São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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Manifestante protesta diante do Estádio Nacional, em Santiago (Chile), contra a visita do presidente George W. Bush, no ano passado

O PODER CANIBAL

O filósofo francês , autor de "Simulacros e Simulação", discute como o conceito de hegemonia tornou obsoleta a idéia de dominação ao incorporar noções em princípio libertárias, como subversão e revolução

Por Jean Baudrillard

Poderíamos dizer que a hegemonia é o estágio supremo da dominação e, ao mesmo tempo, sua fase terminal. Podemos caracterizar a dominação pela relação mestre/escravo, apesar de esta última ser ainda uma relação dual com um potencial de alienação, de relações de força e de revolução. Ainda é uma relação simbólica.
Que outro traço distingue a hegemonia da pura e simples dominação? É a entrada em cena de um acontecimento fundamental: o do simulacro e da simulação. A hegemonia passa pela mascarada generalizada, pelo uso desmedido de todos os signos, pela obscenidade, pela irrisão de seus próprios valores e o desafio lançado ao resto do mundo por esta irrisão e este cinismo (a "carnavalização").
Dito de outra forma, se a dominação clássica, histórica, passava pela introdução autoritária de um sistema de valores positivos por sua ostentação e sua defesa, a hegemonia contemporânea passa, pelo contrário, por uma liquidação simbólica de todos os valores -o que os termos de simulacro, de simulação e de virtual resumem, em que todos os significados vêm se abolir dentro de seu próprio signo, em que a profusão dos signos imita uma realidade doravante inincontrável.

Mascarada da guerra
Trata-se aqui da mascarada total, em que a própria dominação vem danificar-se. O poder, como sabemos, não passa agora de uma paródia dos signos do poder, assim como a guerra também não passa da manipulação dos signos da guerra, da qual a técnica faz parte. Mascarada da guerra, mascarada do poder.
Assim, podemos nos referir a uma hegemonia da mascarada e a uma mascarada da hegemonia.
O que separa a dominação da hegemonia seria então a falência da realidade e a irrupção ultra-rápida, em uma atualidade muito recente, de um princípio mundial de simulação, uma ascendência mundial que é aquela do virtual. A globalização, essa hegemonia de uma potência mundial, só pode ocorrer no quadro do virtual e das redes de uma homogeneidade que é aquela dos signos esvaziados de sua substância.
Toda essa mascarada ocidental baseia-se de fato na canibalização da realidade pelos signos. Ou de uma cultura por ela mesma, no sentido derivado de "canibalizar": canibalizar um automóvel é utilizá-lo aos pedaços, em peças avulsas.
Canibalizar uma cultura é, assim como costumamos fazer, mexer com seus valores como se fossem peças avulsas, ficando a totalidade do sistema fora de uso.
Esta distinção entre dominação e hegemonia é essencial, pois determina evidentemente os modos de resistência próprios de cada uma delas. E todas as perspectivas de evolução de uma situação mundial como a nossa. Não respondemos à hegemonia como respondemos à dominação -não podemos lançar mão da estratégia errada.


É preciso evitar as utopias ingênuas de Maio de 68, como "a imaginação no poder!"

Diante da hegemonia, todo o trabalho do negativo, todo o trabalho do pensamento crítico, da relação de forças perante a opressão ou da subjetividade radical em relação à alienação, tudo isso está (virtualmente) ultrapassado. Simplesmente porque essa nova configuração hegemônica (que está longe de ser ainda a do capital) tem, segundo os meandros da razão cínica ou segundo a astúcia da história, absorvido o próprio negativo, a negatividade enquanto valor de regeneração.
Por uma imensa síndrome de Estocolmo [processo psicológico de simpatia do seqüestrado pelo seqüestrador], os alienados, os oprimidos, os colonizados se alinham do lado do sistema do qual são reféns. Eles estão daqui em diante "anexados", no sentido literal do termo, prisioneiros do "nexus", da rede, conectados para o bem e para o mal.
A dominação pode ser aniquilada de fora para dentro. A hegemonia só pode se inverter, se reverter de dentro pra fora.
Dois paradigmas diferentes, quase opostos: o da revolução, da transgressão, da subversão (dominação); e o da inversão, da reversão, da autodestruição (hegemonia). Quase opostos, pois os mecanismos da revolução (da antidominação) -e a prova histórica já foi feita- podem tornar-se o motor, o próprio vetor, da hegemonia.

Conjuração silenciosa
Três dimensões simultâneas desenham a passagem da dominação para a hegemonia.
1) O capital se transcende e volta-se contra ele mesmo no sacrifício do valor (ilusão econômica). Por assim dizer, ele salta por cima da própria sombra.
2) O poder volta-se contra ele mesmo no sacrifício da representação (a ilusão democrática).
3) O sistema inteiro volta-se contra ele mesmo no sacrifício da realidade (a ilusão metafísica).
Tudo depende da idéia que temos a respeito do poder. Se o pressuposto for aquele da inteligência ou da imaginação no poder, então a persistência da debilidade ou ao menos a ausência permanente de imaginação no poder é inexplicável (a não ser que se suponha uma disposição generalizada das populações em delegar sua soberania aos mais inofensivos, aos menos imaginativos de seus concidadãos; uma espécie de gênio do mal que levaria as pessoas a elegerem o mais limitado, o mais corrupto, num júbilo secreto, um desejo de assistir ao espetáculo da burrice e da corrupção dos homens no poder. Sobretudo durante os períodos de turbulência, os cidadãos dirigir-se-ão em massa para aquele que não os obrigar a refletir, a pensar. Seria uma espécie de conjuração silenciosa -análoga, na esfera política, ao complô da arte em outra área).
Porém é necessário desfazer-se dessa ilusão democrática, proveniente do fundo da ideologia das Luzes, da imaginação ou da inteligência no poder.
É preciso evitar as utopias ingênuas de Maio de 68: "A imaginação no poder!", "considerem seus desejos realidade!", "gozem sem entraves!". Coisas estas que se realizaram, todas, de fato (ou melhor, se hiper-realizaram), por meio do próprio desenvolvimento do sistema.
Ora, se afastarmos essa utopia moral do poder, aquela do poder como ele deveria ser do ponto de vista daqueles que o recusam, se lançarmos a hipótese de que o poder vive apenas por uma paródia, uma simulação de representação, e que ele é bem mais um desafio feito à sociedade que ele manipula; se lançarmos a hipótese do poder como sendo uma função ectoplásmica, porém indispensável, então homens como George W. Bush ou Arnold Schwarzenegger estão cumprindo perfeitamente seus papéis. Não que um país ou um povo tivessem, segundo a fórmula, os dirigentes que merecem, mas porque eles são a emanação da potência mundial como ela é.
A estrutura política dos EUA corresponde exatamente à sua dominação na escala mundial. Bush dirige os EUA da mesma maneira que estes exercem sua hegemonia sobre o resto do planeta (poderíamos até afirmar que a hegemonia da potência mundial está tal qual a imagem do privilégio absoluto da espécie humana sobre todas as outras). Portanto, não existe nenhum motivo para imaginar uma alternativa. Ainda mais porque, nessa função hegemônica, o poder é uma configuração virtual que metaboliza em proveito próprio qualquer elemento.
Pode se constituir de inúmeras partículas inteligentes; isso não modificará em nada sua estrutura opaca -é como um corpo que trocaria suas células sem deixar de ser o mesmo. Assim, cada molécula da nação norte-americana será brevemente, como por transfusão de sangue, proveniente de outro lugar.
Os EUA terão se tornado negros, indianos, hispânicos, porto-riquenhos, sem deixarem de ser os EUA. Ela será mais miticamente norte-americana ainda, quanto mais não o for "autenticamente". E mais fundamentalista quanto menos fundamento tiver (se é que ela jamais teve algum, pois até mesmo os Pais Fundadores tinham vindo de outros lugares). E mais integralista quanto mais tiver se tornado, de fato, multirracial e multicultural. E tanto mais imperialista quanto mais for dirigida pelos descendentes de escravos.
Assim são as coisas. Essa é a lógica sutil e implacável do poder e não pode ser mudada.
Com a eleição de Arnold Schwarzenegger para o governo da Califórnia [em 2003], estamos em plena mascarada, onde a política não passa de um jogo de ídolos e de "fãs". É um enorme passo para o fim do sistema representativo. É a fatalidade do político atual que aquele que apostar no espetáculo, onde quer que seja, morrerá pelo espetáculo. Isso é válido tanto para os "cidadãos" quanto para os políticos. É a justiça imanente à mídia. Vocês buscam o poder pela imagem? Então morrerão pelo retorno-imagem. O Carnaval da imagem é ao mesmo tempo (auto)canibalização pela imagem.

A farsa da história
Essa mascarada mundial da potência passa por sucessivas fases. É primeiramente o Ocidente de um modo mais geral que impõe ao mundo, em nome do universal, seus modelos políticos e econômicos, seu princípio de racionalidade técnica. Esta é a essência de seu domínio. Mas não sua quintessência. Sua quintessência é, para além do econômico e do político, a ascendência da simulação, de uma simulação operacional de todos os valores, todas as culturas, é aí que hoje se afirma a hegemonia da potência mundial.
Não é mais por meio da exportação das técnicas, dos valores, das ideologias, mas pela extrapolação universal de uma paródia desses valores (a democracia se universaliza sob uma forma caricata, irrisória -é sobre o simulacro do desenvolvimento e do crescimento que se organizam os países subdesenvolvidos), é sobre a restituição falsa de suas culturas que se regulam os povos em via de desaparecimento, todos fascinados por um mesmo modelo universal (do qual os EUA, aliás, mesmo antecipando os benefícios, são a primeira vítima).
Após ter imposto sua supremacia pela história, o Ocidente impõe doravante sua hegemonia pela farsa da história. A potência mundial é a do simulacro.

Tradução de Marie Dominique Grandy.

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