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O mapa complexo das urnas
Elemento irracional presente na sociedade brasileira se reflete na hora
do voto e exige leitura ampla do quadro eleitoral
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
O natural interesse
pela disputa presidencial deixou um
tanto na sombra
um fato relevante:
em 1º de outubro tivemos não
uma, mas várias eleições. A
complexidade da sociedade
brasileira não se reduz ao voto
pró ou contra Lula [da coligação PT-PRB-PC do B]; fatores
conjunturais se sobrepõem a
outros, estruturais, e sobre tudo isso pairam as paixões, más
conselheiras quando se trata
de compreender.
Somente agora, passados alguns dias, é que se torna mais
preciso o quadro traçado pelo
voto de 126 milhões de brasileiros. O que ele revela sobre o
momento atual, e sobre o que
-com as reservas de praxe- se
pode chamar de "mentalidade
nacional"?
Lula não conseguiu a maioria
absoluta que ele e seus aliados
consideravam favas contadas.
Atribuiu-se esse fato ao não-comparecimento ao debate
promovido pela TV Globo, à foto das pilhas de cédulas
apreendidas com os "aloprados", à indignação com o fedor
de esgoto que sopra de Brasília.
Tudo isso tem sua importância,
mas creio que se deve tomar o
problema pela outra ponta e
indagar: por que, apesar dessas
razões, Lula chegou muito perto da maioria absoluta?
Consciência do interesse
Não é plausível atribuir tais
resultados apenas à "ignorância" ou à "alienação dos pobres"
-nem, de resto, à "consciência
de classe" ou à "desforra contra
as elites".
Além do carisma de Lula, é
preciso considerar que a população vota com alguma consciência dos seus interesses.
O mapa publicado em diversos jornais, colorindo os Estados segundo quem venceu em
cada um, impressiona pela nitidez: vitória de Lula no Norte,
Nordeste e Sudeste (com exceção de SP), triunfo de Alckmin
no Centro-Oeste e no Sul assim
como em Roraima, e isso apesar dos encraves (poucos) de
cada um no território do outro.
A que se deve tamanha homogeneidade? Claramente, aos
benefícios econômicos e às desvantagens que o governo do PT
trouxe a cada região.
A política monetária dos últimos anos manteve a inflação
em patamares baixos e barateou produtos de consumo popular; a significativa elevação
real do salário mínimo teve impacto entre os 18 milhões de
aposentados e os 20 milhões de
empregados na iniciativa privada que o recebem, majoritariamente concentrados no Norte
e no Nordeste. O Bolsa Família,
como notaram vários analistas,
levou a presença do Estado a
rincões nos quais ele jamais havia penetrado.
Tudo isso produziu um importante aumento da renda naquelas regiões, e o resultado foi
a vitória que elas deram a Lula.
Ao manter o real apreciado,
contudo, a mesma política econômica prejudicou a agricultura de exportação e muitos setores da indústria, produzindo
maciça rejeição ao presidente
nas áreas onde predominam
essas atividades. O voto pró ou
contra Lula traduz assim, em
primeiro lugar, o apoio ou a rejeição ao que fez no governo.
Desejo de certezas
Por outro lado, a avaliação do
governo e da cúpula do PT no
quesito honestidade teve mais
peso entre a classe média e nas
regiões onde a população depende menos da ajuda direta do
Estado, favorecendo o candidato da coligação PSDB-PFL.
Mas isso requer qualificações. O PT perdeu menos cadeiras no Parlamento do que se
esperava, e os 957 mil sufrágios
dados aos mensaleiros, sete dos
quais voltaram ao Congresso,
sugerem fortemente que nossos compatriotas não consideraram esse escândalo tão vergonhoso quanto o dos parlamentares "sanguessugas": muito poucos dos acusados pela
CPI das ambulâncias foram
reeleitos.
Por quê? Não me parece que
seja somente devido ao tempo
transcorrido: a população parece ter julgado que os protagonistas do mensalão já pagaram
o bastante por seu "erro". Em
favor dessa interpretação pesa
a recondução a Brasília de Paulo Maluf, Fernando Collor de
Mello e outros, cujo ostracismo
foi suspenso pelo eleitorado de
seus Estados.
Por outro lado, não se reelegeram políticos sérios (como
Delfim Netto e Luiz Greenhalgh), mas seria equivocado
colocar todos os casos no mesmo balaio: o último parece ter
sido vítima do mesmo sentimento anti-PT que quase custou a vitória ao senador Eduardo Suplicy, enquanto o ex-czar
da economia pagou o preço de
pertencer a um partido pouco
expressivo em São Paulo (o
PMDB).
Vê-se que não é possível reduzir tudo a um único e mesmo
fator explicativo: o Brasil é demasiado complexo e os elementos em jogo, numerosos
demais para satisfazer nosso
desejo de que tudo fosse simples e claro. Análises mais aprofundadas serão necessárias para avaliar cada situação, inclusive as surpresas trazidas pelas
urnas, das quais também se falou bastante.
Acusaram-se de incompetência ou mesmo de má-fé os
institutos de pesquisa, que não
previram certos resultados
(Bahia, Rio Grande do Sul etc.).
Eis aí um fato que vai muito
além das paixões do momento,
e que me parece indicar um
componente fundamental do
que chamei atrás de "mentalidade nacional": refiro-me ao
elemento de irracionalidade
patente em tantos aspectos da
vida brasileira.
As pesquisas trabalham com
amostras, indicam tendências
no momento em que são realizadas e operam com uma margem de erro. Não podem ser absolutamente exatas; tratá-las
como se fossem revelações de
Jeová no Sinai mostra como é
grande nossa necessidade de
acreditar que alguém sabe, que
alguém é capaz de discernir o
futuro em meio ao alarido e às
brumas do presente -o qual
nos confunde pela fragmentação e pela multiplicidade de informações e de estímulos.
Aqui entramos no aspecto
psicológico, que tanta importância tem quando se trata de
compreender fenômenos humanos e que é tão difícil de avaliar com precisão.
Não se trata apenas do humor da nação: há que considerar também a dimensão "psi"
dos candidatos, que se revela
nos seus comportamentos e
atitudes e se reflete em suas estratégias de campanha.
O fator narcísico
Desse ponto de vista, chamam a atenção dois aspectos
na aparência diferentes, mas
que na perspectiva psicanalítica estão intimamente ligados: a
soberba de Lula e a determinação de Alckmin.
Ambas as características relevam o que chamamos narcisismo, o investimento de si próprio, que determina, entre outras coisas, o grau de auto-estima de uma pessoa.
Ao longo do seu mandato, o
presidente chocou muitos brasileiros pelo olímpico distanciamento das acusações que
pesaram sobre homens da sua
confiança, e a certeza de que seria eleito no primeiro turno
mostra como se deixou iludir
pela idealização que faz de si
mesmo -idealização, aliás, que
o cobre de ridículo a cada vez
que pretende ser o maior e melhor governante "deste país"
desde Tomé de Souza [primeiro governador-geral da América portuguesa].
Já Alckmin esteve sempre
impressionantemente convicto de suas possibilidades, mesmo quando tudo sugeria que
seria derrotado. Um bocado de
sorte, pelos acontecimentos
que precederam a eleição, somou-se a essa espantosa fé em
si mesmo para o conduzir ao segundo turno. Quantos dos que
votaram nele, porém, o farão de
novo em 29 de outubro?
É preciso lembrar que uma
parcela desses votos não foi nele, e sim contra Lula, visando a
forçar um segundo turno, e é
provável que esses eleitores,
tendo conseguido o que queriam, votem nulo. Alckmin não
pode se deixar picar pela mosca
azul, como se a expressiva votação que obteve se devesse essencialmente a sua campanha
ou a suas qualidades pessoais.
Uma última observação. O
discurso em favor dos "pobres"
representa um significativo recuo em relação ao que de melhor o PT havia trazido para a
política brasileira: a ênfase nas
noções de cidadania e de sujeito político.
Muitos dos que não votaram
em Lula o fizeram porque não
percebem em seu governo um
projeto consistente para o país:
a administração do varejo e a
política assistencialista ficam
muito aquém do que se poderia
esperar de um governo que começou com tanta esperança.
Eleição racional
Já Alckmin é rejeitado, entre
outros motivos, por sua ligação
com o Opus Dei -que pode
acarretar retrocessos em questões nas quais a igreja se encontra na contramão da modernidade, como o controle da Aids
ou o direito ao aborto- e pelo
desastre que foi sua política em
relação à segurança pública, na
qual, infelizmente, incluiu os
jovens da Febem.
Até o dia do segundo turno,
ouviremos muito falatório de
campanha. Convém não nos
deixarmos ensurdecer por ele e
exigirmos dos postulantes que
detalhem o que pretendem para o Brasil. O que farão quanto a
reformas necessárias em inúmeros pontos da legislação, como lidarão com as questões da
educação, da saúde, da infra-estrutura, da política externa?
Como imaginam enfrentar os
obstáculos que sem dúvida encontrarão? Em suma, que falem de seus programas.
Uma possibilidade de os conhecer melhor seria fazer responderem na TV às mesmas
perguntas, dando-lhes tempo
suficiente para que mostrem o
quanto compreendem da complexidade de cada tema. Será
pedir racionalidade demais?
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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