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"Game Over" analisa, a partir de relatos de jogadores, a relação entre videogames e violência no Brasil
A catarse eletrônica
LUCIA LEÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quais são as relações entre
as experiências vividas em
momentos de lazer e o
mundo intrapsíquico? Games violentos afetam o equilíbrio
mental? Como colocou a artista Kathleen Ruiz, será que "nossa "re-creação" nos "re-cria'"? O trocadilho fica
ainda mais interessante quando
pensamos nas múltiplas interconexões de sentidos que circundam os
termos "recreação" e "criação".
Conceitos como formar, gerar, instruir, educar, distrair, restaurar, renovar, reanimar e alegrar estimulam
a emergência de uma constelação de
elos formigantes, reveladores de curiosas dinâmicas.
A tarefa de discutir a violência dos
jogos de computador e as questões
emocionais que podem emergir desse hábito tem sua importância e seus
percalços. Instigadas por associações diretas entre os mundos simulados (games) e mundos físicos,
muitas pesquisas se acomodam em
respostas lineares e enfatizam uma
visão determinista.
A pedagoga e educadora Lynn Alves, da Universidade Estadual da Bahia, consciente das armadilhas reducionistas, trilha o caminho da pesquisa qualitativa em busca dos aspectos complexos que permeiam esse tema. "Game Over - Jogos Eletrônicos e Violência" [ed. Futura, 256
págs., R$ 32] tem o mérito de examinar os games a partir de relatos de
indivíduos que vivenciam experiências imersivas periodicamente nesse
universo. Sua investigação, simultaneamente estruturada e aberta, busca revelar a multivocalidade, isto é,
as diferentes vozes que compõem
um caleidoscópio incessantemente
mutável.
O livro é composto por oito capítulos. O primeiro, "Brincar é Coisa
Séria", destaca a relevância dos jogos
no desenvolvimento integral dos indivíduos e dos grupos. Alves parte
da premissa de que os jogos são tecnologias intelectuais, conceito extraído de Pierre Lévy, e, adotando a
visão do historiador Johan Huizinga, propõe o jogo como elemento
instaurador da cultura.
No livro "Homo Ludens" (Perspectiva), Huizinga nos fala que jogar
é um ato voluntário, que implica
evasão da vida real e estabelece um
universo paralelo, com uma ordem
própria e limites definidos de tempo
e espaço. Além disso, jogar envolve
momentos de tensão que derivam
tanto das incertezas quanto de acasos. Ainda nesse primeiro capítulo, a
autora avança por territórios da
educação e, seguindo Vigotsky, afirma que o brincar e a interação com
os jogos são instrumentos que alicerçam a aprendizagem de regras.
Os capítulos dois e três se dedicam
aos games propriamente ditos e articulam os conceitos de cultura da simulação de Sherry Turkley, cultura
do caos de Rushkoff e outros. Em
seu relato a respeito do universo dos
videogames, Alves oferece um breve
panorama da evolução tecnológica,
traça paralelos com o cinema e discorre sobre "interatividade e novos
avatares". Além disso, debatem-se
as classificações de games.
Em "Faces da Violência", quarto
capítulo do livro, a autora caminha
por reflexões advindas da antropologia, das ciências sociais e da psicanálise. Sua pesquisa incita a rever
concepções enraizadas, como aquelas que falam que "a violência aparece onde o poder está em risco"
(Arendt) e da "hostilidade primária
dos seres humanos" (Freud).
Ao focar nos grupos, a escolha da
citação do psicanalista Jurandir Freire Costa nos conduz a uma visão lúcida, e a violência emerge como
"uma particularidade do viver social, um tipo de negociação que, pelo
emprego da força ou da agressividade, visa a encontrar soluções para
conflitos que não se deixam resolver
pelo diálogo e a cooperação".
O capítulo cinco desvela a hipótese
de que os games são espaços de catarse. Em defesa dos efeitos terapêuticos da catarse, a escrita de Alves
evoca o processo em suas etapas de
identificação, economia de afetos e
purificação do ser.
A imersão no universo das LAN
houses (capítulo seis) é a porta de
entrada para a descrição do método
qualitativo (capítulo sete) e a seleção
de narrativas. "Nas Teias dos Discursos" congrega relatos de cinco indivíduos que interagem constantemente com "games".
Entre os temas abordados, destacam-se as visões que os "gamers"
têm a respeito de violência, de um
modo em geral, e nos jogos, vícios e
estratégias. Estruturados a partir de
um questionário, os depoimentos
reunidos emocionam ao mesmo
tempo em que perturbam.
Segundo Lynn Alves, a percepção
e a consciência do efeito catártico é
uma constante nas falas dos entrevistados. Na conclusão final, embora
sem negar os problemas que acompanham o processo de estetização e
espetacularização da violência, a autora reafirma sua tese de que a agressividade que emerge nos jogos atua
de forma construtiva e favorece a
ressignificação de insatisfações.
Nesse sentido, "Game Over" nos
remete às purificações que Aristóteles associava à experiência estética.
A catarse, assim compreendida, é
uma válvula de escape que estimula
a liberação de desordens emotivas e
afetos exagerados e, se na época aristotélica podia ser estimulada pela
poesia, teatro e música, Lynn Alves
propõe que é possível hoje irromper
em LAN houses e no ciberespaço.
Mas, algo ainda mais transformador nos é oferecido por meio desse
livro. Ao lermos as narrativas dos jovens autores-atores da pesquisa,
uma face menos evidente da violência se introduz. As histórias contadas pelos "gamers" nos recordam de
outro valor também caro ao mundo
grego: "métron", a justa medida. Jogar demais vicia, e tudo o que é em
excesso -ou fora dos limites- desequilibra. A violência que emerge
da falta de moderação é aterradora.
Lucia Leão é professora na Faculdade de
Matemática, Física e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora de "O Labirinto da Hipermídia" (Iluminuras).
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