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+ brasil 501 d.C.
O inconsciente é,
para Freud, um
"território
estrangeiro interno":
é o equivalente das terras exóticas
dos primeiros descobrimentos
O exorcismo do bom e do mau selvagem
Sergio Paulo Rouanet
O ano do quinto centenário da
viagem de Cabral está se aproximando do seu fim sem que
um dos resultados mais surpreendentes da descoberta do Brasil tenha sido suficientemente destacado: o
rejuvenescimento de dois mitos europeus, o mito primitivista do bom selvagem e o mito antiprimitivista do mau selvagem.
Em seu continente de origem, o protótipo do bom selvagem foi o centauro
Quíron, que cuidava dos doentes e dirigiu a educação de Aquiles. Em sua forma
humana, era o selvagem que vivia perto
da natureza, longe da corrupção civilizada. Os bons selvagens eram os citas, os
frígios, os trácios, povos inocentes, mais
puros que os atenienses ou os romanos.
Eram os habitantes dos países imaginários, como os nativos das Ilhas Bem-Aventuradas, ou os hiperbóreos. Eram
os homens da Idade de Ouro, ou os da
infância da humanidade, que segundo
Lucrécio eram mais robustos e felizes
que seus descendentes. Na Idade Média,
era o "homo sylvestris", peludo e sensual, frequentador dos bosques.
O mau selvagem teve como protótipo
Polifemo, o ciclope canibal. Maus selvagens foram, quase sempre, os bárbaros.
A figura do mau selvagem surgia sempre
que se delineava alguma concepção de
progresso, material ou moral. Durante o
chamado iluminismo grego, nos séculos
5º e 4º a.C., os sofistas difundiram a crença na utilidade de novas técnicas, na importância de submeter ao exame crítico
os usos e costumes tradicionais, e por isso não podiam aceitar a idéia da superioridade dos homens primitivos. Na Idade
Média, a certeza de que o Novo Testamento representava um progresso com
relação à antiga lei levou vários pensadores cristãos a recusarem a possibilidade
de que os homens anteriores à Revelação
pudessem ser virtuosos.
Gente mansa, seres cruéis
Com o descobrimento, os europeus reencontraram tanto o bom quanto o mau selvagem, sem se darem conta de que essas
duas figuras faziam parte de um imaginário europeu muito anterior a Cabral.
O bom selvagem foi achado no Brasil
por Pero Vaz de Caminha (1437-1500),
para quem os índios eram "gente boa e
de boa simplicidade", mansa e pacífica,
vivendo em estado de inocência, isenta
de cobiça. Foi achado também por Américo Vespúcio, que falou na "bondade e
inocentíssima índole" do gentio brasileiro. Foi achado de novo pelo capuchinho
André Thévet, para quem os índios eram
corajosos, hospitaleiros e estóicos.
Foi achado, enfim, pelo calvinista Jean
de Léry (1534-1611), que, invocando o
salmo 102, termina seu livro com um hino de louvor à virtude dos índios e à generosidade da terra: "Felizes os povos
que a habitam!".
Do mesmo modo, os europeus não tiveram dificuldade em redescobrir, no
Brasil, a figura familiar do mau selvagem. Desde o início, circularam lendas
sobre seres cruéis ou monstruosos que
habitavam o Brasil, como os homens
acéfalos, os que tinham cabeça de cão, os
que tinham pés às avessas ou os que habitavam as profundezas dos rios, arrastando os homens para o abismo. Mas era
sobretudo o indígena que encarnava o
mau selvagem.
Sua maldade precisava ser acentuada
pelos colonos, para justificar a escravidão, e pelos jesuítas, para valorizar o trabalho da catequese. Segundo o padre
Manuel da Nóbrega (1517-1570), os índios "são cães em se comerem e matarem e são porcos nos vícios e na maneira
de se tratarem". Para o padre José de Anchieta (1534-1597), "para este gênero de
gentes não há melhor pregação que espada e vara de ferro, na qual mais que em
nenhuma outra é necessário o "compelle
eos entrare'". O canibalismo dos índios,
seus hábitos sexuais nefandos, as práticas de feitiçaria dos seus curandeiros, tudo isso mostrava que os índios estavam
sob o império de Satã.
Mas o bom e o mau selvagem são animais migrantes, como o salmão e a gaivota. Depois de viajarem da Europa para
o Brasil, voltaram à Europa.
O bom selvagem brasileiro reapareceu
na França, nos "Ensaios" de Montaigne
(1533-1592), e mais tarde em Rousseau
(1712-1778), que se baseou em grande
parte em Montaigne para construir a tese
de que o homem era naturalmente bom.
No século 18, ele mudou de nacionalidade. Voltaire fez dele um pele-vermelha e
Diderot o transformou em polinésio.
Sob essas várias formas, o bom selvagem
serviu para criticar as instituições européias e nesse sentido ajudou a derrubar a
Bastilha. No século 19, ele voltou a ser
norte-americano, graças a Chateaubriand. Mas no século 20, ele readquiriu
a cidadania brasileira, com Claude Lévi-Strauss. Não podia ser de outro modo,
porque o antropólogo francês colocou
sua etnografia sob a autoridade de Rousseau, leitor de Montaigne, que se inspirara nos canibais brasileiros.
No entanto a bondade natural do selvagem do Brasil não era mais representada pelos tupinambás, mas pelos nambiquaras. Adivinham-se neles, diz Lévi-Strauss, "uma imensa gentileza, uma
despreocupação profunda, uma satisfação animal ingênua e encantadora".
Modelo para o Leviatã
Também o mau selvagem regressa à Europa. O que
os bárbaros tinham sido para os gregos e
os tártaros e os vikings tinham sido para
os homens da Idade Média, os canibais
da América foram, em parte, para os europeus: alteridade ameaçadora, presença
surda do mal. O mau selvagem contribui
para redefinir as práticas de feitiçaria. As
bruxas européias são figuras tão diabólicas quantos as velhas índias, que participavam de festins canibais, nas ilustrações dos livros de viagens ao Brasil. Ele
desempenha um papel importante numa das primeiras teorias políticas da
modernidade, a de Thomas Hobbes
(1588-1679). O estado de natureza, lugar
da luta desenfreada de todos contra todos, do qual o homem é salvo pelo Leviatã, é construído sobre o modelo das sociedades ameríndias, integradas por
maus selvagens, que tornam a vida humana "nasty, brutish and short".
No século 18, o mau selvagem concorre
em igualdade de condições com seu irmão virtuoso. São maus selvagens os terríveis trogloditas, descritos por Diderot,
nas "Cartas Persas". Os partidários da tese que depreciava os primitivos eram os
chamados "ferini": os selvagens eram
como feras, brutos e frequentemente antropófagos. Voltaire está entre os "ferini". Nos decassílabos de "Le Mondain",
ele elogia os luxos e as elegâncias do homem moderno e diz que os primitivos tinham "unhas compridas, um pouco negras e engorduradas e os cabelos um tanto desgrenhados". Lessing satiriza, no
"Laocoonte", o nariz achatado e os lábios
grossos das mulheres hotentotes.
Aliás o primitivismo não podia deixar
de ser contestado num século que estava
inventando, com Turgot, a noção de progresso: se tudo progride, não há razão
para achar que os homens primitivos são
superiores aos modernos. No século 19 e
início do século 20, o mau selvagem foi a
figura que permitiu a articulação do imperialismo europeu. Nas palavras de Kipling, era o nativo perverso, "meio demônio, meio criança", que precisava ser
tutelado pelo homem branco.
Mas sabemos que o bom e o mau selvagem são sujeitos a uma terrível "Wanderlust", uma obsessão migratória incontrolável. De novo, eles atravessam o
Atlântico. O bom selvagem de Fenimore
Cooper e Chateaubriand volta ao Brasil e
reaparece na literatura indigenista de
Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias
e José de Alencar. Ele se reencarna no
modernismo brasileiro, por meio do
movimento antropofágico. E revive entre vários antropólogos.
O mau selvagem volta sob a forma de
estudos feitos na Europa e nos Estados
Unidos sobre certas nações indígenas
brasileiras, como os ianomamis, violentos e ferozes -os "fierce people". É a
imagem, em geral, que certos garimpeiros e pecuaristas têm do índio -inimigo
do progresso, selvagem que precisa ser
combatido a bala e a motosserra.
Durante sua passagem pela Europa, o
bom e o mau selvagem delegaram algumas de suas funções a certos grupos e indivíduos dentro da própria Europa. O
bom selvagem era o europeu que, por
sua doçura, simplicidade ou valentia, pudesse desempenhar o papel crítico antes
reservado aos silvícolas de além-mar.
O século 18 conheceu as crianças-feras,
como o "enfant sauvage" do filme de
Truffaut, menino encontrado num bosque francês que foi objeto de uma experiência de ressocialização segundo os
princípios pedagógicos de Rousseau. O
romantismo inventou o bom campônio,
como nos romances de George Sand
(1804-1876) ou nos quadros de Millet, e o
bom proletário, como Fantine e Cosette,
em "Os Miseráveis", ou as "grisettes" de
Balzac e Henri Murger . No século 20,
Foucault e a antipsiquiatria criaram a figura do bom louco, segregado pela razão
oficial. O mau selvagem se encarna na figura assustadora das "classes dangereuses", os proletários que ameaçam a ordem e a civilização burguesa. São os canibais dentro das próprias fronteiras.
Dumas fala nos "moicanos de Paris" e os
criminosos são chamados "apaches".
O bom e o mau selvagem colaboraram
também com um médico de Viena chamado Sigmund Freud (1856-1934). O
criador da psicanálise fez uma espécie de
etnografia da alma e pensou o homem
moderno em sua continuidade com o
primitivo. Em seu desenvolvimento psicogenético, todos os homens passam por
um estágio canibal ou oral. Esse canibalismo é semelhante à antropofagia, pela
qual os povos primitivos "acreditam
que, ao ingerir partes do corpo no ato de
devoração, se apropriam também das
propriedades que pertenceram a essa
pessoa". Ele é a reprodução, em cada indivíduo, do banquete totêmico, pelo qual
os irmãos da horda primitiva devoraram
o pai, "realizando a identificação com
ele, cada qual se apropriando de uma
parte de sua força".
Identificação com o pai
A superação do Édipo passa em grande parte pela
identificação com o pai, num processo
que reproduz individualmente esse crime filogenético. Em suma, a vida psíquica do civilizado continua sujeita a determinismos que vêm da condição selvagem do homem. O selvagem mora dentro do civilizado.
O inconsciente é um "território estrangeiro interno", na formulação de Freud.
Esse território é o equivalente das terras
exóticas, que os primeiros navegantes
iam procurar nos confins do universo. O
país exótico interno é habitado por maus
e bons selvagens, como o externo.
O mau selvagem é o inconsciente culpado, parricida e incestuoso, o caldeirão
de bruxas do id e seu descendente, o superego, instância sádica, "cultura pura
da pulsão da morte". Mas há também o
bom inconsciente. É o inconsciente amável, livre e inocente, voltado para os prazeres do amor, produtor de belos sonhos, autor de trocadilhos engenhosos,
injustamente reprimido pela censura. O
bom inconsciente é a sensualidade sem
culpa, como o tupinambá de Montaigne,
e a sabedoria sem livros, como o hurão
de Voltaire.
Mas, a essa altura, as figuras do bom e
do mau selvagem se estendem, agora,
aos brasileiros em geral, e não apenas aos
indígenas "stricto sensu". O que os europeus, desde Montaigne, diziam do bom
índio, dizem agora dos brasileiros: povo
cordial, cheio de imaginação e de calor
humano, em contraste com o racionalismo estreito dos europeus. Mas, de outro
ponto de vista, os brasileiros são também
maus selvagens: indolentes e corruptos,
assassinos de meninos de rua, incendiários de florestas.
Também sob essa nova forma os dois
mitos viajam. Ambos são absorvidos no
Brasil. O estereótipo positivo, descendente do mito do bom selvagem, alimenta uma crença na excepcionalidade cultural brasileira, baseada na sensualidade,
na improvisação e na caipirinha. O estereótipo negativo, descendente do mito
do mau selvagem, vai alimentar uma atitude de autodepreciação, que se traduziu, no século 19, pela descrença (fortalecida por doutrinas racistas européias) na
capacidade brasileira de construir uma
civilização no trópico.
No início do século 20, Paulo Prado fez
um "retrato do Brasil" em que aceita virtualmente todos os preconceitos negativos dos europeus com relação ao Brasil.
Em geral, persiste um pessimismo com
relação ao futuro, que em grande parte
reflete essa visão estereotipada sobre as
más qualidades do povo brasileiro.
Os dois mitos funcionam de um modo
diferente na Europa e no Brasil.
O mito do bom selvagem sempre teve
na Europa um sentido de crítica da própria sociedade. Em sua forma original de
idealização da cultura indígena, ele foi
usado para criticar os abusos do feudalismo europeu. Em sua forma ampliada
contemporânea, em que o mito se estende aos brasileiros como um todo, a exaltação da "espontaneidade" brasileira envolve uma crítica à rigidez de uma cultura vista como opressiva e excessivamente
racionalizada. No Brasil é o contrário.
Desde o romantismo, o bom selvagem,
tanto em sua forma original como em
sua forma ampliada, tem sido usado
num sentido nacionalista, de legitimação
patriótica, de afirmação da identidade
brasileira e, não raro, de repúdio chauvinista da cultura estrangeira.
A situação é inversa no mito do mau
selvagem. Na Europa, ele sempre funcionou num sentido conservador. Em sua
forma original, o mito serviu para justificar o colonialismo, e em sua forma ampliada, implica uma adesão orgulhosa
aos valores da própria cultura e uma depreciação etnocêntrica da cultura extra-européia. No Brasil, o mito do mau selvagem, em sua forma ampliada, implica
uma atitude de crítica da própria cultura.
Euforia e melancolia
Feitas as contas, temos que concluir que os dois mitos
pouco ajudaram os dois lados a chegarem a uma visão equilibrada de si e do
outro. Tanto no Brasil como na Europa,
eles envolveram a oscilação entre as duas
atitudes contrárias da auto-exaltação e
da auto-aviltamento, e as duas são patológicas. Elas correspondem, tecnicamente, aos dois pólos da psicose maníaco-depressiva, o pólo da euforia, excitação cega que no limite pode levar ao aniquilamento do outro, e o pólo da melancolia,
que pode desembocar na autodestruição. Em 1500, começaram as intermináveis travessias, numa e noutra direção,
do bom e do mau selvagem. Foram viagens em navios fantasmas. Cinco séculos
depois, talvez tenha chegado o momento
de recolher as velas e de fazer o exorcismo dos dois passageiros. Se as comemorações do quinto centenário houverem
contribuído para isso, não terá sido o
menor dos seus méritos.
Sergio Paulo Rouanet é diplomata e ensaísta,
autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar
na Modernidade" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".
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