São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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O mapa complexo das urnas

Elemento irracional presente na sociedade brasileira se reflete na hora do voto e exige leitura ampla do quadro eleitoral

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

O natural interesse pela disputa presidencial deixou um tanto na sombra um fato relevante: em 1º de outubro tivemos não uma, mas várias eleições. A complexidade da sociedade brasileira não se reduz ao voto pró ou contra Lula [da coligação PT-PRB-PC do B]; fatores conjunturais se sobrepõem a outros, estruturais, e sobre tudo isso pairam as paixões, más conselheiras quando se trata de compreender.
Somente agora, passados alguns dias, é que se torna mais preciso o quadro traçado pelo voto de 126 milhões de brasileiros. O que ele revela sobre o momento atual, e sobre o que -com as reservas de praxe- se pode chamar de "mentalidade nacional"?
Lula não conseguiu a maioria absoluta que ele e seus aliados consideravam favas contadas.
Atribuiu-se esse fato ao não-comparecimento ao debate promovido pela TV Globo, à foto das pilhas de cédulas apreendidas com os "aloprados", à indignação com o fedor de esgoto que sopra de Brasília.
Tudo isso tem sua importância, mas creio que se deve tomar o problema pela outra ponta e indagar: por que, apesar dessas razões, Lula chegou muito perto da maioria absoluta?
Consciência do interesse
Não é plausível atribuir tais resultados apenas à "ignorância" ou à "alienação dos pobres" -nem, de resto, à "consciência de classe" ou à "desforra contra as elites".
Além do carisma de Lula, é preciso considerar que a população vota com alguma consciência dos seus interesses.
O mapa publicado em diversos jornais, colorindo os Estados segundo quem venceu em cada um, impressiona pela nitidez: vitória de Lula no Norte, Nordeste e Sudeste (com exceção de SP), triunfo de Alckmin no Centro-Oeste e no Sul assim como em Roraima, e isso apesar dos encraves (poucos) de cada um no território do outro.
A que se deve tamanha homogeneidade? Claramente, aos benefícios econômicos e às desvantagens que o governo do PT trouxe a cada região.
A política monetária dos últimos anos manteve a inflação em patamares baixos e barateou produtos de consumo popular; a significativa elevação real do salário mínimo teve impacto entre os 18 milhões de aposentados e os 20 milhões de empregados na iniciativa privada que o recebem, majoritariamente concentrados no Norte e no Nordeste. O Bolsa Família, como notaram vários analistas, levou a presença do Estado a rincões nos quais ele jamais havia penetrado.
Tudo isso produziu um importante aumento da renda naquelas regiões, e o resultado foi a vitória que elas deram a Lula.
Ao manter o real apreciado, contudo, a mesma política econômica prejudicou a agricultura de exportação e muitos setores da indústria, produzindo maciça rejeição ao presidente nas áreas onde predominam essas atividades. O voto pró ou contra Lula traduz assim, em primeiro lugar, o apoio ou a rejeição ao que fez no governo.

Desejo de certezas
Por outro lado, a avaliação do governo e da cúpula do PT no quesito honestidade teve mais peso entre a classe média e nas regiões onde a população depende menos da ajuda direta do Estado, favorecendo o candidato da coligação PSDB-PFL.
Mas isso requer qualificações. O PT perdeu menos cadeiras no Parlamento do que se esperava, e os 957 mil sufrágios dados aos mensaleiros, sete dos quais voltaram ao Congresso, sugerem fortemente que nossos compatriotas não consideraram esse escândalo tão vergonhoso quanto o dos parlamentares "sanguessugas": muito poucos dos acusados pela CPI das ambulâncias foram reeleitos.
Por quê? Não me parece que seja somente devido ao tempo transcorrido: a população parece ter julgado que os protagonistas do mensalão já pagaram o bastante por seu "erro". Em favor dessa interpretação pesa a recondução a Brasília de Paulo Maluf, Fernando Collor de Mello e outros, cujo ostracismo foi suspenso pelo eleitorado de seus Estados.
Por outro lado, não se reelegeram políticos sérios (como Delfim Netto e Luiz Greenhalgh), mas seria equivocado colocar todos os casos no mesmo balaio: o último parece ter sido vítima do mesmo sentimento anti-PT que quase custou a vitória ao senador Eduardo Suplicy, enquanto o ex-czar da economia pagou o preço de pertencer a um partido pouco expressivo em São Paulo (o PMDB).
Vê-se que não é possível reduzir tudo a um único e mesmo fator explicativo: o Brasil é demasiado complexo e os elementos em jogo, numerosos demais para satisfazer nosso desejo de que tudo fosse simples e claro. Análises mais aprofundadas serão necessárias para avaliar cada situação, inclusive as surpresas trazidas pelas urnas, das quais também se falou bastante.
Acusaram-se de incompetência ou mesmo de má-fé os institutos de pesquisa, que não previram certos resultados (Bahia, Rio Grande do Sul etc.).
Eis aí um fato que vai muito além das paixões do momento, e que me parece indicar um componente fundamental do que chamei atrás de "mentalidade nacional": refiro-me ao elemento de irracionalidade patente em tantos aspectos da vida brasileira.
As pesquisas trabalham com amostras, indicam tendências no momento em que são realizadas e operam com uma margem de erro. Não podem ser absolutamente exatas; tratá-las como se fossem revelações de Jeová no Sinai mostra como é grande nossa necessidade de acreditar que alguém sabe, que alguém é capaz de discernir o futuro em meio ao alarido e às brumas do presente -o qual nos confunde pela fragmentação e pela multiplicidade de informações e de estímulos.
Aqui entramos no aspecto psicológico, que tanta importância tem quando se trata de compreender fenômenos humanos e que é tão difícil de avaliar com precisão. Não se trata apenas do humor da nação: há que considerar também a dimensão "psi" dos candidatos, que se revela nos seus comportamentos e atitudes e se reflete em suas estratégias de campanha.

O fator narcísico
Desse ponto de vista, chamam a atenção dois aspectos na aparência diferentes, mas que na perspectiva psicanalítica estão intimamente ligados: a soberba de Lula e a determinação de Alckmin.
Ambas as características relevam o que chamamos narcisismo, o investimento de si próprio, que determina, entre outras coisas, o grau de auto-estima de uma pessoa.
Ao longo do seu mandato, o presidente chocou muitos brasileiros pelo olímpico distanciamento das acusações que pesaram sobre homens da sua confiança, e a certeza de que seria eleito no primeiro turno mostra como se deixou iludir pela idealização que faz de si mesmo -idealização, aliás, que o cobre de ridículo a cada vez que pretende ser o maior e melhor governante "deste país" desde Tomé de Souza [primeiro governador-geral da América portuguesa].
Já Alckmin esteve sempre impressionantemente convicto de suas possibilidades, mesmo quando tudo sugeria que seria derrotado. Um bocado de sorte, pelos acontecimentos que precederam a eleição, somou-se a essa espantosa fé em si mesmo para o conduzir ao segundo turno. Quantos dos que votaram nele, porém, o farão de novo em 29 de outubro?
É preciso lembrar que uma parcela desses votos não foi nele, e sim contra Lula, visando a forçar um segundo turno, e é provável que esses eleitores, tendo conseguido o que queriam, votem nulo. Alckmin não pode se deixar picar pela mosca azul, como se a expressiva votação que obteve se devesse essencialmente a sua campanha ou a suas qualidades pessoais.
Uma última observação. O discurso em favor dos "pobres" representa um significativo recuo em relação ao que de melhor o PT havia trazido para a política brasileira: a ênfase nas noções de cidadania e de sujeito político.
Muitos dos que não votaram em Lula o fizeram porque não percebem em seu governo um projeto consistente para o país: a administração do varejo e a política assistencialista ficam muito aquém do que se poderia esperar de um governo que começou com tanta esperança.

Eleição racional
Já Alckmin é rejeitado, entre outros motivos, por sua ligação com o Opus Dei -que pode acarretar retrocessos em questões nas quais a igreja se encontra na contramão da modernidade, como o controle da Aids ou o direito ao aborto- e pelo desastre que foi sua política em relação à segurança pública, na qual, infelizmente, incluiu os jovens da Febem.
Até o dia do segundo turno, ouviremos muito falatório de campanha. Convém não nos deixarmos ensurdecer por ele e exigirmos dos postulantes que detalhem o que pretendem para o Brasil. O que farão quanto a reformas necessárias em inúmeros pontos da legislação, como lidarão com as questões da educação, da saúde, da infra-estrutura, da política externa?
Como imaginam enfrentar os obstáculos que sem dúvida encontrarão? Em suma, que falem de seus programas. Uma possibilidade de os conhecer melhor seria fazer responderem na TV às mesmas perguntas, dando-lhes tempo suficiente para que mostrem o quanto compreendem da complexidade de cada tema. Será pedir racionalidade demais?


RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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