São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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De Fukuyama a Sharon Stone

Em "American Vertigo", Bernard-Henri Lévy recria a viagem que Tocqueville fez no século 19 e reinterpreta os EUA do século 21

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

F oi a "Atlantic Monthly", fundada em 1857 e ainda influente nos EUA, que estimulou a publicação do livro "American Vertigo". Num momento em que a oposição da França à invasão do Iraque gerava tensões nas relações franco-americanas, a revista convidou Bernard-Henri Lévy para seguir os traços da viagem de Tocqueville nos EUA.
Como se sabe, Tocqueville, com 25 anos, saiu da França em 1831 para fazer um estudo sobre as penitenciárias americanas. Escreveu um relatório sobre o assunto e em seguida publicou, em 1835 e 1840, o seu grande livro, "A Democracia na América" [Martins Fontes].
Considerado um dos escritos mais penetrantes sobre os EUA, é matéria de estudo obrigatório na maior parte das escolas secundárias e universidades norte-americanas.
BHL diz que Tocqueville era pouco conhecido entre os universitários franceses de sua geração. Não guardo essa impressão dos meus anos na Universidade de Aix-en-Provence. Mas é certo que houve na França, a partir de meados dos anos 1960, um redescobrimento de Tocqueville como autor antiautoritário.
Talvez sua obra venha a ser julgada sob um ângulo menos favorável quando forem mais divulgados seus escritos quase racistas -na linha de um Oliveira Vianna- sobre as guerras contra os índios nos Estados Unidos e sobre a colonização francesa na Argélia (vale lembrar que Tocqueville foi chanceler da França, em 1849, na Segunda República, quando começava a invasão da Argélia).
"American Vertigo" nem toca nesse assunto. Resta que o interesse americano pelas teses de "A Democracia na América" é compreensível. Tocqueville é um dos fundadores do "american exceptionalism".
Alimentado por outros europeus ilustres, como Hegel, e por muitos autores americanos, esse preceito defende a excepcionalidade da história dos EUA diante dos países europeus e o resto do mundo.
Além do decisivo apoio logístico da "Atlantic Monthly", que lhe permitirá visitar muita gente (Woody Allen, Sharon Stone) e quase tudo nos EUA -até a prisão de Guantánamo (em Cuba)-, BHL viajava com outra credencial importante: sua reputação de intelectual francês antiantiamericano.

Pretensões antagônicas
Stanley Hoffman, o grande especialista em história francesa da Universidade Harvard, definiu as raízes do longo amor-ódio que une os EUA e a França. Segundo ele, os dois países fizeram, em 1776 e 1789, as duas mais importantes revoluções modernas, cujos princípios humanistas suscitam mútua admiração mas também geram pretensões universalistas que são às vezes antagônicas.
BHL ignora tais nuanças e, nas primeiras páginas do livro, desce um sarrafo generalizado no antiamericanismo de seus compatriotas.
Há, porém, muitas diferenças entre o antiamericanismo primário da extrema esquerda e o da extrema direita francesas e o contraponto à hegemonia americana representado por De Gaulle no pós-guerra e ilustrado pelo gaullista Dominique de Villepin no seu discurso na ONU, em fevereiro de 2003, contra a invasão do Iraque.
Certas reações registradas em "American Vertigo" podem ser compartilhadas por quem vive noutras partes do mundo.
A irritação de ver os automobilistas americanos fazerem ultrapassagens pela direita nas auto-estradas; o espanto de cruzar com tanta gente gordíssima; o choque de atravessar cidades outrora importantes, em pleno declínio econômico e urbanístico, como Buffalo, Cleveland ou Detroit.
Outras estranhezas de BHL derivam de sua pouca vivência (lacuna que o conhecimento livresco não compensa) em um país como os EUA, no qual as comunidades de origem estrangeira ocupam as esferas de poder criadas pelo federalismo e onde a cidadania é concedida à nascença pelo "direito do solo". Bem ao contrário do centralismo político e do "direito de sangue" (cidadania concedida pela nacionalidade dos pais) que impera na França.

Pegadinhas cortantes
Muitas vezes BHL desfere pegadinhas sem compromisso nas coisas e nas gentes americanas, mas às vezes pega fundo -e bem. Desse modo, na parte final do livro, maneja seu treino de filósofo e de debatedor do Maio de 68 para criticar as teses de Fukuyama e Samuel Huntington -respectivamente, sobre "o fim da história" e o "choque de civilizações".
BHL viu bastante políticos e intelectuais de esquerda e de direita. Contudo não entra num assunto sobre o qual poderia dissertar com maestria: o ressentimento duradouro que a contestação estudantil dos anos 1960 na Europa e nos EUA suscitou entre outros estudantes e professores.
De Bush ao diretor do Banco Mundial, Paul Wolfowitz (estudantes na época), a Sarkozy (atual ministro do Interior da França, então também estudante) e até ao papa Bento 16 (professor em Tubingen), há toda uma camada de gente influente na Europa e nos EUA que guardou um rancor tenaz contra o "meia-oitismo".
Na sua forma mais radical, o fenômeno acaba de ser ilustrado pelo último livro de Bob Woodward ("State of Denial"), que revela a influência de Henry Kissinger sobre o presidente George W. Bush. Como tantos outros cornos ideológicos dos "sixties", Kissinger busca agora sua revanche e quer ganhar no Iraque a guerra que perdeu no Vietnã.
A leitura atenta do livro mostra que BHL deu muito mais piscadelas em direção aos franceses do que aos seus leitores americanos. Mas "American Vertigo", no seu estilo corrente e vivo, tem muitas sacadas que poderão ser apreciadas pelos leitores brasileiros.
Ao fim e ao cabo, chega-se à conclusão óbvia: BHL não é Tocqueville. Os dois são diferentes porque Tocqueville veio para a América quando ainda não sabia que seria Tocqueville.
Enquanto BHL já veio sabendo que era BHL e, mais ainda, sabendo que era quem ele acha que BHL é.

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e professor na Universidade de Paris, autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras).


AMERICAN VERTIGO
Autor:
Bernard-Henri Lévy
Tradutor: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Cia. das Letras (tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 52 (400 págs.)



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