São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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O sociólogo Candido Mendes fala sobre a Academia da Latinidade, que reuniu na Turquia, no mês passado, intelectuais como Alain Touraine e Gianni Vattimo para discutirem o islã e a modernidade

IDENTIDADE DE RISCO

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
ENVIADO ESPECIAL À TURQUIA

Ao longo de cinco dias, de 12 a 16 de abril passado, um grupo de intelectuais de projeção internacional reuniu-se na Turquia, a convite da Academia da Latinidade, para um colóquio em torno do tema "Islã, Latinidade e Transmodernidade".
A Academia, uma iniciativa coletiva liderada pelo professor Candido Mendes, reitor da universidade que tem seu nome e membro do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco, foi criada em 2001 com o propósito de revigorar a interlocução da cultura latina num mundo crescentemente conformado pela globalização e pela hegemonia norte-americana. Na entrevista que segue, Candido Mendes fala sobre a academia e o papel que ela pretende representar no debate político e intelectual contemporâneo.

 

Folha - Como surgiu a proposta de criação da Academia da Latinidade e quais são seus objetivos?
Candido Mendes -
A academia nasceu de uma interrogação generalizada quanto à crise de nosso tempo, entrevista, sobretudo, a partir de conceitos como o de "choque de civilizações", de sociedade complexa ou de um mundo das hegemonias, e não mais da simples dominação. Nasceu, sobretudo, de uma indagação quanto à identidade mesma do que fosse o Ocidente diante da globalização e dos horizontes coletivos após os Estados nacionais e o avanço das marginalizações galopantes em níveis de subcontinentes. Essa problemática refletiu-se nos impasses de uma cultura da paz e da necessária busca de um diálogo que se exasperaria após o 11 de Setembro e o irromper da "civilização do medo".
Essa problemática comum associou um eixo do pensamento francês, como o de Jean Baudrillard, Edgar Morin e Alain Touraine, Gianni Vattimo, Federico Mayor, Carlos Fuentes, Mario Soares, Eduardo Lourenço e, entre nós, Celso Furtado, Sergio Paulo Rouanet e Helio Jaguaribe. Todos confluíamos em ver na latinidade o lado aberto ou flexível desse mesmo Ocidente, após o endurecimento das cruzadas na proclamação do Salão Oval.
Buscou-se, de saída, a voz mais larga dessa nossa variante cultural, procurando-a nos seus extremos, no mundo africano ou na fronteira romena. Mas o inaudito da queda das torres de Manhattan evidenciou a importância da interlocução com o mundo islâmico. A Academia da Latinidade foi a primeira organização de intelectuais que respondeu ao pedido de diálogo endereçado pelo presidente do Irã, Mohammad Khatami, ao lado de cá. Fomos a Teerã, a seguir a Alexandria [Egito] e, agora, retornamos de Ancara e Istambul [Turquia].
São três expressões, a iraniana, a árabe e a turca, que querem buscar o pluralismo das respostas islâmicas, tanto quanto a academia insiste em recusar o fechamento ocidental, tão em voga hoje na pregação dos "Estados Unidos Bushianos".

Folha - Na sua visão, a latinidade estaria realmente associada a uma perspectiva pluralista?
Mendes -
A reflexão sobre a nossa diferença é a de que a latinidade porta a noção de Estado e dos espaços públicos diante do mero individualismo saxão. É também o Ocidente latino que conserva uma visão grupal dos atores sociais diante dos valores de uma sociedade atomizada.
E é esse mundo, nascido do Mediterrâneo, que mantém as matrizes do verdadeiro pluralismo contemporâneo diante da visão norte-americana de respeito estrito às minorias, desde que se mantenham nos seus viveiros.
Nem por outra razão, um dos focos hoje mais importantes da academia é o da latinidade nos Estados Unidos, diante das novas dificuldades à penetração de "chicanos" ou cubanos.
Aí está o risco de um novo integrismo -expresso por Samuel Huntington no seu "Quem Somos Nós?"-, o qual propõe a essas novas levas migratórias o compromisso de não se organizarem em grupos políticos e não forçarem a aceitação do espanhol como segunda língua oficial.

Folha - Que atividades a academia vem realizando nesses anos?
Mendes -
A academia, neste qüinqüênio, segue um programa nascido já do encontro de Gargonza, na Itália, de procurar essas interlocuções-limite em que a defesa de uma identidade cultural se contraponha à terraplanagem identitária decorrente da avalanche do processo civilizatório. Importante, inclusive, é que nesses espaços da latinidade se mantenha sempre o "vis-à-vis" do que se busca nas suas fronteiras.
Fomos a Teerã, Alexandria ou a Istambul; como sempre retornamos a Paris, Lisboa ou Rio de Janeiro. E nos deslocamos a Nova York para discutir a descaracterização latina na Califórnia ou na Flórida. Da mesma maneira, iremos em setembro próximo ao Haiti, na pergunta extrema sobre a identidade de uma extraordinária cultura de nossa matriz, que se encontra ameaçada.

Folha - O que poderiam os intelectuais latinos fazer em favor de um mundo multilateral?
Mendes -
Exatamente, e de saída, promover o desarme da suspeição recíproca entre os universos culturais hoje remanescentes, numa tarefa que começa pela desconstrução desses universos mentais tangidos para o fundamentalismo.
O eixo, no caso, é a denúncia dessa passagem, em avalanche, de um mundo das simples dominações para a nova hegemonia dos "Estados Unidos Bushianos". Trata-se, como tão bem salientou Baudrillard, de forçar a vigência universal de valores, como liberdade ou democracia, a terem como reverso a subversão ou o mundo do terrorismo e da desordem instalada.
Qual o sentido da imposição de tais valores fora da sua percepção pelas culturas de cada realidade coletiva? E de que forma esse aplastamento hoje prospera por essa virtualização sem saída da realidade, possibilitada pela avalanche midiática?
A latinidade e a busca do multiculturalismo vêm à linha de frente exatamente para impedir a transformação dos universais dos valores do nosso tempo em seus simulacros, como crenças impostas até pela "guerra preemptiva" da atualidade.

Folha - O que representou a conferência realizada recentemente na Turquia?
Mendes -
Uma reunião na Turquia é inseparável do debate sobre os impactos desse país na União Européia em contraponto ao Ocidente duro de Washington. Essa emergência de novos protagonismos internacionais se dissocia dos marcos geográficos clássicos para reconhecer uma comunidade de história, em que a modernidade européia não se dissocia do Império Otomano nas suas sucessivas expressões de dominação. A "velha" Europa fez-se de confrontações, reconhecimentos, identidades que vencem as fronteiras continentais para abarcar todo o lago Mediterrâneo, da Turquia ao Mahgreb norte africano.


Marcos Augusto Gonçalves viajou à Turquia a convite da Academia da Latinidade.

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