São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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"Game Over" analisa, a partir de relatos de jogadores, a relação entre videogames e violência no Brasil

A catarse eletrônica

LUCIA LEÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quais são as relações entre as experiências vividas em momentos de lazer e o mundo intrapsíquico? Games violentos afetam o equilíbrio mental? Como colocou a artista Kathleen Ruiz, será que "nossa "re-creação" nos "re-cria'"? O trocadilho fica ainda mais interessante quando pensamos nas múltiplas interconexões de sentidos que circundam os termos "recreação" e "criação". Conceitos como formar, gerar, instruir, educar, distrair, restaurar, renovar, reanimar e alegrar estimulam a emergência de uma constelação de elos formigantes, reveladores de curiosas dinâmicas.
A tarefa de discutir a violência dos jogos de computador e as questões emocionais que podem emergir desse hábito tem sua importância e seus percalços. Instigadas por associações diretas entre os mundos simulados (games) e mundos físicos, muitas pesquisas se acomodam em respostas lineares e enfatizam uma visão determinista.
A pedagoga e educadora Lynn Alves, da Universidade Estadual da Bahia, consciente das armadilhas reducionistas, trilha o caminho da pesquisa qualitativa em busca dos aspectos complexos que permeiam esse tema. "Game Over - Jogos Eletrônicos e Violência" [ed. Futura, 256 págs., R$ 32] tem o mérito de examinar os games a partir de relatos de indivíduos que vivenciam experiências imersivas periodicamente nesse universo. Sua investigação, simultaneamente estruturada e aberta, busca revelar a multivocalidade, isto é, as diferentes vozes que compõem um caleidoscópio incessantemente mutável.
O livro é composto por oito capítulos. O primeiro, "Brincar é Coisa Séria", destaca a relevância dos jogos no desenvolvimento integral dos indivíduos e dos grupos. Alves parte da premissa de que os jogos são tecnologias intelectuais, conceito extraído de Pierre Lévy, e, adotando a visão do historiador Johan Huizinga, propõe o jogo como elemento instaurador da cultura.
No livro "Homo Ludens" (Perspectiva), Huizinga nos fala que jogar é um ato voluntário, que implica evasão da vida real e estabelece um universo paralelo, com uma ordem própria e limites definidos de tempo e espaço. Além disso, jogar envolve momentos de tensão que derivam tanto das incertezas quanto de acasos. Ainda nesse primeiro capítulo, a autora avança por territórios da educação e, seguindo Vigotsky, afirma que o brincar e a interação com os jogos são instrumentos que alicerçam a aprendizagem de regras.
Os capítulos dois e três se dedicam aos games propriamente ditos e articulam os conceitos de cultura da simulação de Sherry Turkley, cultura do caos de Rushkoff e outros. Em seu relato a respeito do universo dos videogames, Alves oferece um breve panorama da evolução tecnológica, traça paralelos com o cinema e discorre sobre "interatividade e novos avatares". Além disso, debatem-se as classificações de games.
Em "Faces da Violência", quarto capítulo do livro, a autora caminha por reflexões advindas da antropologia, das ciências sociais e da psicanálise. Sua pesquisa incita a rever concepções enraizadas, como aquelas que falam que "a violência aparece onde o poder está em risco" (Arendt) e da "hostilidade primária dos seres humanos" (Freud).
Ao focar nos grupos, a escolha da citação do psicanalista Jurandir Freire Costa nos conduz a uma visão lúcida, e a violência emerge como "uma particularidade do viver social, um tipo de negociação que, pelo emprego da força ou da agressividade, visa a encontrar soluções para conflitos que não se deixam resolver pelo diálogo e a cooperação".
O capítulo cinco desvela a hipótese de que os games são espaços de catarse. Em defesa dos efeitos terapêuticos da catarse, a escrita de Alves evoca o processo em suas etapas de identificação, economia de afetos e purificação do ser.
A imersão no universo das LAN houses (capítulo seis) é a porta de entrada para a descrição do método qualitativo (capítulo sete) e a seleção de narrativas. "Nas Teias dos Discursos" congrega relatos de cinco indivíduos que interagem constantemente com "games".
Entre os temas abordados, destacam-se as visões que os "gamers" têm a respeito de violência, de um modo em geral, e nos jogos, vícios e estratégias. Estruturados a partir de um questionário, os depoimentos reunidos emocionam ao mesmo tempo em que perturbam.
Segundo Lynn Alves, a percepção e a consciência do efeito catártico é uma constante nas falas dos entrevistados. Na conclusão final, embora sem negar os problemas que acompanham o processo de estetização e espetacularização da violência, a autora reafirma sua tese de que a agressividade que emerge nos jogos atua de forma construtiva e favorece a ressignificação de insatisfações.
Nesse sentido, "Game Over" nos remete às purificações que Aristóteles associava à experiência estética. A catarse, assim compreendida, é uma válvula de escape que estimula a liberação de desordens emotivas e afetos exagerados e, se na época aristotélica podia ser estimulada pela poesia, teatro e música, Lynn Alves propõe que é possível hoje irromper em LAN houses e no ciberespaço.
Mas, algo ainda mais transformador nos é oferecido por meio desse livro. Ao lermos as narrativas dos jovens autores-atores da pesquisa, uma face menos evidente da violência se introduz. As histórias contadas pelos "gamers" nos recordam de outro valor também caro ao mundo grego: "métron", a justa medida. Jogar demais vicia, e tudo o que é em excesso -ou fora dos limites- desequilibra. A violência que emerge da falta de moderação é aterradora.


Lucia Leão é professora na Faculdade de Matemática, Física e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora de "O Labirinto da Hipermídia" (Iluminuras).

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