São Paulo, domingo, 15 de novembro de 2009

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Gênio do bom humor

O MAIOR PIANISTA BRASILEIRO FALA DA INTERPRE- TAÇÃO DE SUAS OBRAS E DA REAÇÃO DO PÚBLICO

NELSON FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando eu era criança, o desafio das grandes obras universais do repertório pianístico ocupava o centro das preocupações de todos nós. Os compositores brasileiros eram em geral considerados de menor complexidade, e suas obras mereciam leituras muitas vezes apressadas e superficiais.
Essa percepção mudou radicalmente para mim ainda na primeira juventude, depois de ouvir Guiomar Novaes tocar "A Prole do Bebê nº 1" [de Villa-Lobos] num recital inesquecível no Rio de Janeiro. Percebi então, de uma vez por todas, que sua música era universal como a de Bach, Beethoven, Brahms ou qualquer outro gênio da história da música. Essa noção só se aprofundou, ao longo dos anos.
Admiro sua produção exuberante, a perfeição com que escreve para todos os instrumentos. Suas obras para piano são pianísticas a um grau máximo, para não falar das obras para violão, instrumentos de sopro e de arco -o seu gênio melódico, a complexidade polifônica da sua escrita, a vitalidade rítmica de tudo o que escreve, sua enorme fantasia.
Sobretudo, tenho a ideia de que ele foi o primeiro a não se intimidar em expressar a grandeza física do país. Não admira: ele conhecia o Brasil inteiro como quase ninguém na época. Tenho tocado Villa-Lobos mundo afora, e a reação do público é sempre semelhante: sua música deixa os ouvintes de bom humor.
É uma música benfazeja. Toquei inúmeras vezes o "Momo Precoce" (dedicado a Magdalena Tagliaferro, grande intérprete de Villa-Lobos, cuja versão de "Impressões Seresteiras" é a melhor que conheço). Lembro-me de uma vez, na Holanda, em que a percussão da orquestra que me acompanhava tocou a batucada tão maravilhosamente que me senti no meio de uma escola de samba carioca.

"Bachianas" e "Choros"
Amo as "Bachianas", os "Choros", as "Cirandas". Admiro profundamente a riqueza e a imaginação da sua orquestração, como, por exemplo, em "O Trenzinho do Caipira", que não consigo ouvir sem me emocionar. E como ele trata a voz humana! Quer coisa mais inspirada que as "Bachianas nº 5" para soprano e violoncelos? E o que dizer de obras como "Floresta Amazônica" e o "Choro nº 10" (Rasga Coração), com a integração fantástica do coro com a orquestra?
Considero notáveis as gravações do próprio Villa-Lobos interpretando "Alma Brasileira", "A Lenda do Caboclo" e o "Polichinelo". Arnaldo Estrella tem também gravações ótimas de obras do seu amigo. Homero de Magalhães tocava e gravou muito bem a série das "Cirandas". Tenho uma estima profunda pelas duas séries da suíte "A Prole do Bebê" e me admiro sempre ao pensar que entre as de números um e dois transcorreram tão poucos anos, apesar de estilisticamente serem tão diferentes.

Amigo íntimo
Gravei em Berlim um LP dedicado a Villa-Lobos, que depois foi remasterizado e publicado em CD. Nele toco o "Rudepoema", que Villa-Lobos dedicou ao seu amigo íntimo, Arthur Rubinstein, que tanto fez pela glória mundial de Heitor.
Na dedicatória, Villa-Lobos afirma que "Rudepoema" é o retrato psicológico do pianista. Pode ser interpretado também como um autorretrato: Villa-Lobos insiste muito no caráter selvagem da sua personalidade. Tenho para mim que sua música não é selvagem; é profundamente culta, bem escrita, inspirada, visando a grandeza.
Se peca por algo, nunca será por mesquinhez ou estreiteza de vistas. Uma vez, cheguei a Nova York para um concerto, e lá estava, estudando no mesmo "basement" da Steinway, a minha idolatrada Guiomar Novaes. Ela ia dar no dia seguinte um recital com um programa exigentíssimo, com sonatas de Beethoven, Chopin etc.
Tinha desembarcado do Brasil naquela manhã mesmo e, ao iniciar sua longa sessão de estudo, o que escolheu para começar? "A Moreninha", da "Prole do Bebê nº 1". Estudada devagar, nota por nota.

Autógrafo
Conheci Villa-Lobos durante o seu último ano de vida. Depois de um concerto sinfônico regido por ele no Teatro Municipal, fui ao camarim pedir-lhe um autógrafo no programa, que guardo comigo até hoje.
Se ocorrer durante um recital, por algum motivo, de eu me sentir tenso ou pouco confortável, basta chegar às obras de Villa-Lobos que imediatamente me descontraio. É como se estivesse em casa. Por isso, ouso dizer que Villa-Lobos também gosta de mim.


NELSON FREIRE é pianista brasileiro e um dos principais intérpretes de Villa-Lobos.


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