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De Fukuyama a Sharon Stone
Em "American Vertigo", Bernard-Henri Lévy recria a viagem que Tocqueville
fez no século 19 e reinterpreta os EUA do século 21
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
F
oi a "Atlantic
Monthly", fundada em
1857 e ainda influente
nos EUA, que estimulou a publicação do livro "American Vertigo". Num
momento em que a oposição da
França à invasão do Iraque gerava tensões nas relações franco-americanas, a revista convidou Bernard-Henri Lévy para
seguir os traços da viagem de
Tocqueville nos EUA.
Como se sabe, Tocqueville,
com 25 anos, saiu da França
em 1831 para fazer um estudo
sobre as penitenciárias americanas. Escreveu um relatório
sobre o assunto e em seguida
publicou, em 1835 e 1840, o seu
grande livro, "A Democracia na
América" [Martins Fontes].
Considerado um dos escritos
mais penetrantes sobre os
EUA, é matéria de estudo obrigatório na maior parte das escolas secundárias e universidades norte-americanas.
BHL diz que Tocqueville era
pouco conhecido entre os universitários franceses de sua geração. Não guardo essa impressão dos meus anos na Universidade de Aix-en-Provence. Mas
é certo que houve na França, a
partir de meados dos anos
1960, um redescobrimento de
Tocqueville como autor antiautoritário.
Talvez sua obra venha a ser
julgada sob um ângulo menos
favorável quando forem mais
divulgados seus escritos quase
racistas -na linha de um Oliveira Vianna- sobre as guerras
contra os índios nos Estados
Unidos e sobre a colonização
francesa na Argélia (vale lembrar que Tocqueville foi chanceler da França, em 1849, na
Segunda República, quando começava a invasão da Argélia).
"American Vertigo" nem toca
nesse assunto.
Resta que o interesse americano pelas teses de "A Democracia na América" é compreensível. Tocqueville é um
dos fundadores do "american
exceptionalism".
Alimentado por outros europeus ilustres, como Hegel, e
por muitos autores americanos, esse preceito defende a excepcionalidade da história dos
EUA diante dos países europeus e o resto do mundo.
Além do decisivo apoio logístico da "Atlantic Monthly", que
lhe permitirá visitar muita gente (Woody Allen, Sharon Stone) e quase tudo nos EUA -até
a prisão de Guantánamo (em
Cuba)-, BHL viajava com outra credencial importante: sua
reputação de intelectual francês antiantiamericano.
Pretensões antagônicas
Stanley Hoffman, o grande
especialista em história francesa da Universidade Harvard,
definiu as raízes do longo
amor-ódio que une os EUA e a
França. Segundo ele, os dois
países fizeram, em 1776 e 1789,
as duas mais importantes revoluções modernas, cujos princípios humanistas suscitam mútua admiração mas também geram pretensões universalistas
que são às vezes antagônicas.
BHL ignora tais nuanças e,
nas primeiras páginas do livro,
desce um sarrafo generalizado
no antiamericanismo de seus
compatriotas.
Há, porém, muitas diferenças entre o antiamericanismo
primário da extrema esquerda
e o da extrema direita francesas
e o contraponto à hegemonia
americana representado por
De Gaulle no pós-guerra e ilustrado pelo gaullista Dominique
de Villepin no seu discurso na
ONU, em fevereiro de 2003,
contra a invasão do Iraque.
Certas reações registradas
em "American Vertigo" podem
ser compartilhadas por quem
vive noutras partes do mundo.
A irritação de ver os automobilistas americanos fazerem ultrapassagens pela direita nas
auto-estradas; o espanto de
cruzar com tanta gente gordíssima; o choque de atravessar cidades outrora importantes, em
pleno declínio econômico e urbanístico, como Buffalo, Cleveland ou Detroit.
Outras estranhezas de BHL
derivam de sua pouca vivência
(lacuna que o conhecimento livresco não compensa) em um
país como os EUA, no qual as
comunidades de origem estrangeira ocupam as esferas de
poder criadas pelo federalismo
e onde a cidadania é concedida
à nascença pelo "direito do solo". Bem ao contrário do centralismo político e do "direito
de sangue" (cidadania concedida pela nacionalidade dos pais)
que impera na França.
Pegadinhas cortantes
Muitas vezes BHL desfere
pegadinhas sem compromisso
nas coisas e nas gentes americanas, mas às vezes pega fundo
-e bem. Desse modo, na parte
final do livro, maneja seu treino
de filósofo e de debatedor do
Maio de 68 para criticar as teses
de Fukuyama e Samuel Huntington -respectivamente, sobre "o fim da história" e o "choque de civilizações".
BHL viu bastante políticos e
intelectuais de esquerda e de
direita. Contudo não entra
num assunto sobre o qual poderia dissertar com maestria: o
ressentimento duradouro que
a contestação estudantil dos
anos 1960 na Europa e nos EUA
suscitou entre outros estudantes e professores.
De Bush ao diretor do Banco
Mundial, Paul Wolfowitz (estudantes na época), a Sarkozy
(atual ministro do Interior da
França, então também estudante) e até ao papa Bento 16
(professor em Tubingen), há
toda uma camada de gente influente na Europa e nos EUA
que guardou um rancor tenaz
contra o "meia-oitismo".
Na sua forma mais radical, o
fenômeno acaba de ser ilustrado pelo último livro de Bob
Woodward ("State of Denial"),
que revela a influência de
Henry Kissinger sobre o presidente George W. Bush. Como
tantos outros cornos ideológicos dos "sixties", Kissinger busca agora sua revanche e quer
ganhar no Iraque a guerra que
perdeu no Vietnã.
A leitura atenta do livro mostra que BHL deu muito mais
piscadelas em direção aos franceses do que aos seus leitores
americanos. Mas "American
Vertigo", no seu estilo corrente
e vivo, tem muitas sacadas que
poderão ser apreciadas pelos
leitores brasileiros.
Ao fim e ao cabo, chega-se à
conclusão óbvia: BHL não é
Tocqueville. Os dois são diferentes porque Tocqueville veio
para a América quando ainda
não sabia que seria Tocqueville.
Enquanto BHL já veio sabendo
que era BHL e, mais ainda, sabendo que era quem ele acha
que BHL é.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e
professor na Universidade de Paris, autor de "O
Trato dos Viventes" (Companhia das Letras).
AMERICAN VERTIGO
Autor: Bernard-Henri Lévy
Tradutor: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Cia. das Letras (tel. 0/xx/
11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 52 (400 págs.)
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