São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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MC2

Oscilando entre a padronização e as demandas locais de diferentes culturas, a maior rede de fast food do mundo sintetiza as contradições do capitalismo avançado

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Pessoalmente não gosto do McDonald"s.
Poucas vezes estive num deles, levado por meus netos ou quando precisei comer depressa, considerando um Mac uma espécie de injeção para evitar a fome, mais que uma refeição real.
Por outro lado, como estudioso, acredito que a ascensão global dessa rede de lanchonetes é um fenômeno interessante, que merece ser estudado por historiadores econômicos, sociais e sobretudo culturais.
Um historiador econômico, por exemplo, indicaria que a empresa foi fundada na década de 1940 por Dick e Maurice McDonald, mas comprada e vastamente expandida por Ray Kroc a partir dos anos 1950.
Kroc, um imigrante tcheco, foi aparentemente o primeiro empresário que aplicou os princípios da produção em massa a um setor de serviços, concentrando-se não só na padronização do produto mas também na maneira como é servido, reduzindo os custos e também oferecendo aos clientes um grau considerável de previsibilidade.
Em conseqüência de suas inovações, hoje cerca de 50 milhões de pessoas por dia comem em um McDonald's em mais de 120 países.
Um historiador social, em contraste, provavelmente se interessaria mais pela disseminação da prática social de comer em restaurantes. Outro tópico que se presta à análise social é a ascensão do hambúrguer.
Se dermos ao hambúrguer uma definição ampla, podemos recuar nossa história até os nômades tártaros medievais, que levavam consigo bolinhos de carne moída (daí o nome "steak tartare"). Os imigrantes alemães, muitos deles de Hamburgo, levaram o bolinho de carne moída para os EUA no século 19 (daí o nome hambúrguer).
A combinação do hambúrguer com pão (no modelo do sanduíche, uma invenção britânica do século 19) parece ter sido idéia de um vendedor na Feira Mundial de St. Louis, em 1904 -ou talvez um pouco antes, em 1895, do proprietário de uma lanchonete em New Haven chamada Louis"s Lunch.
A partir de 1934 os hambúrgueres foram vendidos em uma rede americana de restaurantes conhecida como Wimpy (nome de um personagem da história em quadrinhos "Popeye").
Os motivos do sucesso desse tipo de alimento não são difíceis de encontrar. Visitantes nos Estados Unidos no início do século 20, pelo menos em grandes cidades como Nova York e Chicago, notaram o ritmo acelerado da vida cotidiana. A "fast food" fazia parte dessa vida.

Valores díspares
Para um historiador cultural, por outro lado, interessam outros aspectos do que poderíamos chamar de fenômeno McDonald's". Por exemplo, as políticas da empresa oferecem um exemplo fascinante de interação entre o global e o local.
A padronização do hambúrguer é uma das chaves do sucesso internacional do McDonald"s (alguns economistas medem o desempenho de diferentes economias comparando os preços de um Big Mac).
No entanto essa padronização passou a coexistir com tentativas do que se poderia chamar de localização -adaptar o produto às necessidades de certos mercados nacionais.
A companhia vende McHuevo no Uruguai, McBurrito no México e Maharaja Mac na Índia (substituindo a carne de boi por carneiro). No Japão, os clientes comem Teriyaki McBurger e fritas com sabor de algas marinhas, enquanto nas campanhas publicitárias a figura do "Ronald McDonald" foi substituída por uma mulher em trajes elegantes.
O estudo da cultura é de modo geral o estudo dos significados e símbolos. No caso do McDonald's, um historiador cultural deve considerar o que os restaurantes e seus produtos significaram para seus clientes, para seus inimigos e para os cientistas sociais que passaram a estudá-los.
O sociólogo americano George Ritzer, ao desenvolver algumas das idéias centrais de seu famoso antecessor Max Weber sobre o tema da racionalização, chegou a falar na "mcdonaldização da sociedade".
Com isso ele quis dizer que a rede de lanchonetes ilustra e personifica valores modernos como eficiência, padronização, velocidade e possibilidade de cálculo. Para outro sociólogo americano, Benjamin Barber, esses restaurantes simbolizam o capitalismo, o imperialismo cultural e a globalização -ou o que resume como "mcmundo".
O que o McDonald"s significa para seus clientes? Ele é de modo geral considerado amistoso com as crianças, e muitas vezes são as crianças que levam os adultos a ele, e não o contrário.
No entanto a empresa tem significados diferentes em lugares diferentes.
Na Europa Ocidental, por exemplo, é uma alternativa barata e simples aos restaurantes mais elegantes e caros. Por isso atrai especialmente a classe trabalhadora e os estudantes assim como os pais de crianças pequenas ou pessoas que precisam comer apressadamente. Em outras partes do mundo, porém, a clientela é mais de classe média.
Em minha primeira visita a São Paulo, em 1986, fiquei surpreso ao ver um McDonald's na Avenida Paulista, em um prédio elegante que já pertenceu a um rico cafeicultor.
As reações à disseminação do McDonald"s no Japão, na Coréia, China e em Taiwan foram estudadas por uma equipe de cinco antropólogos americanos.
Eles notaram que os clientes que entrevistavam geralmente viam as refeições como simples lanches. Os restaurantes eram de modo geral considerados caros, por isso freqüentá-los era sinal de uma ocasião especial, que poderia justificar pegar um táxi. Então qual era sua atração?
Eles ofereciam um exemplo e um sinal de modernidade ocidental, não apenas devido ao ambiente higiênico, mas também ao auto-serviço e às filas, símbolos de democracia.
Em certo sentido, os clientes estavam comprando um pedaço do "american way of life". O simbolismo torna-se ainda mais evidente quando pensamos no momento em que o primeiro McDonald's abriu na China e na Rússia.
Nos dois países o ano era 1990, coincidindo na Rússia com o fim da União Soviética e do regime comunista e, na China, com a abertura do país ao comércio internacional -em outras palavras, o capitalismo.
O que o McDonald"s significa para seus inimigos? Certamente ele já provocou muitos protestos. Um panfleto intitulado "O que há de errado com o McDonald's" circulou amplamente em várias línguas na década de 1990.
As acusações iam de publicidade enganosa a crueldade com animais e baixos salários dos funcionários e culminaram no célebre caso "McLibel" em Londres, em 1995-7, em que o juiz expressou certa simpatia pelos protestos.
Os manifestantes são um grupo extremamente variado, que inclui cristãos, vegetarianos, ecologistas, agricultores e defensores dos direitos dos animais ou da herança culinária local. De todo modo, queixas específicas não bastam para explicar a força dos protestos.
Os franceses que quebraram as vitrines de um McDonald"s em Millau, no sul da França, em 1999 certamente estavam protestando contra a globalização, considerada uma americanização, assim como protestavam contra a concorrência desleal.
De maneira mais branda, um ministro da Cultura da França, Jack Lang, fez algo parecido quando descreveu a ascensão do inglês como língua global como um caso de "mcdonaldização lingüística".
Outra empresa que se tornou símbolo de imperialismo cultural, é claro, é a Coca-Cola. Seus críticos muitas vezes falam da "coca-colonização" do mundo.
É a fraqueza assim como a força das duas companhias o fato de terem se tornado símbolos de algumas das principais mudanças culturais e econômicas de nosso tempo.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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