São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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O pensador tecnocético

"Entre os pensadores da tecnologia, Flusser talvez seja aquele cuja importância mais cresce"

Divulgação
O filósofo Vilém Flusser em foto dos anos 1970


GISELLE BEIGUELMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O filósofo Vilém Flusser (1920-1991) foi pioneiro na reflexão sobre as implicações das telecomunicações e da ciência na produção cultural e artística e um dos precursores da abordagem transdisciplinar do design e da comunicação.
Nascido em Praga, veio para o Brasil fugindo do nazismo, em 1940, onde viveu até 1972, quando voltou à Europa.
Lá morreu em um acidente de carro quando retornava de sua primeira viagem à cidade natal depois da Segunda Guerra.
Prestígio crescente
Sem exagero, o professor da Pontifícia Universidade Católica de SP Arlindo Machado destaca que, "entre todos os pensadores da tecnologia que despontaram no século 20, Vilém Flusser talvez seja aquele cuja importância mais tem crescido".
A atualidade de seu pensamento justifica o aumento de interesse em seus escritos, comprovado pelas várias reedições e novas coletâneas de ensaios sobre o filósofo e de sua autoria.
Poucas dessas publicações, no entanto, têm a qualidade editorial de "O Mundo Codificado - Por uma Filosofia do Design e da Comunicação", organizada por Rafael Cardoso.
Destacam-se aí não só a qualidade gráfica do projeto de Elaine Ramos, uma das marcas já registradas da editora Cosacnaify, mas o cuidado com a tradução, que se revela nos comentários de Raquel Abi-Nâmara (a tradutora) e, especialmente, a edição propriamente dita de Cardoso.

Design significativo
A seleção dos textos, a forma como estão reunidos em três blocos temáticos (coisas, códigos e construções), a introdução crítica -um ensaio do organizador- e um roteiro da procedência e data de publicação dos textos, acompanhados de breve biografia do autor e indicações de leituras e sites aos interessados em Flusser e sua produção, demonstram respeito com o leitor e já seriam suficientes para qualificar a edição.
Contudo, no caso do volume em apreço, a relevância desses elementos é maior, pois atestam coerência intelectual com as idéias de Flusser, haja vista que, para esse autor, design e comunicação não são disciplinas independentes.
São desdobramentos de um mesmo processo de codificação do mundo, e é essa temática que alinhava o conjunto de ensaios ali reunidos.
Para Flusser, fabricar e informar são aspectos do processo de construção do sentido.
Isso se torna mais relevante na contemporaneidade, dado que o design, agora, ao invés de formalizar o mundo existente, passa a ter como objetivo, nas palavras do filósofo, "realizar as formas projetadas para criar mundos alternativos".
Isso nos impõe enfrentar um contexto cultural emergente, conforme deixa claro em um dos ensaios da coletânea, "Forma e Material", em que passamos a lidar com uma "cultura materializadora", que assume as formas resultantes de processos de codificação, ao invés da modelagem imediata.
"Antigamente (desde Platão ou mesmo antes dele), o que importava era configurar a matéria existente para torná-la visível, mas agora o que está em jogo é preencher com matéria uma torrente de forma que brota a partir de uma perspectiva teórica e de nossos equipamentos técnicos, com a finalidade de "materializar" essas formas. (...) Isso é o que se entende por "cultura imaterial", mas deveria na verdade se chamar "cultura materializadora'", diz.

Seres não-naturais
Cético (ou tecnocético?), Flusser parte do pressuposto de que os homens são seres não-naturais.
E a evidência mais cabal dessa não-naturalidade é a codificação do mundo pelos processos de comunicação, que têm por objetivo interpretar o que está ao nosso redor e nos tirar da solidão a que a natureza nos condena, tema sobre o qual se dedica no ensaio intitulado "A Fábrica".
O crescimento intelectual do homem, do ponto de vista de Flusser, está diretamente relacionado à capacidade de transgredir a natureza, criando estratégias de abstração de seu próprio corpo animal e demandando mais e mais educação e preparo crítico.
Nas palavras do próprio genial Flusser: "A fábrica do futuro deverá ser o lugar em que o Homo faber se converterá em Homo sapiens, porque reconhecerá que fabricar significa o mesmo que aprender, isto é, adquirir informações, produzi-las e divulgá-las".

GISELLE BEIGUELMAN é midiartista e professora da PUC-SP. Seu site pessoal é www.desvirtual.com


O MUNDO CODIFICADO
Organização: Rafael Cardoso
Tradução: Raquel Abi-Nâmara
Editora: Cosacnaify (tel. 0/xx/11/3218-1444)
Quanto: R$ 45 (224 págs.)



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