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Abc da pátria
ENTRE O IÍDICHE E O INGLÊS, O NOBEL DE LITERATURA ISAAC SINGER REAVALIA SEU PASSADO NAS CRÔNICAS DE "NO TRIBUNAL DE MEU PAI"
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um traço marcante
da obra de Isaac
Bashevis Singer
(1904-1991), escritor judeu nascido
na Polônia, e que em 1935 emigraria para os EUA, é o fato de
escrever em iídiche -uma língua da família germânica grafada com caracteres hebraicos
que, durante séculos, foi o idioma das comunidades judaicas
ashkenazis da Europa Central.
Com o Holocausto, o iídiche
praticamente desapareceu.
Isaac Singer, entretanto, jamais abandonou a língua materna nos mais de 50 anos em
que viveu nos EUA, o que cria a
singularidade de um autor com
"dois originais" -as traduções
de Singer, Prêmio Nobel de Literatura de 1978, são feitas a
partir do inglês, que por sua vez
estabelece o texto "oficial" de
sua literatura.
Esse detalhe ilustra um dos
aspectos centrais da história do
romance -sua linguagem é a
confluência e tradução de muitas línguas que são a um tempo
códigos e concepções específicas de mundo.
Consciência plurilíngue
E, do ponto de vista biográfico, a vida de Singer, com a infância mergulhada no tenso encontro de línguas, culturas e religiões, pode ser lida como ilustração cristalina do que o teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) chamava de "consciência plurilíngue do
mundo". Os textos de "No Tribunal de Meu Pai" são exemplares nesse sentido. Trata-se
de um conjunto de crônicas autobiográficas em que a formação do autor é retomada em
episódios apresentados mais
ou menos em ordem cronológica e que se encerra nos seus 12
anos (quando conhece "uma
garota morena com olhos escuros como carvão e um sorriso
indescritível").
O tribunal a que o título faz
referência é a instituição judaica do "Bet Din", o tribunal rabínico. Filho de um rabino de
Varsóvia, o futuro escritor passou a infância impregnado de
um senso de justiça religiosa
em que se atravessam a pobreza, a onipresença da palavra escrita como fonte de referência
da "verdade", a disputa das várias correntes conflitantes que
marcam o judaísmo, a consciência de quem está, do ponto
de vista político, em lugar nenhum -e, sobretudo, o peso da
idéia de lar se confundindo
com a idéia de tribunal.
Se nas mãos de Kafka esse último ingrediente daria a síntese aterrorizante que conhecemos em obras como "O Processo" e "O Castelo", em Isaac Singer -um escritor de raiz substancialmente popular, imerso
na oralidade e no humor vivaz,
comunitário, do mundo da aldeia- o resultado é outro.
A diferença central talvez seja esta: no mundo das memórias infantis de Isaac Singer, as
coisas ainda não estão estratificadas na forma de Estado, não
são regulamentos inalterados
por mãos humanas.
Sinais escritos
O juiz é um homem de substância simples que tem de resolver questões miúdas do cotidiano, casos de divórcio ou dúvidas sobre a pureza de gansos
abatidos. O senso de justiça é
uma insegura escolha humana,
a partir de alguns poucos sinais
escritos, aos quais devemos dar
um sentido.
O sentimento de mudança
permanente, muito forte -mudança física e mental, política,
social e econômica, ao deus-dará entre poloneses, russos, alemães, austríacos naquele sombrio limiar da Primeira Grande
Guerra-, vai marcando cada
passo da criança atenta, que
pouco a pouco percebe o anacronismo da ortodoxia paterna
e absorve a perspectiva transformadora de seu irmão mais
velho, depois o poder da literatura, num tempo de utopias.
A força documental das crônicas, ao descreverem o mundo
desaparecido, é temperada pela
perspectiva literária -a história de Isaac Singer é a percepção de um escritor, não o documento frio de um historiador.
Em nenhum momento se
perde a perspectiva da criança
e a sensação de um mundo a
descobrir e inventar; e, em cada
crônica, está presente a afirmação absoluta do valor do indivíduo, princípio e fim de todas as
dúvidas: "Como era vasto o
mundo, e como abundavam nele todo tipo de pessoas e acontecimentos estranhos! (...) E
onde estava Deus, de quem tanto se falava em nossa casa? Eu
estava maravilhado, encantado, extasiado. Sentia que precisava solucionar esse enigma,
sozinho, com meu próprio discernimento".
CRISTOVÃO TEZZA é autor do romance "O Filho Eterno" (Record) e de "Entre a Prosa e a Poesia - Bakhtin e o Formalismo Russo" (Rocco).
NO TRIBUNAL DE MEU PAI
Autor: Isaac Bashevis Singer
Tradução: Alexandre Hubner
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/
xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 49 (360 págs.)
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