
mortes em hospitais precários,
novos recordes de analfabetismo,
novos sem-terra, novos desempregados, enfim, tudo conforme o
figurino do "market pulled".
Aprendemos pouquíssimo com
a dolorosa morte de Galdino. Esquecemos que o crime de Brasília
é um crime de indiferença, o mais
cruel dos crimes. Este crime pode
até ser punido com prisão, mas
prisão não basta, pois falta algo essencial aos jovens criminosos, a
consciência do horror que praticaram. Se aqueles garotos fizeram o
que fizeram é porque também foram desumanizados pela insanidade da ganância que insiste em
reduzir o tamanho do homem à
pequenez abstrata do dinheiro.
Neste momento, outros jovens
deste país continuam aprendendo
a desdenhar dos "perdedores" e
dos que não podem frequentar
shopping centers; continuam
aprendendo que viver é competir e
que a vida sem valor de mercado
simplesmente não tem valor algum; continuam aprendendo que
uma vida eticamente orientada
pela cooperação, solidariedade e
respeito pelos mais frágeis é uma
estupidez criada por incompetentes sem inteligência e capacidade
para oferecer alternativas aceitáveis ao deus Mercado. Por fim,
aprenderão que eles próprios nada
valem, quando caem em desgraça,
pelo fato de trazerem à tona as faces da imoralidade que ninguém
quer ver. Lévinas dizia: "A justificação da dor do Outro é o começo
e o cerne de toda imoralidade".
Quando vamos entender isso?
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor
de medicina social na Universidade Estadual do
Rio de Janeiro; é autor de "Inocência e Vício -
Estudos sobre o Homoerotismo" e "A Ética e o Espelho da Cultura".
E-mailjfreirecosta@ax.ibase.org.br
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