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+ política
O sociólogo Candido Mendes fala sobre
a Academia da Latinidade, que reuniu
na Turquia, no mês passado, intelectuais
como Alain Touraine e Gianni Vattimo
para discutirem o islã e a modernidade
IDENTIDADE DE RISCO
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
ENVIADO ESPECIAL À TURQUIA
Ao longo de cinco dias, de 12 a
16 de abril passado, um grupo de intelectuais de projeção internacional reuniu-se
na Turquia, a convite da Academia
da Latinidade, para um colóquio em
torno do tema "Islã, Latinidade e
Transmodernidade".
A Academia, uma iniciativa coletiva liderada pelo professor Candido
Mendes, reitor da universidade que
tem seu nome e membro do Conselho Internacional de Ciências Sociais
da Unesco, foi criada em 2001 com o
propósito de revigorar a interlocução da cultura latina num mundo
crescentemente conformado pela
globalização e pela hegemonia norte-americana. Na entrevista que segue, Candido Mendes fala sobre a
academia e o papel que ela pretende
representar no debate político e intelectual contemporâneo.
Folha - Como surgiu a proposta de
criação da Academia da Latinidade e
quais são seus objetivos?
Candido Mendes - A academia nasceu de uma interrogação generalizada quanto à crise de nosso tempo,
entrevista, sobretudo, a partir de
conceitos como o de "choque de civilizações", de sociedade complexa
ou de um mundo das hegemonias, e
não mais da simples dominação.
Nasceu, sobretudo, de uma indagação quanto à identidade mesma do
que fosse o Ocidente diante da globalização e dos horizontes coletivos
após os Estados nacionais e o avanço
das marginalizações galopantes em
níveis de subcontinentes. Essa problemática refletiu-se nos impasses
de uma cultura da paz e da necessária busca de um diálogo que se exasperaria após o 11 de Setembro e o irromper da "civilização do medo".
Essa problemática comum associou um eixo do pensamento francês, como o de Jean Baudrillard, Edgar Morin e Alain Touraine, Gianni
Vattimo, Federico Mayor, Carlos
Fuentes, Mario Soares, Eduardo
Lourenço e, entre nós, Celso Furtado, Sergio Paulo Rouanet e Helio Jaguaribe. Todos confluíamos em ver
na latinidade o lado aberto ou flexível desse mesmo Ocidente, após o
endurecimento das cruzadas na
proclamação do Salão Oval.
Buscou-se, de saída, a voz mais larga dessa nossa variante cultural,
procurando-a nos seus extremos, no
mundo africano ou na fronteira romena. Mas o inaudito da queda das
torres de Manhattan evidenciou a
importância da interlocução com o
mundo islâmico. A Academia da Latinidade foi a primeira organização
de intelectuais que respondeu ao pedido de diálogo endereçado pelo
presidente do Irã, Mohammad Khatami, ao lado de cá. Fomos a Teerã, a
seguir a Alexandria [Egito] e, agora,
retornamos de Ancara e Istambul
[Turquia].
São três expressões, a iraniana, a
árabe e a turca, que querem buscar o
pluralismo das respostas islâmicas,
tanto quanto a academia insiste em
recusar o fechamento ocidental, tão
em voga hoje na pregação dos "Estados Unidos Bushianos".
Folha - Na sua visão, a latinidade estaria realmente associada a uma perspectiva pluralista?
Mendes - A reflexão sobre a nossa
diferença é a de que a latinidade porta a noção de Estado e dos espaços
públicos diante do mero individualismo saxão. É também o Ocidente
latino que conserva uma visão grupal dos atores sociais diante dos valores de uma sociedade atomizada.
E é esse mundo, nascido do Mediterrâneo, que mantém as matrizes
do verdadeiro pluralismo contemporâneo diante da visão norte-americana de respeito estrito às minorias, desde que se mantenham nos
seus viveiros.
Nem por outra razão, um dos focos hoje mais importantes da academia é o da latinidade nos Estados
Unidos, diante das novas dificuldades à penetração de "chicanos" ou
cubanos.
Aí está o risco de um novo integrismo -expresso por Samuel Huntington no seu "Quem Somos
Nós?"-, o qual propõe a essas novas levas migratórias o compromisso de não se organizarem em grupos
políticos e não forçarem a aceitação
do espanhol como segunda língua
oficial.
Folha - Que atividades a academia
vem realizando nesses anos?
Mendes - A academia, neste qüinqüênio, segue um programa nascido
já do encontro de Gargonza, na Itália, de procurar essas interlocuções-limite em que a defesa de uma identidade cultural se contraponha à terraplanagem identitária decorrente
da avalanche do processo civilizatório. Importante, inclusive, é que nesses espaços da latinidade se mantenha sempre o "vis-à-vis" do que se
busca nas suas fronteiras.
Fomos a Teerã, Alexandria ou a Istambul; como sempre retornamos a
Paris, Lisboa ou Rio de Janeiro. E
nos deslocamos a Nova York para
discutir a descaracterização latina na
Califórnia ou na Flórida. Da mesma
maneira, iremos em setembro próximo ao Haiti, na pergunta extrema
sobre a identidade de uma extraordinária cultura de nossa matriz, que
se encontra ameaçada.
Folha - O que poderiam os intelectuais latinos fazer em favor de um
mundo multilateral?
Mendes - Exatamente, e de saída,
promover o desarme da suspeição
recíproca entre os universos culturais hoje remanescentes, numa tarefa que começa pela desconstrução
desses universos mentais tangidos
para o fundamentalismo.
O eixo, no caso, é a denúncia dessa
passagem, em avalanche, de um
mundo das simples dominações para a nova hegemonia dos "Estados
Unidos Bushianos". Trata-se, como
tão bem salientou Baudrillard, de
forçar a vigência universal de valores, como liberdade ou democracia,
a terem como reverso a subversão
ou o mundo do terrorismo e da desordem instalada.
Qual o sentido da imposição de
tais valores fora da sua percepção
pelas culturas de cada realidade coletiva? E de que forma esse aplastamento hoje prospera por essa virtualização sem saída da realidade, possibilitada pela avalanche midiática?
A latinidade e a busca do multiculturalismo vêm à linha de frente exatamente para impedir a transformação dos universais dos valores do
nosso tempo em seus simulacros,
como crenças impostas até pela
"guerra preemptiva" da atualidade.
Folha - O que representou a conferência realizada recentemente na
Turquia?
Mendes - Uma reunião na Turquia
é inseparável do debate sobre os impactos desse país na União Européia
em contraponto ao Ocidente duro
de Washington. Essa emergência de
novos protagonismos internacionais se dissocia dos marcos geográficos clássicos para reconhecer uma
comunidade de história, em que a
modernidade européia não se dissocia do Império Otomano nas suas
sucessivas expressões de dominação. A "velha" Europa fez-se de confrontações, reconhecimentos, identidades que vencem as fronteiras
continentais para abarcar todo o lago Mediterrâneo, da Turquia ao
Mahgreb norte africano.
Marcos Augusto Gonçalves viajou à Turquia a convite da Academia da Latinidade.
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