São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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Os historiadores estão abandonando a visão olímpica dos acontecimentos e estão começando a pensar em parceria com as pessoas cujas histórias estão contando
Desafios de uma história polifônica

Peter Burke

Em português moderno (e em inglês), tal como em grego antigo, a palavra "história" é derivada da palavra "estória". Porém 40 anos atrás, quando comecei minha carreira de historiador, alguns de nós, radicais, queríamos negar ou pelo menos minimizar esse vínculo. Seguindo os exemplos de Karl Marx (1818-1883) e Fernand Braudel (1902-1985), entre outros, sustentamos que o modo correto de compreender tanto o passado quanto o presente era analisar estruturas profundas, em vez de narrar "meros" eventos "superficiais". A narrativa era para romancistas e jornalistas. Hoje, não estou tão certo de que haja um modo correto de compreender o passado e o presente. Ter lido dois livros bastante diversos de historiadores cujos pais foram célebres romancistas ajudou-me a mudar de idéia: "Wallenstein", de Golo Mann, filho de Thomas Mann, e "O Queijo e os Vermes" (Companhia das Letras), de Carlo Ginzburg, filho de Natalia Ginzburg. O primeiro é uma biografia de um famoso líder militar do século 17, o outro resgata da obscuridade um moleiro herético do século 16. O que eles têm em comum é que contam bem as suas histórias. Em termos mais gerais, os historiadores da minha geração passaram a ter mais respeito pela narrativa, e não estamos sozinhos nisto. Entre outros grupos, os sociólogos, os antropólogos, os filósofos, os teóricos políticos, os advogados e os médicos caminham todos na mesma direção. O que aconteceu? A história é paradoxal. Historiadores radicais rejeitavam a narrativa porque a associavam a uma ênfase exagerada dos grandes feitos dos grandes homens, com uma superestima da importância dos indivíduos na história e especialmente da relevância dos líderes políticos e militares à custa dos homens e das mulheres comuns. Agora que a narrativa está de volta, ela retornou na companhia de uma crescente preocupação com pessoas comuns e os modos nos quais elas entendem sua experiência, suas vidas, seu mundo. Tomem o caso do direito, por exemplo, especialmente nos Estados Unidos, onde o que é conhecido como o "movimento da narrativa jurídica" se desenvolveu nos anos 80. Em 1995, uma importante conferência sobre esse tópico foi promovida pela Faculdade de Direito da Universidade Yale, permitindo que especialistas em literatura e especialistas em direito trocassem idéias. O movimento da narrativa está ligado à preocupação com grupos tradicionalmente subordinados, em especial minorias étnicas e mulheres, porque as histórias contadas por membros desses grupos desafiam um sistema legal criado por advogados brancos do sexo masculino, que nem sempre têm suficientemente em vista as necessidades e os interesses de outros grupos.

Ponto de vista do paciente
De modo semelhante, o crescente interesse por histórias em círculos médicos está associado a um cuidado pelo ponto de vista do paciente, à idéia de que, em alguns aspectos, as pessoas compreendem seus próprios corpos e suas próprias enfermidades melhor do que os estranhos, ainda que sejam estranhos com credenciais profissionais (os psicanalistas, é claro, têm escutado seus pacientes há bastante tempo). Além disso, o novo interesse pelas histórias da parte de sociólogos e antropólogos está associado ao crescente respeito pela inteligência e pela experiência das pessoas por eles estudadas, que já não são tratadas como simples "objetos" de pesquisa, mas como sujeitos que compreendem a sua própria cultura e podem ensinar aos "cientistas sociais" pelo menos o mesmo tanto que deles podem aprender. Os historiadores têm caminhado em direção semelhante, fazendo mais uso das histórias narradas por indivíduos no passado, registradas nos arquivos da polícia ou da Inquisição, e incorporando essas histórias em suas próprias narrativas. Estão abandonando a visão olímpica e distanciada dos acontecimentos, bem como a ficção de onisciência que partilhavam com os romancistas tradicionais; estão começando a pensar a si próprios à maneira dos antropólogos, como os produtores de suas narrativas em parceria com as pessoas cujas histórias estão contando. Em outras palavras, houve um retorno da narrativa nos estudos sociais, mas, como costuma acontecer em histórias do regresso do herói, de Ulisses ao filho pródigo, importantes mudanças ocorreram nesse meio tempo, tanto na comunidade a que retornaram quanto no caráter dos próprios heróis. Narrativas históricas, sociológicas e jurídicas tiveram todas de mudar para se adaptar às novas circunstâncias. Afinal, os historiadores radicais de minha geração tinham lá os seus motivos quando atacavam as narrativas tradicionais que reservavam pouco ou nenhum espaço para os eventos que não fossem políticos, militares ou eclesiásticos. O problema hoje é encontrar uma nova forma de narrativa capaz de contar a história das mudanças sociais e culturais que ocorreram de forma gradual e mais ou menos inconsciente. Daí o atual interesse entre os historiadores, os sociólogos e outros pelas narrativas "multivocais" ou "polifônicas", em que diversas pessoas envolvidas nos mesmos eventos ou nos mesmos processos contam a história desses eventos ou processos de diversos pontos de vista. Daí também o interesse em "Rashomon", o célebre filme do diretor japonês Akira Kurosawa (1910-1998), baseado em dois contos de um escritor do início do século 20, Ryonosuke Akutagawa, no qual diferentes versões de um incidente que leva a um assassinato são relatadas pela sogra do morto, por um lenhador, por um assaltante e, por meio de um médium, pelo próprio assassinado. Quaisquer que tenham sido as intenções de Kurosawa, a questão para os historiadores nesse tipo de justaposição de narrativas concorrentes é não tentar decidir a história de quem é a "correta" (como faria um juiz) ou provar que o que tomamos como realidade é uma ilusão (como faria um filósofo), mas usar as histórias para reconstruir as atitudes e valores dos narradores, empregando um conflito de narrativas para compor uma narrativa de conflitos. Há uma outra possibilidade que ainda não foi explorada em toda a sua extensão, uma possibilidade que talvez não seja fácil investigar a fundo. Culturas específicas podem favorecer ou enfatizar narrativas específicas, que por sua vez oferecem pistas da natureza dessas culturas. No Japão, por exemplo, inúmeras histórias enfatizam o que foi chamado "a nobreza do fracasso", transformando em heróis pessoas incapazes de tornar seus projetos realidade. Na Rússia, o mito do pai que mata o filho (um tema encontrado nos contos populares em outras partes do mundo, da Irlanda à Pérsia) ganha ênfase incomum, e dois dos mais famosos czares russos -Ivã, o Terrível, e Pedro, o Grande- de fato mataram seus filhos, transformando o mito em realidade.

Briga de galos
A idéia da história que ilumina uma cultura específica é central no famoso estudo do antropólogo americano Clifford Geertz sobre a briga de galos em Bali, país onde viveu nos anos 50. Geertz interpretou essas disputas, tão importantes nas vidas de tantos balineses (em especial dos homens), como uma interpretação de sua cultura, "uma leitura da experiência balinesa, uma história que contam a si próprios sobre si mesmos". Seria imprudente, é claro, supor que todos os balineses contam a história do mesmo modo, tal como seria insensato supor que todos os brasileiros contam a si próprios a mesma história em seus Carnavais. Mais uma vez, a hipótese da "polifonia" é preferível a de uma única voz ou mensagem.
Seja como for, se apenas aprendêssemos a lê-las, essas histórias talvez nos dessem acesso às profundidades de uma cultura que as tradicionais análises sociais ou históricas não alcançaram.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (Ed. Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (Ed. Nova Alexandria), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.



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