São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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Entre o céu e inferno

Chato e difícil, romance do escritor uruguaio mergulha o leitor na insignificância

ANDRÉ SANT"ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Estaleiro", de Juan Carlos Onetti, é um livro difícil, chato.
"O Estaleiro" não contém uma história bem contada, não surpreende por sua linguagem, não estimula a imaginação do leitor. "O Estaleiro" significa muito pouco.
Onetti trabalha enfurnado na insignificância, com personagens insignificantes, em um cenário insignificante, onde nada de fantástico jamais acontece.
Mas, caso o leitor esteja disposto a se concentrar profundamente em nada, é bem provável que se depare com emoções das mais desconcertantes na insignificância da leitura de "O Estaleiro". É provável que ele sinta uma agonia profunda, sinta o cheiro da morte, o gosto do nada.
Santa Maria é a cidade criada por Onetti para abrigar grande parte de sua obra, uma cidade da América do Sul que poderia ser Montevidéu (cidade natal de Onetti), Rosário Central, Belo Horizonte, Porto Alegre ou qualquer outra de médio porte.
Santa Maria é a cidade de onde Larsen -principal personagem do livro e de toda a obra do escritor uruguaio- havia sido expulso, cinco anos antes da ação de "O Estaleiro", após montar um bordel de velhas prostitutas, o que lhe valeu o apelido de Junta-Cadáveres.
"Junta-Cadáveres", aliás, é também o título do livro no qual acontece a expulsão de Larsen.
A história dessa expulsão, embora tenha se passado antes da ação de "O Estaleiro", foi escrita alguns anos depois -"O Estaleiro" é de 1961, enquanto "Junta-Cadáveres" [Planeta] é de 1964.
Na Santa Maria de "O Estaleiro", Larsen, Junta-Cadáveres, assume a gerência de um estaleiro decadente da Jeremias Petrus Sociedade Anônima, uma empresa decadente de um empresário decadente.
A partir daí, chega a haver um esboço de trama, onde funcionários decadentes tentam puxar o tapete de outros funcionários decadentes, tentam prejudicar os negócios decadentes do decadente Jeremias Petrus, enquanto o decadente Larsen se envolve com mulheres decadentes, como a mulher de um subalterno, como a filha louca do patrão. Amores estranhos. E mais nada. Como já foi dito, a trama de "O Estaleiro" pouco ou nada significa.

Algo para acontecer
É bem possível que a literatura não tenha utilidade alguma no dia-a-dia das pessoas, mas, se ela tem alguma importância, é justamente pelo fato de criar vida onde não há nada, de extrair emoções importantes de onde só há rotina, tédio e repetição.
Juan Carlos Onetti escreve frases e parágrafos longos, descrevendo detalhadamente a paisagem, os pensamentos dos personagens, os diálogos, as emoções e os acontecimentos propriamente ditos, tudo ao mesmo tempo.
Não se trata de palavras que se associam para gerar uma reflexão posterior, mas de palavras que fazem com que todos os significados sejam decodificados no exato momento da leitura, ao vivo, como se fossem o próprio pensamento materializado.
Atmosfera.
Ao ler "O Estaleiro", temos sempre a sensação de que algo muito importante vai acontecer a qualquer momento, como a morte, mais ou menos assim:
"A manhã estava límpida, cinza e azul, e sua luz aplacada olhava imóvel, atenta, livre de impaciência. Os charcos abertos no barro estavam ainda transparentes e espelhavam, cobertos pela geada; ao fundo, distantes e escassas, as árvores das chácaras enegreciam umedecidas. Larsen parou, tentou compreender o sentido da paisagem, escutou o silêncio. "É o medo." Mas já não o preocupava; era como uma dor suave, conhecida e companheira de uma enfermidade crônica, da qual na realidade não se vai morrer, porque já só é possível morrer com ela."


ANDRÉ SANT"ANNA é escritor, autor de "O Paraíso É Bem Bacana" (Cia. das Letras).


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