São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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O espião oficial

Da Guerra das Malvinas a Guantánamo, "O Afegão", do best-seller Frederick Forsyth, apresenta as nações não-ocidentais como terra de caos e barbárie

LEANDRO KARNAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao lançar "O Afegão", Frederick Forsyth sabia o que estava fazendo. Há muito interesse do público ocidental pelas histórias de espionagem , terrorismo e guerra.
A mesma fluidez narrativa presente em "O Dia do Chacal" ou em "O Dossiê Odessa" [ed. Record] mostra que o inglês, nascido em 1938, não perdeu a criatividade e força.
O livro aqui resenhado está desenvolvido sobre um tema de sucesso garantido: o perigo do "terrorismo islâmico".
O romance trata da infiltração de um agente ocidental na temida rede Al Qaeda. Para isso, agita-se o planeta, e a narrativa passa da Guerra das Malvinas à prisão de Guantánamo [em Cuba]; de uma cabana no meio do nada na fronteira EUA-Canadá até cavernas do Afeganistão.
A pergunta angustiante: qual o plano que os terroristas estariam elaborando? O leitor é enredado num ritmo alucinante das descobertas, em competente tradução.
O mérito de todo texto sobre teorias conspiratórias é dar sentido linear a uma realidade global complexa.
Esse é o segredo de "O Código da Vinci" [ed. Sextante]: o mundo fica mais palatável, pois é reduzido a posições claras, divididas em ações boas e más.
O fascínio da escrita de Forsyth é que evoca muitos fatos recentes, como o conflito no Afeganistão, a ditadura de Saddam Hussein e a Guerra da Bósnia.
O real mistura-se à ficção. Quem lê (e aceita) fica resgatado da nebulosa pós-moderna e volta a uma sensação hegeliana de uma história com sentido e direção: "Ah, então foi assim?", admira-se o leitor.

"Vacina da verdade"
Seria a tentação de sentido a mais grave do texto? Absolutamente não. A ficção livre é a base da literatura. Acontece que o romance estabelece sentido a partir da islamofobia tradicional do Ocidente. Sutil, Forsyth faz personagens esclarecerem os verdadeiros sentidos da jihad e como os fundamentalistas seriam traidores dos ideais verdadeiros do islã.
Roland Barthes, décadas antes, diria tratar-se da "vacina da verdade", recurso narrativo pelo qual nós introduzimos um vírus atenuado na explicação para defendê-la de críticas maiores, ou seja, fazemos críticas menores para preparar o terreno para a aceitação do enunciado maior.
Vejamos pequenos exemplos. Lemos no "Afegão" que surgiram "quatro fanáticos locais" (naturalmente islâmicos) e, mais, foram "todos içados da sarjeta numa madrassa" [escola religiosa baseada nos ensinamentos do Corão].
O movimento do wahhabismo é classificado como o mais "severo e intolerante do islã".
Os militantes teriam ódio de tudo e de todos que não pertencessem "à sua fé distorcida". Ao analisar um tesoureiro de um grupo islâmico, Forsyth o classifica com um divertido pleonasmo: "Banqueiro fanático"!
Mas nem sempre isso é tão grosseiro ou declarado. Vemos uma douta explicação de um especialista ocidental dizendo que uma "guerra santa" não pode, segundo as sagradas regras do Corão, eliminar mulheres e crianças.
Poucas páginas depois, um soldado que trabalhara para o serviço secreto britânico e vive agora numa pacata cidade inglesa pede diariamente perdão a Deus pelos homens que matara a serviço do seu país.
O penitente agradece nunca ter matado uma mulher, criança ou inocente. Assim, o ocidental acaba fazendo o papel do guerreiro virtuoso, curiosamente, a partir do código islâmico. Seria coincidência a proximidade das duas explicações no livro?
Ao narrar o episódio da elevação de Maomé, a chamada Al-Isra, o especialista ocidental descrito no livro afirma que "os muçulmanos, principalmente os fanáticos, encaram com muita seriedade a Al-Isra".
Soaria estranho que um cristão fosse chamado de fanático por crer que Jesus ressuscitou?
Seria ofensivo aos luteranos que o movimento reformista do século 16, de busca das fontes originais da religião, fosse classificado como fanatismo de gente iletrada, como o wahhabismo é no livro?

Memória etnocêntrica
Há um momento no qual descobrimos a realidade colonial: Serra Leoa, antes uma "riquíssima colônia britânica", virou "uma sucursal do inferno na África" e agora "infestada de caos, banditismo, sujeira, doenças, pobreza e braços e pernas mutilados".
Logo, lemos implicitamente, a independência deve ter sido um erro, pois os africanos estavam melhores sob o controle de Londres.
Nada da guerra atual em Serra Leoa parece ter relação com o passado britânico. Em todo o livro as ações ocidentais são majoritariamente organizadas, e os lugares ocidentais são modelos de racionalidade.
Os outros? O caos, a não-civilização e a barbárie...
Não quero estragar o prazer possível de quem deseja iniciar a leitura do texto. Apenas sugiro, para encerrar, uma reflexão da duplicidade de valores que a literatura ocidental utiliza para constituir a si como memória.
Quando o restante da resistência talebã enfrenta forças muito superiores num martírio previsível, são classificados de "fanáticos e irracionais".
Recuemos no tempo. Quando 300 soldados espartanos fazem o mesmo sob ordem do rei Leônidas, são heróis por toda eternidade e merecem estátua, história em quadrinhos e filme recente de Hollywood.
Em suma, a irracionalidade ocidental é a entrada da glória, a islâmica é fruto do fanatismo.
Aqui está a chave para entender nossa memória construída etnocentricamente. Clio, a musa da história, nasceu na Grécia.
Assim, Alexandre continua sendo "o grande" por ter levado a morte ao Afeganistão, e o heleno Leônidas é lúcido como kamikaze. Considerando que Clio fala grego e inglês sem sotaque, poderia começar a estudar árabe ou pachto?


O AFEGÃO
Autor: Frederick Forsyth
Tradução: Sylvio Gonçalves
Editora: Record
(tel. 0/xx/21/2585-2000)
Quanto: R$ 40 (384 págs.)

LEANDRO KARNAL é professor de história no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas,em SP.


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