São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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Ponto de fuga

Cave canem

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Sir Kenneth Clark abre seu livro "Civilização" (Martins Fontes) descrevendo a vista que se tem a partir de uma ponte sobre o Sena, em Paris: Notre-Dame, o Instituto de França, o Louvre. Escreve: "O que é civilização? Não sei. Não posso defini-la em termos abstratos ainda. Mas creio que posso reconhecê-la quando eu a vejo; e estou olhando para ela agora". Há alguns anos, essa paisagem sensível foi ameaçada por uma via expressa a ser aberta nas margens do rio. Os protestos foram gerais, o plano se interrompeu, realizado apenas em parte e salvando o essencial. Civilização exige tempo, sedimentação, e é tão fácil de destruir.
Nas ruínas de Pompéia, na Casa do Poeta Trágico, certo mosaico figura um mastim acorrentado. Traz a inscrição "cave canem": cuidado com o cão. Manoel de Oliveira o mostra em "Um Filme Falado". Incluiu também uma cena engraçada e emocionante: no cais, um cachorrinho está amarrado à proa de um barco que se aproxima e se afasta. O bicho se desespera com esse vai-e-vem, dando-lhe folga para logo arrastá-lo à beirada da água, ameaçando-o com um banho. Isso se passa no velho porto de Marselha, no qual, em 600 a.C., chegaram os gregos para fundar a cidade. História, mito e lenda não podem dissociar-se, diz o cineasta. Formam uma única intuição do tempo, da memória, do passado e permitem reconhecer a civilização por trás das palavras e das ruínas. Ela é indizível e sobretudo frágil. Um cão fantasma protege os fantasmas da casa em Pompéia; um outro, vivo, aprisionado pela instabilidade, se debate num cais antiqüíssimo. O efêmero na persistência. O transitório no contínuo.

Boneca
"Um Filme Falado" tem o tom da metáfora ou da parábola. Mas não oferece chaves para os símbolos nem explicita a moral. Na primeira parte, a mãe, jovem, bela professora de história, vai, com sua filha, menina bem comportada, atenta e inteligente, encontrar o marido, piloto de aviões que está na Índia. Aproveita para fazer um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Sai de Lisboa em direção a cidades marcadas pelo tempo: Marselha e Pompéia, Istambul, Nápoles, Atenas. Com a precisão e a clareza de um manual, ensina à garotinha e ao público do cinema. Encarrega-se de transmitir o passado.
As imagens são sempre muito diretas e simples; a câmera se contenta em mostrar. Nem mesmo revela tanto. Edifícios estupendos, paisagens magníficas surgem num anticlímax de neutralidade. A imaginação é mais importante. Vale mais o guia turístico que superpõe, sobre a foto da ruína, a transparência indicando como era o edifício intacto; vale mais respirar o ar nesses lugares de outrora do que celebrá-los pelos artifícios do cinema.
Na segunda parte, três mulheres famosas que envelheceram, encarnadas por três célebres atrizes que, elas também, no mundo real, envelheceram, conversam, cada uma em suas (verdadeiras) línguas de origem, francês, italiano e grego.
Entendem-se perfeitamente. A professora e sua filha incorporam-se ao grupo, reunido à mesa do capitão. Nostalgia individual e passado coletivo se mesclam; tudo é cortesia discreta, sem maldades, sem afetação. A sensação "civilizada" é tangível, nesse mundo feminino.

Sila
A professora e sua filha vão à busca do pai distante que comanda engenhos rápidos e modernos, tão diversos dos barcos lentos, desde a noite dos tempos singrando o Mediterrâneo. A quilha do navio corta as águas, imagem que volta sempre, pontuando a narração. Lembra a de Ulisses, mítico fundador de Lisboa, navegador incessante. Inquieta no seu avanço sem fim (para onde? Qual a chegada? Qual o futuro?).

Caribdes
"Cave canem", tenha medo do cão, tenha medo pelo cão. Não parece muito possível nem, na verdade, muito útil, detalhar as angústias de "Um Filme Falado". Manoel de Oliveira está do lado da civilização. Teme por ela. Gosta das diferenças de línguas, inda mais quando afloram em vozes femininas, portadoras de um mundo aconchegante, pacífico, melhor. Enquanto ameaças terríveis se ramificam em sinais obscuros e o mal se infiltra por caminhos sem nome.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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