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A vocação para o deserto
Na exposição que termina no próximo domingo, em Roma, Antonioni reproduz em suas telas o vazio e o distanciamento que marcaram seus filmes
BEPPE SEBASTE
Chama-se "Silêncio
em Cores" e parece o
subtítulo de um filme seu, mas é uma
mostra de pinturas
sobre papel e tela de Michelangelo Antonioni.
As palavras para descrevê-las
também evocam os termos
com que gerações de espectadores tentaram qualificar o estilo daquilo que o grande diretor narrou no cinema: silêncios
plásticos, elipses narrativas,
histórias construídas ao redor
do vazio; a eloqüência do vazio,
a expressividade extraordinária de enquadramentos tanto
mais eloqüentes quanto mais
indiretos, até a potência da cor
nos últimos filmes (embora a
intensidade do preto-e-branco
de "A Aventura", "A Noite" e "O
Eclipse" talvez já fossem uma
espécie de cor).
Enfim, a sutileza, a "síncope
do sentido", como definiu Roland Barthes em 1980 celebrando Antonioni, desde então
comparado a pintores (Braque
e Matisse) e à estética do
Oriente. Ou então o suspense
de imagens e histórias que colhiam realidades intersticiais,
os chamados tempos mortos
das aventuras. Existe algo de
mais verdadeiro?
Desde 2002, ou seja, desde
que completou 90 anos, Michelangelo Antonioni passa
horas e dias no silêncio de sua
casa à beira do Tibre, em Tor di
Quinto, não derrotado nem pela doença nem pela idade, desenhando outros tipos de elipses
e de curvas, de cheios e vazios,
de linhas tracejadas e caracóis
que parecem ideogramas chineses, geometrias não-euclidianas e muito coloridas.
Começou a pintar no campo,
olhando as crianças, os netos.
Um amigo lhe deu de presente
um caderno branco, e ele começou a fazer desenhos a caneta. A mulher, Enrica, o encorajou e ofereceu-se para ajudá-lo
a colocar a cor. Passaram o verão de 2002 em Roma, pintando sobre a mesa, o ruído leve do
trânsito lá fora parecendo o
marulho do mar, imersos no laranja, no verde, no rosa.
"Ele nunca se cansa"
Para espalhar as cores, foram
requisitadas as assistentes
Alessandra Giacinti e Monica
Dabbico, diplomada em pintura na Academia de Via Ripetta:
"Sou apenas um pincel para ele,
um instrumento", diz Monica.
E me fala da concentração e
da determinação daquele que,
mesmo a tratando com intimidade, ela chama rigorosamente
de "mestre": "Diferentemente
de mim, Michelangelo nunca se
cansa".
Ambos alcançaram uma rara
empatia no silêncio da pintura,
como atesta o filme realizado
por Enrica Antonioni: "Com
Antonioni". Foi ali que descobri seus quadros, olhando a
mão enrugada que traça linhas
sobre a tela, as instruções absortas e quase imperceptíveis
que ele dá à assistente na hora
de escolher e dispor as cores
numa sobreposição de formas
que sugerem uma tridimensionalidade na tela.
Para os que possam se espantar (o diretor de "A Aventura"
se tornou um expressionista
abstrato?), esses quadros iluminam magicamente todo o
trabalho de Antonioni. Se é verdade, como escreveu Benjamin,
que cada texto literário contém
em si todas as traduções possíveis e futuras em outras línguas, a expressividade pictórica
de Antonioni revela uma coerência anterior a toda categoria
e a toda definição fácil.
Não foi ele mesmo quem disse que "sob a imagem revelada
há uma outra, mais fiel à realidade, e sob essa há outra ainda
e mais outra sob essa última"?
A famosa passagem, de 1964,
concluía assim: "Até a verdadeira imagem daquela realidade, absoluta e misteriosa, que
ninguém jamais verá. Ou talvez
até a decomposição de qualquer imagem, de qualquer realidade. Então o cinema abstrato
teria a sua razão de ser".
Foi para captar a visibilidade
daquilo que antes era invisível
que fui até Michelangelo Antonioni. A "visita ao ateliê" do artista é quase um gênero literário, mas é com apreensão
-além do orgulho pelo convite- que me vejo na casa-estúdio onde ele mora há 50 anos.
Faço parte daquela geração
cujo entusiasmo pelo cinema
de Wim Wenders (pelo menos
os primeiros filmes) no fundo
era um sucedâneo ao entusiasmo pelos filmes de Antonioni
(eu era muito pequeno para falar deles em primeira mão).
Vista do Tibre
De resto, o próprio Wenders
expressou sua veneração pelo
mestre em um memorial que
narra a realização de "Além das
Nuvens" ("Il Tempo con Antonioni", Meu Tempo com Antonioni, ed. Socrates, 336 págs.,
49 euros, R$ 135).
Mas aqui estou eu, diante de
vidraças que oferecem uma vista de 360 graus, incluídos a curva do Tibre e os bosques de pinheiros, as quadras de tênis de
um centro esportivo e paredes
cobertas de livros e quadros,
entre os quais, além de uma das
belíssimas "montanhas mágicas" que o cineasta começou a
pintar nos anos 70, reconheço
suas novas geometrias coloridas. Ao lado da mesa de trabalho, noto dezenas de esboços
em tinta acrílica, uma variedade de verdes, amarelos, lilases,
rosas, todas as cores "frias" e
opacas que Antonioni aprecia.
Então nos sentamos lado a
lado e observamos os quadros
já selecionados para a mostra,
inaugurada em 29/9 [e que termina no próximo domingo], no
Tempio de Adriano, em Roma.
Primeiramente, os grandes
formatos, um metro por um
metro e meio, que Enrica e Monica colocam diante de nós. Antonioni está tão ansioso quanto
eu por revê-los. O primeiro se
chama "Cornucópia", e o fundo
dourado foi a última coisa que
ele acrescentou.
Emergem formas azuis, verde-água, rosas e vermelhas, os
seus "ícones", caracóis e formas
várias, às vezes macias, às vezes
pontiagudas, que fazem pensar
em sinais caligráficos, caracteres chineses estilizados, "kanji", mas também numa assinatura reiterada.
Quando indagado se a viagem à China e o documentário
que ele fez lá ("China", 1974) o
influenciaram, Antonioni responde que o Oriente sempre o
fascinou e atraiu, e ele sempre
viajou bastante (Roland Barthes não estava errado). Foi na
China que Antonioni inventariou uma série infinita de tonalidades de azul. Examinamos
agora um quadro caótico e imponente, grandes linhas negras, verticais, e formas de cores suaves.
Em seguida, "Tanti Punti"
[Muitos Pontos], um quadro de
fundo preto do qual emergem
ramificações como cactos, densas de cores vermelhas, amarelas e verdes primaveris -uma
primavera frisante como uma
canção de Brian Wilson. Assim
como a tela "Fogo de Artifício",
uma explosão de cores alegres,
sobretudo azul e verde, contra
um fundo vermelho-rosa.
"Totem", uma superfície verde-claro, uma espacialidade
quase desértica, e depois "Festival de Cinema", em que prevalece o detalhamento, uma variedade de formas minuciosas,
caleidoscópio de cores e linhas
que se cruzam ou correm paralelas numa infinidade de cenas,
cores e formas abstratas em
que ainda predomina o verde,
um verde criado pelo pintor.
O verde, diz Monica, é a cor
preferida do mestre, além do
violeta. Vejo nos quadros o verde amarelado do casaco de Monica Vitti em "O Dilema de uma
Vida", o azul e o vermelho das
barracas do porto de Ravena, as
cores das camisas de Jack Nicholson em "Profissão: Repórter" e assim por diante.
E penso numa frase igualmente elíptica de Antonioni,
dita na época do seu primeiro
filme em cores: "Se ainda existe
autobiografia, é na cor que ela
deve ser achada".
Vaivém contínuo
Olho com o mestre uma
grande tela vertical, onde domina o ocre. Olho os papéis, as
têmperas, uma delas belíssima,
intitulada "Tapete Africano".
Todos os quadros induzem a
um vaivém contínuo do olho do
espectador, todos evocam uma
tridimensionalidade alcançada
pela aproximação das formas e
das cores que, longe de parecerem gráficas, adquirem relevo.
A propósito de algumas pinturas que no início a desconcertavam, Monica me diz que "o
mestre sempre chega a um
equilíbrio, é capaz de harmonizar tudo no final", mesmo os
signos aparentemente mais incongruentes.
E o vejo observando os próprios quadros, seguindo com os
dedos as superfícies, acariciando-os sem os tocar, olhando-os
com as mãos e finalmente testando a assinatura (mais uma
vez a idéia de que seus "ícones"
recorrentes são outras tantas
assinaturas).
Ele é o espectador divertido e
intrigado com suas próprias
criações, como se não fosse o
autor. Olha a si mesmo como
um outro. Até que os libera com
um gesto, não sem antes fazer
um comentário: "Bonito",
"muito bonito" ou um irônico
"mamma mia!", como se dissesse: "Que loucura ter feito esse quadro".
O distanciamento em relação
a suas telas, segundo me diz
Enrica, reproduz a atitude que
o cineasta tinha diante de seus
filmes e remete a uma frase de
Pascal que o pintor Giorgio
Morandi (muito visitado e admirado por Antonioni) adorava
citar: "O verdadeiro artista é
aquele que sabe ficar sozinho
num quarto".
Porém tanto na atitude
quanto nas pinturas de Antonioni há um componente de jogo e de audácia que talvez somente a senilidade -infância
reconquistada- possa exibir
com tamanha leveza anárquica:
suas obras são uma festa da liberdade. Sua tridimensionalidade encontra respaldo em outros trabalhos dele, como esculturas e colagens, feitas de
papelão revestido de poliestireno ou madeira.
"Não existe a cor em absoluto, é sempre uma relação; relação entre o objeto e o observador, entre o objeto e a direção dos raios que o iluminam
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Entalhes de diversas cores,
encastoados e colados, que
criam cenografias complexas,
freqüentemente impossíveis
(como se dizia das hipóteses espaciais e volumétricas do arquiteto Frank O. Gehry), prolongam o prazer tátil de sua
pesquisa.
Monica, a assistente de Antonioni, sublinha mais uma vez a
capacidade do mestre de sempre encontrar uma recomposição para aquilo que, de início,
se apresenta como fragmentação irremediável, alcançando
uma solução harmoniosa do informe, mesmo a despeito de
sua incredulidade.
A mostra de Michelangelo
Antonioni é acompanhada de
um texto do patologista e estudioso de cinema David Kaminsky. Aludindo ao aspecto
terapêutico desse "silêncio em
cores", ele fala de "uma dimensão comunitária de cores que
parece violar a austeridade e a
solidão do estilo de seus filmes". Pode ser.
Mas também me ocorre o
que o filósofo Gilles Deleuze
afirmou sobre Antonioni em
seu primeiro livro sobre cinema ("L'Image-Mouvement", A
Imagem-Movimento, Minuit,
296 págs., 17,50 euros, R$ 48):
"Ele é um dos maiores coloristas do cinema".
Deleuze trata do assunto no
capítulo dedicado à "face", isto
é, ao primeiro-plano, à "imagem-afecção" que confere qualidade de face a todo enquadramento -ou seja, intensidade,
capacidade de relançar a afetividade e a potência da imagem
a um efeito mais amplo e duradouro do que qualquer causa,
qualquer lógica representativa.
Essa qualidade de "face" ou
primeiro plano seria dada precisamente pela cor.
Deleuze notava então "o uso
de cores frias levadas ao máximo de sua plenitude ou de sua
intensidade a fim de ultrapassar a função absorvente", em
que "a cor leva o espaço até o
vazio, cancela o que absorveu",
até chegar (objetivo do cinema
de Antonioni, segundo Deleuze) "ao não-figurativo", "a uma
aventura cujo termo é a eclipse
da face, o cancelamento das
personagens".
Influência de Rothko
É a vocação de Antonioni ao
deserto -"O Dilema de uma Vida" ("Il Deserto Rosso", no original), "Zabriskie Point", "Profissão: Repórter"- mas também ao parque e à quadra de tênis -"Blow-Up - Depois Daquele Beijo".
A paixão de Antonioni pelos
quadros de Mark Rothko, atestada por uma troca de cartas
entre eles, confirma essa estética em que o silêncio das histórias e das relações humanas,
aquela "incomunicabilidade"
tão repetida pelos críticos, é
viático e tensão rumo ao espaço
puro e, deste, ao vazio.
Penso tudo isso olhando os
quadros do mestre no silêncio
da cobertura que se abre para o
vazio, para as árvores ao longo
do Tibre, para os vermelhos
campos de tênis que mancham
aquele verde. O que é a cor?
Lembro-me de um diálogo central de "O Dilema de uma Vida".
Ela: "O que você quer que eu faça com meus olhos? O que devo
olhar?". Ele: "Você diz: "O que
devo olhar". Eu digo: Como devo viver? É a mesma coisa".
Na época em que o filme foi
lançado, Antonioni disse: "Não
existe a cor em absoluto, é sempre uma relação. Relação entre
o objeto e o observador (inclusive o estado físico do observador), entre o objeto e a direção
dos raios que o iluminam, entre
a matéria de que é formado o
objeto e o estado psicológico do
observador, no sentido de que
ambos se sugestionam mutuamente. Ou seja, com a sua cor, o
objeto exerce uma determinada sugestão sobre o observador,
e este simultaneamente vê a
cor que naquele momento o interessa ou lhe dá prazer ao ver
aquele objeto".
E mais: "É com o hábito que
se aprende a olhar as cores. Só
depois de certa experiência
conseguimos distinguir quanto
há de cinza num amarelo ou
quanto há de azul num cinza.
Tudo isso são fatores imprescindíveis ao cinema em cores,
porque a película reproduz
muito mais fielmente do que o
olho humano é capaz de ver e
reproduzir uma cor em um determinado objeto. Mas, no cinema, tudo o que na vida comum é inconsciente deve tornar-se consciente. E se torna
consciente justamente pelo hábito, pelo hábito de olhar as cores assim como elas são, olhar a
realidade como ela é: colorida".
O cinema de Michelangelo
Antonioni continua no silêncio
em cores dos papéis e das telas.
Este texto saiu no "La Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias.
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