São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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+sociedade

Um estilo caubói de feminismo


Em novo livro, a francesa Virginie Despentes propõe a redução do estuprador ao estado de cliente de prostitutas


MARCELA IACUB

Ao contrário do que é anunciado na quarta capa do livro, "King Kong Théorie" [A Teoria King Kong, ed. Grasset, 160 págs., 13,90, R$ 37,50], de Virginie Despentes, não é, infelizmente, o manifesto de um novo feminismo. Despentes faz uma espécie de apologia da legalização da prostituição e da liberalização da pornografia, o que não é algo que seduza o feminismo que orienta, como doutrina oficial, as políticas públicas atuais.

Guerra aberta
Mas, além de essas posições já terem sido defendidas em diversas ocasiões, o foram de uma maneira bem mais convincente e argumentada. Sua originalidade consiste em sustentá-las não a partir dos princípios de defesa das liberdades, da neutralidade ética ou do pluralismo do Estado, mas a partir do pressuposto da guerra dos sexos como horizonte último de toda reflexão.
Não se acredite que a palavra "guerra" -dos sexos- seja uma metáfora. Muito pelo contrário, deve ser entendida em seu sentido mais literal.
Pois, a exemplo de muitas feministas americanas, Despentes diz sem firulas que no início, na estrutura das relações entre os sexos "há a Violação". Não esses atos vulgares cometidos por alguns depravados, mas uma espécie de ato constituinte da mulher como tal que certos machos realizam em nome de todos sobre um contingente de vítimas sacrificais.
É por meio desse crime metafísico, originário, instituidor, que uma criatura humana se torna mulher. Com efeito, temendo por sua vida, ela viveu no segredo de seu ser essa humilhação de ter preferido continuar sendo violada, em vez de morrer.

Vingança metafísica
Os fatos de mais da metade das condenações por crimes na França estar ligada a agressões sexuais e de o estupro ser punido com o mesmo peso do assassinato não têm a menor pertinência para ela nem nenhuma função reparadora.
Para ela, o trauma, a humilhação metafísica da mulher violada, só pode ser solucionado por um ato de vingança de uma brutalidade superior: a castração e a morte.
Mas, se se pode cair nos excessos criminosos das heroínas trágicas do filme "Baise-Moi" [Foda-Me], que ela realizou com Coralie Trinh Thi, Despentes traz na bolsa outras sugestões para executar sua vingança metafísica. A principal é a redução do estuprador ao estado de cliente de prostitutas.
Experiente nessa solução por seu próprio percurso de prostituta ocasional, ela escreve: "A prostituição foi uma etapa crucial, no meu caso, de reconstrução depois da violação. Um empreendimento de indenização, nota após nota, do que me foi tirado pela brutalidade".
O cliente de prostituta aparece, assim, como o macho fracassado, castrado e ferido.
Sim, talvez se fique horrorizado com essas propostas.
Mas Despentes não exprime, no fundo, em seu estilo "caubói", hipóteses sobre as relações entre os sexos que assombram as problematizações atuais? Ela não nos diz, exagerando, o que acreditamos ser a explicação central da dominação das mulheres, isto é, que a sexualidade é o local de sua sujeição pelos machos? Não é essa idéia que animou, desde meados dos anos 1970 até hoje, as lutas feministas contra as agressões sexuais?
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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