São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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+ brasil 501 d.C.
O inconsciente é, para Freud, um "território estrangeiro interno": é o equivalente das terras exóticas dos primeiros descobrimentos
O exorcismo do bom e do mau selvagem

Sergio Paulo Rouanet
O ano do quinto centenário da viagem de Cabral está se aproximando do seu fim sem que um dos resultados mais surpreendentes da descoberta do Brasil tenha sido suficientemente destacado: o rejuvenescimento de dois mitos europeus, o mito primitivista do bom selvagem e o mito antiprimitivista do mau selvagem. Em seu continente de origem, o protótipo do bom selvagem foi o centauro Quíron, que cuidava dos doentes e dirigiu a educação de Aquiles. Em sua forma humana, era o selvagem que vivia perto da natureza, longe da corrupção civilizada. Os bons selvagens eram os citas, os frígios, os trácios, povos inocentes, mais puros que os atenienses ou os romanos. Eram os habitantes dos países imaginários, como os nativos das Ilhas Bem-Aventuradas, ou os hiperbóreos. Eram os homens da Idade de Ouro, ou os da infância da humanidade, que segundo Lucrécio eram mais robustos e felizes que seus descendentes. Na Idade Média, era o "homo sylvestris", peludo e sensual, frequentador dos bosques. O mau selvagem teve como protótipo Polifemo, o ciclope canibal. Maus selvagens foram, quase sempre, os bárbaros. A figura do mau selvagem surgia sempre que se delineava alguma concepção de progresso, material ou moral. Durante o chamado iluminismo grego, nos séculos 5º e 4º a.C., os sofistas difundiram a crença na utilidade de novas técnicas, na importância de submeter ao exame crítico os usos e costumes tradicionais, e por isso não podiam aceitar a idéia da superioridade dos homens primitivos. Na Idade Média, a certeza de que o Novo Testamento representava um progresso com relação à antiga lei levou vários pensadores cristãos a recusarem a possibilidade de que os homens anteriores à Revelação pudessem ser virtuosos.

Gente mansa, seres cruéis
Com o descobrimento, os europeus reencontraram tanto o bom quanto o mau selvagem, sem se darem conta de que essas duas figuras faziam parte de um imaginário europeu muito anterior a Cabral. O bom selvagem foi achado no Brasil por Pero Vaz de Caminha (1437-1500), para quem os índios eram "gente boa e de boa simplicidade", mansa e pacífica, vivendo em estado de inocência, isenta de cobiça. Foi achado também por Américo Vespúcio, que falou na "bondade e inocentíssima índole" do gentio brasileiro. Foi achado de novo pelo capuchinho André Thévet, para quem os índios eram corajosos, hospitaleiros e estóicos. Foi achado, enfim, pelo calvinista Jean de Léry (1534-1611), que, invocando o salmo 102, termina seu livro com um hino de louvor à virtude dos índios e à generosidade da terra: "Felizes os povos que a habitam!". Do mesmo modo, os europeus não tiveram dificuldade em redescobrir, no Brasil, a figura familiar do mau selvagem. Desde o início, circularam lendas sobre seres cruéis ou monstruosos que habitavam o Brasil, como os homens acéfalos, os que tinham cabeça de cão, os que tinham pés às avessas ou os que habitavam as profundezas dos rios, arrastando os homens para o abismo. Mas era sobretudo o indígena que encarnava o mau selvagem. Sua maldade precisava ser acentuada pelos colonos, para justificar a escravidão, e pelos jesuítas, para valorizar o trabalho da catequese. Segundo o padre Manuel da Nóbrega (1517-1570), os índios "são cães em se comerem e matarem e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem". Para o padre José de Anchieta (1534-1597), "para este gênero de gentes não há melhor pregação que espada e vara de ferro, na qual mais que em nenhuma outra é necessário o "compelle eos entrare'". O canibalismo dos índios, seus hábitos sexuais nefandos, as práticas de feitiçaria dos seus curandeiros, tudo isso mostrava que os índios estavam sob o império de Satã. Mas o bom e o mau selvagem são animais migrantes, como o salmão e a gaivota. Depois de viajarem da Europa para o Brasil, voltaram à Europa. O bom selvagem brasileiro reapareceu na França, nos "Ensaios" de Montaigne (1533-1592), e mais tarde em Rousseau (1712-1778), que se baseou em grande parte em Montaigne para construir a tese de que o homem era naturalmente bom. No século 18, ele mudou de nacionalidade. Voltaire fez dele um pele-vermelha e Diderot o transformou em polinésio. Sob essas várias formas, o bom selvagem serviu para criticar as instituições européias e nesse sentido ajudou a derrubar a Bastilha. No século 19, ele voltou a ser norte-americano, graças a Chateaubriand. Mas no século 20, ele readquiriu a cidadania brasileira, com Claude Lévi-Strauss. Não podia ser de outro modo, porque o antropólogo francês colocou sua etnografia sob a autoridade de Rousseau, leitor de Montaigne, que se inspirara nos canibais brasileiros. No entanto a bondade natural do selvagem do Brasil não era mais representada pelos tupinambás, mas pelos nambiquaras. Adivinham-se neles, diz Lévi-Strauss, "uma imensa gentileza, uma despreocupação profunda, uma satisfação animal ingênua e encantadora".

Modelo para o Leviatã
Também o mau selvagem regressa à Europa. O que os bárbaros tinham sido para os gregos e os tártaros e os vikings tinham sido para os homens da Idade Média, os canibais da América foram, em parte, para os europeus: alteridade ameaçadora, presença surda do mal. O mau selvagem contribui para redefinir as práticas de feitiçaria. As bruxas européias são figuras tão diabólicas quantos as velhas índias, que participavam de festins canibais, nas ilustrações dos livros de viagens ao Brasil. Ele desempenha um papel importante numa das primeiras teorias políticas da modernidade, a de Thomas Hobbes (1588-1679). O estado de natureza, lugar da luta desenfreada de todos contra todos, do qual o homem é salvo pelo Leviatã, é construído sobre o modelo das sociedades ameríndias, integradas por maus selvagens, que tornam a vida humana "nasty, brutish and short".
No século 18, o mau selvagem concorre em igualdade de condições com seu irmão virtuoso. São maus selvagens os terríveis trogloditas, descritos por Diderot, nas "Cartas Persas". Os partidários da tese que depreciava os primitivos eram os chamados "ferini": os selvagens eram como feras, brutos e frequentemente antropófagos. Voltaire está entre os "ferini". Nos decassílabos de "Le Mondain", ele elogia os luxos e as elegâncias do homem moderno e diz que os primitivos tinham "unhas compridas, um pouco negras e engorduradas e os cabelos um tanto desgrenhados". Lessing satiriza, no "Laocoonte", o nariz achatado e os lábios grossos das mulheres hotentotes.
Aliás o primitivismo não podia deixar de ser contestado num século que estava inventando, com Turgot, a noção de progresso: se tudo progride, não há razão para achar que os homens primitivos são superiores aos modernos. No século 19 e início do século 20, o mau selvagem foi a figura que permitiu a articulação do imperialismo europeu. Nas palavras de Kipling, era o nativo perverso, "meio demônio, meio criança", que precisava ser tutelado pelo homem branco.
Mas sabemos que o bom e o mau selvagem são sujeitos a uma terrível "Wanderlust", uma obsessão migratória incontrolável. De novo, eles atravessam o Atlântico. O bom selvagem de Fenimore Cooper e Chateaubriand volta ao Brasil e reaparece na literatura indigenista de Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar. Ele se reencarna no modernismo brasileiro, por meio do movimento antropofágico. E revive entre vários antropólogos.
O mau selvagem volta sob a forma de estudos feitos na Europa e nos Estados Unidos sobre certas nações indígenas brasileiras, como os ianomamis, violentos e ferozes -os "fierce people". É a imagem, em geral, que certos garimpeiros e pecuaristas têm do índio -inimigo do progresso, selvagem que precisa ser combatido a bala e a motosserra.
Durante sua passagem pela Europa, o bom e o mau selvagem delegaram algumas de suas funções a certos grupos e indivíduos dentro da própria Europa. O bom selvagem era o europeu que, por sua doçura, simplicidade ou valentia, pudesse desempenhar o papel crítico antes reservado aos silvícolas de além-mar.
O século 18 conheceu as crianças-feras, como o "enfant sauvage" do filme de Truffaut, menino encontrado num bosque francês que foi objeto de uma experiência de ressocialização segundo os princípios pedagógicos de Rousseau. O romantismo inventou o bom campônio, como nos romances de George Sand (1804-1876) ou nos quadros de Millet, e o bom proletário, como Fantine e Cosette, em "Os Miseráveis", ou as "grisettes" de Balzac e Henri Murger . No século 20, Foucault e a antipsiquiatria criaram a figura do bom louco, segregado pela razão oficial. O mau selvagem se encarna na figura assustadora das "classes dangereuses", os proletários que ameaçam a ordem e a civilização burguesa. São os canibais dentro das próprias fronteiras. Dumas fala nos "moicanos de Paris" e os criminosos são chamados "apaches". O bom e o mau selvagem colaboraram também com um médico de Viena chamado Sigmund Freud (1856-1934). O criador da psicanálise fez uma espécie de etnografia da alma e pensou o homem moderno em sua continuidade com o primitivo. Em seu desenvolvimento psicogenético, todos os homens passam por um estágio canibal ou oral. Esse canibalismo é semelhante à antropofagia, pela qual os povos primitivos "acreditam que, ao ingerir partes do corpo no ato de devoração, se apropriam também das propriedades que pertenceram a essa pessoa". Ele é a reprodução, em cada indivíduo, do banquete totêmico, pelo qual os irmãos da horda primitiva devoraram o pai, "realizando a identificação com ele, cada qual se apropriando de uma parte de sua força".

Identificação com o pai
A superação do Édipo passa em grande parte pela identificação com o pai, num processo que reproduz individualmente esse crime filogenético. Em suma, a vida psíquica do civilizado continua sujeita a determinismos que vêm da condição selvagem do homem. O selvagem mora dentro do civilizado. O inconsciente é um "território estrangeiro interno", na formulação de Freud. Esse território é o equivalente das terras exóticas, que os primeiros navegantes iam procurar nos confins do universo. O país exótico interno é habitado por maus e bons selvagens, como o externo. O mau selvagem é o inconsciente culpado, parricida e incestuoso, o caldeirão de bruxas do id e seu descendente, o superego, instância sádica, "cultura pura da pulsão da morte". Mas há também o bom inconsciente. É o inconsciente amável, livre e inocente, voltado para os prazeres do amor, produtor de belos sonhos, autor de trocadilhos engenhosos, injustamente reprimido pela censura. O bom inconsciente é a sensualidade sem culpa, como o tupinambá de Montaigne, e a sabedoria sem livros, como o hurão de Voltaire. Mas, a essa altura, as figuras do bom e do mau selvagem se estendem, agora, aos brasileiros em geral, e não apenas aos indígenas "stricto sensu". O que os europeus, desde Montaigne, diziam do bom índio, dizem agora dos brasileiros: povo cordial, cheio de imaginação e de calor humano, em contraste com o racionalismo estreito dos europeus. Mas, de outro ponto de vista, os brasileiros são também maus selvagens: indolentes e corruptos, assassinos de meninos de rua, incendiários de florestas. Também sob essa nova forma os dois mitos viajam. Ambos são absorvidos no Brasil. O estereótipo positivo, descendente do mito do bom selvagem, alimenta uma crença na excepcionalidade cultural brasileira, baseada na sensualidade, na improvisação e na caipirinha. O estereótipo negativo, descendente do mito do mau selvagem, vai alimentar uma atitude de autodepreciação, que se traduziu, no século 19, pela descrença (fortalecida por doutrinas racistas européias) na capacidade brasileira de construir uma civilização no trópico. No início do século 20, Paulo Prado fez um "retrato do Brasil" em que aceita virtualmente todos os preconceitos negativos dos europeus com relação ao Brasil. Em geral, persiste um pessimismo com relação ao futuro, que em grande parte reflete essa visão estereotipada sobre as más qualidades do povo brasileiro. Os dois mitos funcionam de um modo diferente na Europa e no Brasil. O mito do bom selvagem sempre teve na Europa um sentido de crítica da própria sociedade. Em sua forma original de idealização da cultura indígena, ele foi usado para criticar os abusos do feudalismo europeu. Em sua forma ampliada contemporânea, em que o mito se estende aos brasileiros como um todo, a exaltação da "espontaneidade" brasileira envolve uma crítica à rigidez de uma cultura vista como opressiva e excessivamente racionalizada. No Brasil é o contrário. Desde o romantismo, o bom selvagem, tanto em sua forma original como em sua forma ampliada, tem sido usado num sentido nacionalista, de legitimação patriótica, de afirmação da identidade brasileira e, não raro, de repúdio chauvinista da cultura estrangeira. A situação é inversa no mito do mau selvagem. Na Europa, ele sempre funcionou num sentido conservador. Em sua forma original, o mito serviu para justificar o colonialismo, e em sua forma ampliada, implica uma adesão orgulhosa aos valores da própria cultura e uma depreciação etnocêntrica da cultura extra-européia. No Brasil, o mito do mau selvagem, em sua forma ampliada, implica uma atitude de crítica da própria cultura.

Euforia e melancolia
Feitas as contas, temos que concluir que os dois mitos pouco ajudaram os dois lados a chegarem a uma visão equilibrada de si e do outro. Tanto no Brasil como na Europa, eles envolveram a oscilação entre as duas atitudes contrárias da auto-exaltação e da auto-aviltamento, e as duas são patológicas. Elas correspondem, tecnicamente, aos dois pólos da psicose maníaco-depressiva, o pólo da euforia, excitação cega que no limite pode levar ao aniquilamento do outro, e o pólo da melancolia, que pode desembocar na autodestruição. Em 1500, começaram as intermináveis travessias, numa e noutra direção, do bom e do mau selvagem. Foram viagens em navios fantasmas. Cinco séculos depois, talvez tenha chegado o momento de recolher as velas e de fazer o exorcismo dos dois passageiros. Se as comemorações do quinto centenário houverem contribuído para isso, não terá sido o menor dos seus méritos.


Sergio Paulo Rouanet é diplomata e ensaísta, autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".



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