|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Gênio do bom humor
O MAIOR PIANISTA BRASILEIRO FALA DA INTERPRE-
TAÇÃO DE SUAS OBRAS E DA REAÇÃO DO PÚBLICO
NELSON FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando eu era
criança, o desafio
das grandes obras
universais do repertório pianístico
ocupava o centro das preocupações de todos nós. Os compositores brasileiros eram em
geral considerados de menor
complexidade, e suas obras
mereciam leituras muitas vezes apressadas e superficiais.
Essa percepção mudou radicalmente para mim ainda na
primeira juventude, depois de
ouvir Guiomar Novaes tocar "A
Prole do Bebê nº 1" [de Villa-Lobos] num recital inesquecível no Rio de Janeiro.
Percebi então, de uma vez
por todas, que sua música era
universal como a de Bach, Beethoven, Brahms ou qualquer
outro gênio da história da música. Essa noção só se aprofundou, ao longo dos anos.
Admiro sua produção exuberante, a perfeição com que escreve para todos os instrumentos. Suas obras para piano são
pianísticas a um grau máximo,
para não falar das obras para
violão, instrumentos de sopro e
de arco -o seu gênio melódico,
a complexidade polifônica da
sua escrita, a vitalidade rítmica
de tudo o que escreve, sua
enorme fantasia.
Sobretudo, tenho a ideia de
que ele foi o primeiro a não se
intimidar em expressar a grandeza física do país. Não admira:
ele conhecia o Brasil inteiro como quase ninguém na época.
Tenho tocado Villa-Lobos
mundo afora, e a reação do público é sempre semelhante: sua
música deixa os ouvintes de
bom humor.
É uma música benfazeja. Toquei inúmeras vezes o "Momo
Precoce" (dedicado a Magdalena Tagliaferro, grande intérprete de Villa-Lobos, cuja versão de "Impressões Seresteiras" é a melhor que conheço).
Lembro-me de uma vez, na
Holanda, em que a percussão
da orquestra que me acompanhava tocou a batucada tão
maravilhosamente que me
senti no meio de uma escola de
samba carioca.
"Bachianas" e "Choros"
Amo as "Bachianas", os
"Choros", as "Cirandas".
Admiro profundamente a riqueza e a imaginação da sua orquestração, como, por exemplo, em "O Trenzinho do Caipira", que não consigo ouvir sem
me emocionar. E como ele trata a voz humana!
Quer coisa mais inspirada
que as "Bachianas nº 5" para
soprano e violoncelos? E o que
dizer de obras como "Floresta
Amazônica" e o "Choro nº 10"
(Rasga Coração), com a integração fantástica do coro com a
orquestra?
Considero notáveis as gravações do próprio Villa-Lobos interpretando "Alma Brasileira",
"A Lenda do Caboclo" e o "Polichinelo". Arnaldo Estrella tem
também gravações ótimas de
obras do seu amigo.
Homero de Magalhães tocava e gravou muito bem a série
das "Cirandas".
Tenho uma estima profunda
pelas duas séries da suíte "A
Prole do Bebê" e me admiro
sempre ao pensar que entre as
de números um e dois transcorreram tão poucos anos, apesar de estilisticamente serem
tão diferentes.
Amigo íntimo
Gravei em Berlim um LP dedicado a Villa-Lobos, que depois foi remasterizado e publicado em CD.
Nele toco o "Rudepoema",
que Villa-Lobos dedicou ao seu
amigo íntimo, Arthur Rubinstein, que tanto fez pela glória
mundial de Heitor.
Na dedicatória, Villa-Lobos
afirma que "Rudepoema" é o
retrato psicológico do pianista.
Pode ser interpretado também
como um autorretrato: Villa-Lobos insiste muito no caráter
selvagem da sua personalidade.
Tenho para mim que sua música não é selvagem; é profundamente culta, bem escrita,
inspirada, visando a grandeza.
Se peca por algo, nunca será
por mesquinhez ou estreiteza
de vistas.
Uma vez, cheguei a Nova
York para um concerto, e lá estava, estudando no mesmo "basement" da Steinway, a minha
idolatrada Guiomar Novaes.
Ela ia dar no dia seguinte um
recital com um programa exigentíssimo, com sonatas de
Beethoven, Chopin etc.
Tinha desembarcado do Brasil naquela manhã mesmo e, ao
iniciar sua longa sessão de estudo, o que escolheu para começar? "A Moreninha", da "Prole
do Bebê nº 1". Estudada devagar, nota por nota.
Autógrafo
Conheci Villa-Lobos durante
o seu último ano de vida. Depois de um concerto sinfônico
regido por ele no Teatro Municipal, fui ao camarim pedir-lhe
um autógrafo no programa, que
guardo comigo até hoje.
Se ocorrer durante um recital, por algum motivo, de eu me
sentir tenso ou pouco confortável, basta chegar às obras de Villa-Lobos que imediatamente
me descontraio. É como se estivesse em casa. Por isso, ouso dizer que Villa-Lobos também
gosta de mim.
NELSON FREIRE é pianista brasileiro e um dos
principais intérpretes de Villa-Lobos.
Texto Anterior: O ideólogo do folclore Próximo Texto: + Cronologia Índice
|