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Os historiadores
estão abandonando
a visão olímpica dos acontecimentos e estão começando a pensar em parceria com as pessoas
cujas histórias
estão contando
Desafios de uma história polifônica
Peter Burke
Em português moderno (e em inglês), tal como em grego antigo, a
palavra "história" é derivada da
palavra "estória". Porém 40 anos
atrás, quando comecei minha carreira de
historiador, alguns de nós, radicais, queríamos negar ou pelo menos minimizar
esse vínculo. Seguindo os exemplos de
Karl Marx (1818-1883) e Fernand Braudel (1902-1985), entre outros, sustentamos que o modo correto de compreender tanto o passado quanto o presente
era analisar estruturas profundas, em vez
de narrar "meros" eventos "superficiais". A narrativa era para romancistas e
jornalistas.
Hoje, não estou tão certo de que haja
um modo correto de compreender o
passado e o presente. Ter lido dois livros
bastante diversos de historiadores cujos
pais foram célebres romancistas ajudou-me a mudar de idéia: "Wallenstein", de
Golo Mann, filho de Thomas Mann, e "O
Queijo e os Vermes" (Companhia das
Letras), de Carlo Ginzburg, filho de Natalia Ginzburg. O primeiro é uma biografia de um famoso líder militar do século
17, o outro resgata da obscuridade um
moleiro herético do século 16. O que eles
têm em comum é que contam bem as
suas histórias. Em termos mais gerais, os
historiadores da minha geração passaram a ter mais respeito pela narrativa, e
não estamos sozinhos nisto. Entre outros
grupos, os sociólogos, os antropólogos,
os filósofos, os teóricos políticos, os advogados e os médicos caminham todos
na mesma direção. O que aconteceu?
A história é paradoxal. Historiadores
radicais rejeitavam a narrativa porque a
associavam a uma ênfase exagerada dos
grandes feitos dos grandes homens, com
uma superestima da importância dos indivíduos na história e especialmente da
relevância dos líderes políticos e militares à custa dos homens e das mulheres
comuns. Agora que a narrativa está de
volta, ela retornou na companhia de uma
crescente preocupação com pessoas comuns e os modos nos quais elas entendem sua experiência, suas vidas, seu
mundo. Tomem o caso do direito, por
exemplo, especialmente nos Estados
Unidos, onde o que é conhecido como o
"movimento da narrativa jurídica" se
desenvolveu nos anos 80.
Em 1995, uma importante conferência
sobre esse tópico foi promovida pela Faculdade de Direito da Universidade Yale,
permitindo que especialistas em literatura e especialistas em direito trocassem
idéias. O movimento da narrativa está ligado à preocupação com grupos tradicionalmente subordinados, em especial
minorias étnicas e mulheres, porque as
histórias contadas por membros desses
grupos desafiam um sistema legal criado
por advogados brancos do sexo masculino, que nem sempre têm suficientemente em vista as necessidades e os interesses
de outros grupos.
Ponto de vista do paciente
De modo semelhante, o crescente interesse
por histórias em círculos médicos está
associado a um cuidado pelo ponto de
vista do paciente, à idéia de que, em alguns aspectos, as pessoas compreendem
seus próprios corpos e suas próprias enfermidades melhor do que os estranhos,
ainda que sejam estranhos com credenciais profissionais (os psicanalistas, é claro, têm escutado seus pacientes há bastante tempo). Além disso, o novo interesse pelas histórias da parte de sociólogos e antropólogos está associado ao
crescente respeito pela inteligência e pela
experiência das pessoas por eles estudadas, que já não são tratadas como simples "objetos" de pesquisa, mas como sujeitos que compreendem a sua própria
cultura e podem ensinar aos "cientistas
sociais" pelo menos o mesmo tanto que
deles podem aprender.
Os historiadores têm caminhado em
direção semelhante, fazendo mais uso
das histórias narradas por indivíduos no
passado, registradas nos arquivos da polícia ou da Inquisição, e incorporando
essas histórias em suas próprias narrativas. Estão abandonando a visão olímpica
e distanciada dos acontecimentos, bem
como a ficção de onisciência que partilhavam com os romancistas tradicionais;
estão começando a pensar a si próprios à
maneira dos antropólogos, como os produtores de suas narrativas em parceria
com as pessoas cujas histórias estão contando.
Em outras palavras, houve um retorno
da narrativa nos estudos sociais, mas, como costuma acontecer em histórias do
regresso do herói, de Ulisses ao filho pródigo, importantes mudanças ocorreram
nesse meio tempo, tanto na comunidade
a que retornaram quanto no caráter dos
próprios heróis. Narrativas históricas,
sociológicas e jurídicas tiveram todas de
mudar para se adaptar às novas circunstâncias. Afinal, os historiadores radicais
de minha geração tinham lá os seus motivos quando atacavam as narrativas tradicionais que reservavam pouco ou nenhum espaço para os eventos que não
fossem políticos, militares ou eclesiásticos. O problema hoje é encontrar uma
nova forma de narrativa capaz de contar
a história das mudanças sociais e culturais que ocorreram de forma gradual e
mais ou menos inconsciente.
Daí o atual interesse entre os historiadores, os sociólogos e outros pelas narrativas "multivocais" ou "polifônicas", em
que diversas pessoas envolvidas nos
mesmos eventos ou nos mesmos processos contam a história desses eventos ou
processos de diversos pontos de vista.
Daí também o interesse em "Rashomon", o célebre filme do diretor japonês
Akira Kurosawa (1910-1998), baseado
em dois contos de um escritor do início
do século 20, Ryonosuke Akutagawa, no
qual diferentes versões de um incidente
que leva a um assassinato são relatadas
pela sogra do morto, por um lenhador,
por um assaltante e, por meio de um médium, pelo próprio assassinado.
Quaisquer que tenham sido as intenções de Kurosawa, a questão para os historiadores nesse tipo de justaposição de
narrativas concorrentes é não tentar decidir a história de quem é a "correta" (como faria um juiz) ou provar que o que tomamos como realidade é uma ilusão
(como faria um filósofo), mas usar as
histórias para reconstruir as atitudes e
valores dos narradores, empregando um
conflito de narrativas para compor uma
narrativa de conflitos.
Há uma outra possibilidade que ainda
não foi explorada em toda a sua extensão, uma possibilidade que talvez não seja fácil investigar a fundo. Culturas específicas podem favorecer ou enfatizar narrativas específicas, que por sua vez oferecem pistas da natureza dessas culturas.
No Japão, por exemplo, inúmeras histórias enfatizam o que foi chamado "a
nobreza do fracasso", transformando
em heróis pessoas incapazes de tornar
seus projetos realidade. Na Rússia, o mito do pai que mata o filho (um tema encontrado nos contos populares em outras partes do mundo, da Irlanda à Pérsia) ganha ênfase incomum, e dois dos
mais famosos czares russos -Ivã, o Terrível, e Pedro, o Grande- de fato mataram seus filhos, transformando o mito
em realidade.
Briga de galos
A idéia da história
que ilumina uma cultura específica é
central no famoso estudo do antropólogo americano Clifford Geertz sobre a briga de galos em Bali, país onde viveu nos
anos 50. Geertz interpretou essas disputas, tão importantes nas vidas de tantos
balineses (em especial dos homens), como uma interpretação de sua cultura,
"uma leitura da experiência balinesa,
uma história que contam a si próprios
sobre si mesmos". Seria imprudente, é
claro, supor que todos os balineses contam a história do mesmo modo, tal como
seria insensato supor que todos os brasileiros contam a si próprios a mesma história em seus Carnavais. Mais uma vez, a
hipótese da "polifonia" é preferível a de
uma única voz ou mensagem.
Seja como for, se apenas aprendêssemos a lê-las, essas histórias talvez nos
dessem acesso às profundidades de uma
cultura que as tradicionais análises sociais ou históricas não alcançaram.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (Ed. Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (Ed. Nova Alexandria), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.
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