São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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Festa MELANCÓLICA

EM ARTIGOS ESCRITOS SOZINHO OU EM PARCERIA E PUBLICADOS EM MAIO DE 1890 EM RAZÃO DO ANIVERSÁRIO DE DOIS ANOS DA ABOLIÇÃO, O FUTURO AUTOR DE "OS SERTÕES" PÕE EM XEQUE O MODO COMO SE DEU A LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS

FRANCISCO FOOT HARDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

À véspera do 13 de maio de 1890, o segundo-tenente Euclides da Cunha e alguns colegas de caserna na Escola Militar, membros do recém-criado "batalhão acadêmico", agrupamento de mobilização pelos ideais jacobinistas republicanos, resolvem confrontar as comemorações festivas e populares que a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro organizava e sugerem uma espécie de contramanifestação, mais solene e menos concorrida, próxima ao que o positivismo entendia dever serem rituais de construção das festas nacionais.
Nada de clubes carnavalescos, agremiações recreativas ou de corrida de cavalos. Apenas discursos à memória de abolicionistas históricos, em perspectiva inspirada no dirigismo utópico de Louis Blanc, que ressalta "a ação maravilhosa dos mortos ilustres sobre o destino humano".

Dispersão do acervo
A ótima notícia da descoberta de três artigos inéditos em livro de Euclides da Cunha (um deles "Amanhã", de autoria exclusiva, e dois outros em co-autoria com dois companheiros de farda), graças ao empenho do incansável Joel Bicalho Tostes e de sua pronta divulgação, no jornal "Democrata", de São José do Rio Pardo (SP) [em 7/5/2005], em matérias da pesquisadora Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda e do cronista Paulo Herculano, se é motivo de júbilo, não causa verdadeira surpresa.
A edição da "Obra Completa", em dois volumes, da Aguilar, de 1966, reimpressa em 1995 sem nenhuma revisão, até hoje fonte recorrente, longe está de merecer esse título. No tocante à crônica jornalística, parte essencial da obra euclidiana, os cerca de 50 textos coligidos, cobrindo o período-chave da passagem da monarquia à república, constituem reunião incompleta. Os três inéditos aqui revelados são prova disso.
Lamentavelmente, o estado precário e dispersão de vários acervos, além do extravio inexplicável de textos importantes citados por estudiosos do euclidianismo, nos anos 1930-60 -entre eles, os "arqueólogos" pioneiros Francisco Venâncio Filho e Olímpio de Sousa Andrade, decisivos quanto à relevância que conferiram a todo o universo textual do autor aquém e além de "Os Sertões"- tornam a tarefa de recuperação algo amaldiçoada (como sempre fazia questão de recordar, ironicamente, Roberto Ventura).

Desilusão
Os dois manifestos feitos a seis mãos têm interesse para o estudo das diversas e conflitantes concepções de "festa nacional" que disputavam posição ao raiar da República. Embora assinalando sua não-filiação ao Apostolado Positivista, é claro que os militares do "batalhão acadêmico" estavam impregnados da visão redentora de uma elite dirigente "forjadora" do proletariado nacional a partir dos ex-escravos emancipados.
Mas, atenção: esse futuro da pátria deveria advir de uma mobilização "pelo alto", imune dos vícios que a sociedade e a turbamulta irremediavelmente contêm. Já o texto solitário de Euclides, inconfundível em seu estilo, assinala algo de sua crescente e melancólica desilusão com os rumos do novo regime. Mesmo tendo marchado, no ano seguinte, com o contragolpe de Floriano, sua distância ideológica e afastamento político da república fardada já emitiam, aqui, sinais mais ou menos claros.
"Amanhã" retoma basicamente a mesma argumentação e estilo de outro artigo abolicionista do jovem cadete Euclides, "Heróis de Ontem", escrito exatamente a 13 de Maio de 1888, em que o movimento de massa presente é substituído pela galeria de vultos símbolos, românticos, de José Bonifácio à princesa Isabel, de Gonçalves Dias e Varela a Castro Alves e Luís Gama.


Francisco Foot Hardman é professor de teoria e história literária na Universidade Estadual de Campinas. Prepara, em colaboração com Leopoldo Bernucci, a edição da "Poesia Reunida" de Euclides da Cunha.

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