São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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+ Literatura

Anarquia nos EUA

Após 27 anos, o cineasta Woody Allen lança em livro nova coletânea de contos, satirizando Nietzsche, Kant e outros

BOYD TONKIN

Woody Allen, escritor? Na verdade, é isso que ele sempre foi. Afinal, a carreira de Allen Konigsberg, do Bronx, teve início em 1952, quando ele começou a vender piadas a um colunista do "New York Post" chamado Earl Wilson.
Allen sempre foi um homem multitarefas e sempre se divertiu com isso. No ano de 1966, que marca sua estréia como diretor, ele também apareceu como ator na primeira versão para as telas de "Cassino Royale", de Ian Fleming; como dramaturgo, com a montagem de sua peça "Don"t Drink the Water" [Não Beba a Água] na Broadway; e, talvez o mais importante, como humorista literário, ao vender sua primeira peça cômica aos exigentes editores da revista "New Yorker".
Sua primeira coletânea literária, "Getting Even" [Ficando Quite], surgiu em 1971; depois, publicou "Sem Plumas", em 1975, e "Que Loucura!", em 1980 [lançados no Brasil pela L&PM].
Por isso, "Mera Anarquia", que traz 18 contos (pouco mais de metade dos quais foram publicados na "New Yorker"), representa o fim de uma seca de um quarto de século para os devotos do humor literário de Allen. E o trabalho mais que justifica a espera.
Críticos impacientes muitas vezes acusaram os filmes de Allen de ignorar a sujeira, a diversidade e até mesmo os perigos da Manhattan real (nos anos 70 e 80, se não agora), em troca de uma sedutora fantasia burguesa.

Fantasia e paródia
Ele admitiu que "a Nova York dos meus filmes é como eu gostaria que a cidade fosse".
Mas realismo social nunca foi seu forte; Allen é um autor de grande originalidade que tece uma terra imaginária, divertida e quase pastoral, definida por amor e perda, sushi e coquetéis, canções clássicas e terapia.
Esse mundo flutua em algum lugar acima e além da sujeira e do ruído das ruas reais da cidade.
Os contos de Allen são confecções igualmente deliciosas: exibições de virtuosidade, ocasionalmente embriagadas de sua própria engenhosidade lingüística.
Eles devem alguma coisa a S.J. Perelman [1904-79], um dos ídolos do autor, gênio cômico que ajudou a criar os melhores roteiros dos irmãos Marx, e ao poético vocabulário das ruas de Nova York que enfeita as páginas de Damon Runyon [1884-1946].
Mas a erudição parodiada é contribuição exclusiva de Allen.
Em seu mais recente trabalho, Nietzsche escreve um livro de dieta, com a colaboração de outros grandes pensadores. "Peça como se estivesse pedindo para todos os seres humanos do planeta", Kant recomenda.
Um detetive particular se esforça por localizar a mais cara trufa branca do mundo. "Dizem que Göring estava a ponto de comê-la quando a notícia do suicídio de Hitler pôs fim à refeição."
O Pato Donald, deprimido, toma Prozac e se preocupa "com a possibilidade de que logo termine em um cardápio cantonês".
E os superastros da cultura vienense do século passado são personagens de um musical cabeça à moda de Stephen Sondheim, com o título "Fun de Siècle" [trocadilho com "fin-de-siècle", com "diversão" no lugar de "fim"], no qual a voraz devoradora de homens Alma Mahler ("cite um nome; ela tirou a tanga para ele") e Ludwig Wittgenstein cantam, em dueto, o número triunfal do espetáculo "Sobre O Que Não Se Pode Falar, Deve-Se Calar".
Allen era, e continua sendo, o incansável profissional cômico completo e criou um personagem para si mesmo como acrobata intelectual que sobrevive por meio de coragem e astúcia entre os filisteus mascadores de charutos da Broadway e de Hollywood.
Essa persona talvez tenha surgido como uma espécie de máscara sagaz. Mas o brilho pirotécnico de "Mera Anarquia" sugere que -em algum ponto do caminho- ela veio a se tornar realidade.

Este texto saiu no "Independent". Tradução de Paulo Migliacci.


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