São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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Lei sem pudor

Brasil criou uma nova modalidade de transgressão, em que a norma é corrompida como se estivesse sendo exercida

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

As novas formas de corrupção e de outras imundícies que cobrem o mundo contemporâneo merecem reflexão moral atenta, que, salvo engano meu, tarda em encontrar seus novos rumos.
Nunca foi tão verdadeira a observação de Hegel: o pássaro de Minerva (representante do saber) só levanta vôo ao cair da tarde. Tenho a impressão, contudo, de que estamos numa noite tão escura que nem mesmo um fogo-fátuo vem nos sugerir caminhos para pensar este nosso inferno.
Não me parece valer o argumento abstrato e de fundo religioso de que sempre foi assim, de que a política, por exemplo, se resume a uma barganha sem nenhum respeito pelo outro e pela palavra dada.
Nossa responsabilidade
Importaria, sobretudo, a sobrevivência do próprio político, que, para isso, precisa a todo custo produzir e reproduzir uma imagem sem nenhum compromisso com a verdade.
Se essa imagem, contudo, é a moeda dele, seu curso é de responsabilidade de todos nós. Não estamos condenados a este vale de lágrimas por causa do pecado original -se é que ele existe-, mas por causa de nossas tramas e tramóias coletivas.
Mesmo do ponto de vista religioso, se somente a morte pode nos livrar daqui, lembremos que precisa ser virtuosa.
Para evitar esses diagnósticos demasiadamente gerais, que servem para justificar bandalheiras de hoje, é preciso exemplificar, distinguir formas históricas de corrupção.
Não convém, por exemplo, confundir a corrupção da política romana com a venda das indulgências praticada pelo papado antes da Reforma Protestante e do Concílio de Trento [ambos no século 16]. A primeira, primordialmente, se infiltrava numa distribuição de benesses com o intuito de criar vínculos de aliança, construir uma clientela.
Nisso difere da prestação de tributos pelos povos dominados por Roma. Quer extorquindo imposto, quer distribuindo benesses e liturgias, a corrupção se configurava, então, na perda das medidas socialmente aceitas no tratamento desigual do outro.

Tudo é permitido
Dentro dessas medidas tudo é permitido. César reclamava, terminada a guerra na Gália, de não ter acumulado segundo seus planos. Cícero, após percorrer suas propriedades amealhando os frutos das colheitas, instalava-se em Roma para viver em grande estilo, socorrendo amigos em apuros financeiros, financiando obras públicas e assim por diante.
Em resumo, essa política de dar e receber é vista como corrupta quando extravasa suas medidas. Se nenhuma dessas operações era possível sem corromper os intermediários, a lei tendia a ser preservada.
Aqui não é o lugar para diferenciar a liturgia romana, caso especial de uma virtude aristotélica chamada magnificência, da liturgia da igreja, que vendia alívio no inferno e até mesmo um lugar no paraíso.
Voltemo-nos para o que interessa no momento, a saber, algumas formas da corrupção capitalista atual, exercidas no contexto de uma democracia formal.
Vícios privados, já o sabemos desde Adam Smith, são travados de modo a resultar em virtudes públicas.
No entanto, ao contrário do que pensam os liberais, essa conversão se faz na presença de um poder mediador de conflitos muito especial.
Nem mesmo uma situação de mercado, isto é, lugar de compra e venda de produtos de origem diversa, subsiste sem um terceiro poder capaz de decidir se a balança está ajustada, se a moeda não é falsa e assim por diante.
O bom funcionamento do mercado depende desse poder mediador, do qual o Estado é sua forma mais estruturada.
Todos nós sabemos, porém, que hoje em dia o Estado está em crise, de um lado, porque não consegue arrecadar recursos necessários ao bom andamento dos serviços que devem estar sob sua responsabilidade; de outro, porque perdeu sua capacidade de controlar um capital que globalizou sua produção e criou um capital financeiro que faz vezes da mediação do Estado.
A triste conseqüência é o drástico aumento da diferença entre a riqueza e a pobreza, com repercussões imediatas na gestão e nas funções representativas da política. É sintomático que a política democrática capitalista tenha sido vista sob o ângulo do mercado.

Transgressão especial
No entanto, na falta desse poder moderador, ela precisa criar por si mesma parâmetros para que se estabilize. Precisa da lei desde que ela seja flexível aos jogos do momento.
No plano mais geral, a corrupção política consiste em se apropriar, com fins privados, do poder e dos fundos públicos sob o manto da lei. Nas condições normais o império dessa lei não é questionado, sendo o transgressor publicamente punido.
Mas nem sempre. Lembremos que [o candidato democrata, em 2000] Al Gore deixou de contestar os resultados fraudulentos da eleição presidencial no Estado da Flórida, o que permitiu a primeira vitória de George W. Bush, simplesmente para não pôr em risco a legitimidade do processo eleitoral e das instituições formais da democracia.
No Brasil isso não existe. Por certo, por todos os lados ocorrem abusos na sua forma mais universal: o político privatiza o poder e parcelas do fundo público burlando a lei. Mas nosso engenho descobriu uma forma de transgressão muito especial, aquela posta como exercício da lei: ela se corrompe como se estivesse sendo exercida.
O exemplo mais evidente dessa inversão nos dá o presidente do Senado, quando, segundo ele, tendo apresentado provas cabais de sua inocência, insiste em permanecer no cargo para, como declarou, respeitar a dignidade da presidência.
Isso diante de seus pares que lhe pedem a retirada do cargo.
Coloca-se, então, como defensor do Estado de Direito, embora assuma ao mesmo tempo o papel de réu e de juiz.
Esse, porém, é um caso entre muitos. Freqüentemente, o presidente da República reafirma em alto e bom tom que ninguém é culpado antes de ser julgado.
Desse modo, se nega a cumprir o preceito de que um funcionário do Estado, estando sob suspeita, deve se afastar do cargo para permitir uma investigação isenta.

Bode na horta
Em conseqüência, um cidadão que passa a ser suspeito depois de ter sido acusado pelo Ministério Público continua a exercer uma função pública, como se isso não fosse contraditório. É como se o bode pudesse ficar na horta enquanto não fosse flagrado comendo verdura.
Mas, como de costume, o presidente dá uma no cravo e outra na ferradura. Seu comportamento, no caso de Silas Rondeau [ex-ministro de Minas e Energia, que deixou o cargo após ter o nome envolvido em investigações da Operação Navalha, da Polícia Federal], é exemplar, e todos esperamos que, de agora em diante, essa venha a ser a regra.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve regularmente na seção "Autores".


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