São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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A vocação para o deserto

Na exposição que termina no próximo domingo, em Roma, Antonioni reproduz em suas telas o vazio e o distanciamento que marcaram seus filmes

BEPPE SEBASTE

Chama-se "Silêncio em Cores" e parece o subtítulo de um filme seu, mas é uma mostra de pinturas sobre papel e tela de Michelangelo Antonioni.
As palavras para descrevê-las também evocam os termos com que gerações de espectadores tentaram qualificar o estilo daquilo que o grande diretor narrou no cinema: silêncios plásticos, elipses narrativas, histórias construídas ao redor do vazio; a eloqüência do vazio, a expressividade extraordinária de enquadramentos tanto mais eloqüentes quanto mais indiretos, até a potência da cor nos últimos filmes (embora a intensidade do preto-e-branco de "A Aventura", "A Noite" e "O Eclipse" talvez já fossem uma espécie de cor).
Enfim, a sutileza, a "síncope do sentido", como definiu Roland Barthes em 1980 celebrando Antonioni, desde então comparado a pintores (Braque e Matisse) e à estética do Oriente. Ou então o suspense de imagens e histórias que colhiam realidades intersticiais, os chamados tempos mortos das aventuras. Existe algo de mais verdadeiro?
Desde 2002, ou seja, desde que completou 90 anos, Michelangelo Antonioni passa horas e dias no silêncio de sua casa à beira do Tibre, em Tor di Quinto, não derrotado nem pela doença nem pela idade, desenhando outros tipos de elipses e de curvas, de cheios e vazios, de linhas tracejadas e caracóis que parecem ideogramas chineses, geometrias não-euclidianas e muito coloridas.
Começou a pintar no campo, olhando as crianças, os netos. Um amigo lhe deu de presente um caderno branco, e ele começou a fazer desenhos a caneta. A mulher, Enrica, o encorajou e ofereceu-se para ajudá-lo a colocar a cor. Passaram o verão de 2002 em Roma, pintando sobre a mesa, o ruído leve do trânsito lá fora parecendo o marulho do mar, imersos no laranja, no verde, no rosa.

"Ele nunca se cansa"
Para espalhar as cores, foram requisitadas as assistentes Alessandra Giacinti e Monica Dabbico, diplomada em pintura na Academia de Via Ripetta: "Sou apenas um pincel para ele, um instrumento", diz Monica.
E me fala da concentração e da determinação daquele que, mesmo a tratando com intimidade, ela chama rigorosamente de "mestre": "Diferentemente de mim, Michelangelo nunca se cansa".
Ambos alcançaram uma rara empatia no silêncio da pintura, como atesta o filme realizado por Enrica Antonioni: "Com Antonioni". Foi ali que descobri seus quadros, olhando a mão enrugada que traça linhas sobre a tela, as instruções absortas e quase imperceptíveis que ele dá à assistente na hora de escolher e dispor as cores numa sobreposição de formas que sugerem uma tridimensionalidade na tela.
Para os que possam se espantar (o diretor de "A Aventura" se tornou um expressionista abstrato?), esses quadros iluminam magicamente todo o trabalho de Antonioni. Se é verdade, como escreveu Benjamin, que cada texto literário contém em si todas as traduções possíveis e futuras em outras línguas, a expressividade pictórica de Antonioni revela uma coerência anterior a toda categoria e a toda definição fácil.
Não foi ele mesmo quem disse que "sob a imagem revelada há uma outra, mais fiel à realidade, e sob essa há outra ainda e mais outra sob essa última"?
A famosa passagem, de 1964, concluía assim: "Até a verdadeira imagem daquela realidade, absoluta e misteriosa, que ninguém jamais verá. Ou talvez até a decomposição de qualquer imagem, de qualquer realidade. Então o cinema abstrato teria a sua razão de ser".
Foi para captar a visibilidade daquilo que antes era invisível que fui até Michelangelo Antonioni. A "visita ao ateliê" do artista é quase um gênero literário, mas é com apreensão -além do orgulho pelo convite- que me vejo na casa-estúdio onde ele mora há 50 anos.
Faço parte daquela geração cujo entusiasmo pelo cinema de Wim Wenders (pelo menos os primeiros filmes) no fundo era um sucedâneo ao entusiasmo pelos filmes de Antonioni (eu era muito pequeno para falar deles em primeira mão).

Vista do Tibre
De resto, o próprio Wenders expressou sua veneração pelo mestre em um memorial que narra a realização de "Além das Nuvens" ("Il Tempo con Antonioni", Meu Tempo com Antonioni, ed. Socrates, 336 págs., 49 euros, R$ 135).
Mas aqui estou eu, diante de vidraças que oferecem uma vista de 360 graus, incluídos a curva do Tibre e os bosques de pinheiros, as quadras de tênis de um centro esportivo e paredes cobertas de livros e quadros, entre os quais, além de uma das belíssimas "montanhas mágicas" que o cineasta começou a pintar nos anos 70, reconheço suas novas geometrias coloridas. Ao lado da mesa de trabalho, noto dezenas de esboços em tinta acrílica, uma variedade de verdes, amarelos, lilases, rosas, todas as cores "frias" e opacas que Antonioni aprecia.
Então nos sentamos lado a lado e observamos os quadros já selecionados para a mostra, inaugurada em 29/9 [e que termina no próximo domingo], no Tempio de Adriano, em Roma.
Primeiramente, os grandes formatos, um metro por um metro e meio, que Enrica e Monica colocam diante de nós. Antonioni está tão ansioso quanto eu por revê-los. O primeiro se chama "Cornucópia", e o fundo dourado foi a última coisa que ele acrescentou.
Emergem formas azuis, verde-água, rosas e vermelhas, os seus "ícones", caracóis e formas várias, às vezes macias, às vezes pontiagudas, que fazem pensar em sinais caligráficos, caracteres chineses estilizados, "kanji", mas também numa assinatura reiterada.
Quando indagado se a viagem à China e o documentário que ele fez lá ("China", 1974) o influenciaram, Antonioni responde que o Oriente sempre o fascinou e atraiu, e ele sempre viajou bastante (Roland Barthes não estava errado). Foi na China que Antonioni inventariou uma série infinita de tonalidades de azul. Examinamos agora um quadro caótico e imponente, grandes linhas negras, verticais, e formas de cores suaves.
Em seguida, "Tanti Punti" [Muitos Pontos], um quadro de fundo preto do qual emergem ramificações como cactos, densas de cores vermelhas, amarelas e verdes primaveris -uma primavera frisante como uma canção de Brian Wilson. Assim como a tela "Fogo de Artifício", uma explosão de cores alegres, sobretudo azul e verde, contra um fundo vermelho-rosa.
"Totem", uma superfície verde-claro, uma espacialidade quase desértica, e depois "Festival de Cinema", em que prevalece o detalhamento, uma variedade de formas minuciosas, caleidoscópio de cores e linhas que se cruzam ou correm paralelas numa infinidade de cenas, cores e formas abstratas em que ainda predomina o verde, um verde criado pelo pintor.
O verde, diz Monica, é a cor preferida do mestre, além do violeta. Vejo nos quadros o verde amarelado do casaco de Monica Vitti em "O Dilema de uma Vida", o azul e o vermelho das barracas do porto de Ravena, as cores das camisas de Jack Nicholson em "Profissão: Repórter" e assim por diante.
E penso numa frase igualmente elíptica de Antonioni, dita na época do seu primeiro filme em cores: "Se ainda existe autobiografia, é na cor que ela deve ser achada".

Vaivém contínuo
Olho com o mestre uma grande tela vertical, onde domina o ocre. Olho os papéis, as têmperas, uma delas belíssima, intitulada "Tapete Africano".
Todos os quadros induzem a um vaivém contínuo do olho do espectador, todos evocam uma tridimensionalidade alcançada pela aproximação das formas e das cores que, longe de parecerem gráficas, adquirem relevo.
A propósito de algumas pinturas que no início a desconcertavam, Monica me diz que "o mestre sempre chega a um equilíbrio, é capaz de harmonizar tudo no final", mesmo os signos aparentemente mais incongruentes.
E o vejo observando os próprios quadros, seguindo com os dedos as superfícies, acariciando-os sem os tocar, olhando-os com as mãos e finalmente testando a assinatura (mais uma vez a idéia de que seus "ícones" recorrentes são outras tantas assinaturas).
Ele é o espectador divertido e intrigado com suas próprias criações, como se não fosse o autor. Olha a si mesmo como um outro. Até que os libera com um gesto, não sem antes fazer um comentário: "Bonito", "muito bonito" ou um irônico "mamma mia!", como se dissesse: "Que loucura ter feito esse quadro".
O distanciamento em relação a suas telas, segundo me diz Enrica, reproduz a atitude que o cineasta tinha diante de seus filmes e remete a uma frase de Pascal que o pintor Giorgio Morandi (muito visitado e admirado por Antonioni) adorava citar: "O verdadeiro artista é aquele que sabe ficar sozinho num quarto".
Porém tanto na atitude quanto nas pinturas de Antonioni há um componente de jogo e de audácia que talvez somente a senilidade -infância reconquistada- possa exibir com tamanha leveza anárquica: suas obras são uma festa da liberdade. Sua tridimensionalidade encontra respaldo em outros trabalhos dele, como esculturas e colagens, feitas de papelão revestido de poliestireno ou madeira.


"Não existe a cor em absoluto, é sempre uma relação; relação entre o objeto e o observador, entre o objeto e a direção dos raios que o iluminam


Entalhes de diversas cores, encastoados e colados, que criam cenografias complexas, freqüentemente impossíveis (como se dizia das hipóteses espaciais e volumétricas do arquiteto Frank O. Gehry), prolongam o prazer tátil de sua pesquisa.
Monica, a assistente de Antonioni, sublinha mais uma vez a capacidade do mestre de sempre encontrar uma recomposição para aquilo que, de início, se apresenta como fragmentação irremediável, alcançando uma solução harmoniosa do informe, mesmo a despeito de sua incredulidade.
A mostra de Michelangelo Antonioni é acompanhada de um texto do patologista e estudioso de cinema David Kaminsky. Aludindo ao aspecto terapêutico desse "silêncio em cores", ele fala de "uma dimensão comunitária de cores que parece violar a austeridade e a solidão do estilo de seus filmes". Pode ser.
Mas também me ocorre o que o filósofo Gilles Deleuze afirmou sobre Antonioni em seu primeiro livro sobre cinema ("L'Image-Mouvement", A Imagem-Movimento, Minuit, 296 págs., 17,50 euros, R$ 48): "Ele é um dos maiores coloristas do cinema".
Deleuze trata do assunto no capítulo dedicado à "face", isto é, ao primeiro-plano, à "imagem-afecção" que confere qualidade de face a todo enquadramento -ou seja, intensidade, capacidade de relançar a afetividade e a potência da imagem a um efeito mais amplo e duradouro do que qualquer causa, qualquer lógica representativa.
Essa qualidade de "face" ou primeiro plano seria dada precisamente pela cor.
Deleuze notava então "o uso de cores frias levadas ao máximo de sua plenitude ou de sua intensidade a fim de ultrapassar a função absorvente", em que "a cor leva o espaço até o vazio, cancela o que absorveu", até chegar (objetivo do cinema de Antonioni, segundo Deleuze) "ao não-figurativo", "a uma aventura cujo termo é a eclipse da face, o cancelamento das personagens".

Influência de Rothko
É a vocação de Antonioni ao deserto -"O Dilema de uma Vida" ("Il Deserto Rosso", no original), "Zabriskie Point", "Profissão: Repórter"- mas também ao parque e à quadra de tênis -"Blow-Up - Depois Daquele Beijo".
A paixão de Antonioni pelos quadros de Mark Rothko, atestada por uma troca de cartas entre eles, confirma essa estética em que o silêncio das histórias e das relações humanas, aquela "incomunicabilidade" tão repetida pelos críticos, é viático e tensão rumo ao espaço puro e, deste, ao vazio.
Penso tudo isso olhando os quadros do mestre no silêncio da cobertura que se abre para o vazio, para as árvores ao longo do Tibre, para os vermelhos campos de tênis que mancham aquele verde. O que é a cor? Lembro-me de um diálogo central de "O Dilema de uma Vida". Ela: "O que você quer que eu faça com meus olhos? O que devo olhar?". Ele: "Você diz: "O que devo olhar". Eu digo: Como devo viver? É a mesma coisa".
Na época em que o filme foi lançado, Antonioni disse: "Não existe a cor em absoluto, é sempre uma relação. Relação entre o objeto e o observador (inclusive o estado físico do observador), entre o objeto e a direção dos raios que o iluminam, entre a matéria de que é formado o objeto e o estado psicológico do observador, no sentido de que ambos se sugestionam mutuamente. Ou seja, com a sua cor, o objeto exerce uma determinada sugestão sobre o observador, e este simultaneamente vê a cor que naquele momento o interessa ou lhe dá prazer ao ver aquele objeto".
E mais: "É com o hábito que se aprende a olhar as cores. Só depois de certa experiência conseguimos distinguir quanto há de cinza num amarelo ou quanto há de azul num cinza. Tudo isso são fatores imprescindíveis ao cinema em cores, porque a película reproduz muito mais fielmente do que o olho humano é capaz de ver e reproduzir uma cor em um determinado objeto. Mas, no cinema, tudo o que na vida comum é inconsciente deve tornar-se consciente. E se torna consciente justamente pelo hábito, pelo hábito de olhar as cores assim como elas são, olhar a realidade como ela é: colorida".
O cinema de Michelangelo Antonioni continua no silêncio em cores dos papéis e das telas.

Este texto saiu no "La Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias.


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