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Ponto de fuga
Cave canem
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Sir Kenneth Clark abre seu livro "Civilização" (Martins Fontes) descrevendo a vista que se tem a partir de
uma ponte sobre o Sena, em Paris:
Notre-Dame, o Instituto de França, o Louvre. Escreve: "O que é civilização? Não sei.
Não posso defini-la em termos abstratos
ainda. Mas creio que posso reconhecê-la
quando eu a vejo; e estou olhando para ela
agora". Há alguns anos, essa paisagem sensível foi ameaçada por uma via expressa a
ser aberta nas margens do rio. Os protestos
foram gerais, o plano se interrompeu, realizado apenas em parte e salvando o essencial. Civilização exige tempo, sedimentação, e é tão fácil de destruir.
Nas ruínas de Pompéia, na Casa do Poeta
Trágico, certo mosaico figura um mastim
acorrentado. Traz a inscrição "cave canem": cuidado com o cão. Manoel de Oliveira o mostra em "Um Filme Falado". Incluiu também uma cena engraçada e emocionante: no cais, um cachorrinho está
amarrado à proa de um barco que se aproxima e se afasta. O bicho se desespera com
esse vai-e-vem, dando-lhe folga para logo
arrastá-lo à beirada da água, ameaçando-o
com um banho. Isso se passa no velho porto de Marselha, no qual, em 600 a.C., chegaram os gregos para fundar a cidade. História, mito e lenda não podem dissociar-se,
diz o cineasta. Formam uma única intuição
do tempo, da memória, do passado e permitem reconhecer a civilização por trás das
palavras e das ruínas. Ela é indizível e sobretudo frágil. Um cão fantasma protege os
fantasmas da casa em Pompéia; um outro,
vivo, aprisionado pela instabilidade, se debate num cais antiqüíssimo. O efêmero na
persistência. O transitório no contínuo.
Boneca
"Um Filme Falado" tem o tom da metáfora ou da parábola. Mas não oferece chaves
para os símbolos nem explicita a moral. Na
primeira parte, a mãe, jovem, bela professora de história, vai, com sua filha, menina
bem comportada, atenta e inteligente, encontrar o marido, piloto de aviões que está
na Índia. Aproveita para fazer um cruzeiro
pelo Mediterrâneo. Sai de Lisboa em direção a cidades marcadas pelo tempo: Marselha e Pompéia, Istambul, Nápoles, Atenas.
Com a precisão e a clareza de um manual,
ensina à garotinha e ao público do cinema.
Encarrega-se de transmitir o passado.
As imagens são sempre muito diretas e
simples; a câmera se contenta em mostrar.
Nem mesmo revela tanto. Edifícios estupendos, paisagens magníficas surgem num
anticlímax de neutralidade. A imaginação é
mais importante. Vale mais o guia turístico
que superpõe, sobre a foto da ruína, a
transparência indicando como era o edifício intacto; vale mais respirar o ar nesses lugares de outrora do que celebrá-los pelos
artifícios do cinema.
Na segunda parte, três mulheres famosas
que envelheceram, encarnadas por três célebres atrizes que, elas também, no mundo
real, envelheceram, conversam, cada uma
em suas (verdadeiras) línguas de origem,
francês, italiano e grego.
Entendem-se perfeitamente. A professora e sua filha incorporam-se ao grupo, reunido à mesa do capitão. Nostalgia individual e passado coletivo se mesclam; tudo é
cortesia discreta, sem maldades, sem afetação. A sensação "civilizada" é tangível, nesse mundo feminino.
Sila
A professora e sua filha vão à busca do pai
distante que comanda engenhos rápidos e
modernos, tão diversos dos barcos lentos,
desde a noite dos tempos singrando o Mediterrâneo. A quilha do navio corta as
águas, imagem que volta sempre, pontuando a narração. Lembra a de Ulisses, mítico
fundador de Lisboa, navegador incessante.
Inquieta no seu avanço sem fim (para onde? Qual a chegada? Qual o futuro?).
Caribdes
"Cave canem", tenha medo do cão, tenha
medo pelo cão. Não parece muito possível
nem, na verdade, muito útil, detalhar as angústias de "Um Filme Falado". Manoel de
Oliveira está do lado da civilização. Teme
por ela. Gosta das diferenças de línguas, inda mais quando afloram em vozes femininas, portadoras de um mundo aconchegante, pacífico, melhor. Enquanto ameaças
terríveis se ramificam em sinais obscuros e
o mal se infiltra por caminhos sem nome.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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