São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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O psicanalista Jurandir Freire Costa investiga a construção histórica do amor romântico e mostra que essa crença emocional está com os dias contados
A invenção do amor

Rosene Marinho/Folha Imagem
O psicanalista Jurandir Freire Costa, que está lançando 'Sem Fraude Nem Favor', em seu apartamento no Rio


CÁSSIO STARLING CARLOS
ALCINO LEITE NETO
enviados especiais ao Rio

Nesta época chamada de pós-utópica, na qual os grandes ideais foram implodidos ou caíram em desuso, o que se pode esperar do amor -derradeiro ideal que ainda resiste ao naufrágio? De onde vem o poder de sedução dessa idéia, qual é a chave do seu segredo?
Analisar a "física do sentimento amoroso" foi a tarefa assumida pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 54, em seu novo livro, "Sem Fraude Nem Favor" (Ed. Rocco, 224 págs., R$ 22,50).
Em quatro ensaios, Freire Costa examina a utopia erótica nas obras de Marcuse e Foucault, a eternização do amor direcionado a Deus no pensamento de Santo Agostinho, a dissociação entre amor e sexualidade operada com maior ênfase na psicanálise por Michael Balint e, por fim, a "gramática do amor romântico", na qual examina o discurso ainda vigente sobre o amor, formulado por escritores, ensaístas e filósofos contemporâneos.
Especialista em expor os discursos ocultos sob as normas -sociais, morais, comportamentais, psicológicas-, Freire Costa dedica-se em seus estudos a mostrar que a chamada "normalidade" possui uma gênese e uma história, ou seja, não existe desde sempre e que, como veio a se tornar padrão, também pode deixar de sê-lo.
"Sem Fraude Nem Favor" demonstra o que há de histórico, relativo, condicional no ideal ainda marcado com o selo da eternidade. Uma lista que inclui Helena de Tróia e Páris, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Charlotte e Werther, Ceci e Peri, os heróis românticos de "...E o Vento Levou" e "Titanic" parecem comprovar que o amor sempre foi essa força avassaladora dos sentimentos, que nada, nem a morte, detém.
Para decepção de muitos, "Sem Fraude Nem Favor" derruba essa derradeira crença e mostra que "o amor foi inventado, como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o computador, a democracia, o nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo".
Qual a necessidade de criticar e demolir o último ideal que nos resta?, podem perguntar alguns. "Apesar do enorme prestígio cultural, o amor deixou de ser um puro momento de encanto para se tornar uma corvéia. Quando é bom não dura e quando dura já não entusiasma" é uma das razões alegadas pelo autor.
O que produziu essa situação? O ideal do amor no qual nos fixamos, herdado do romantismo, "embalado por adiamentos, renúncias, devaneios, esperanças no futuro e "doces momentos do passado'" tornou-se contraditório com nossa "paixão pelo efêmero".
Em outras épocas, o amor não só era outro, como estava relativamente à prova de crises de esgotamento à medida que não se reduzia à satisfação narcísica, ao gozo dos prazeres e das sensações "sem memória e sem história".
Por exemplo, entre os gregos, estava a serviço da verdade e da pólis; entre os cristãos, alimentava o poder de Deus e a inclinação para o próximo; a partir da ascensão da burguesia, sustentava os laços de coesão social, como defendia Rousseau, um dos pais espirituais do romantismo.
Hoje, "privados de ideais afetivamente importantes, voltamo-nos para o amor como quem espera a Arca de Noé. Só que o Dilúvio chegou antes", escreve o autor.
Devemos, então, abandonar essa canoa furada? Nem essa receita está disponível. "Sem Fraude Nem Favor" não é obra de curandeirismo emocional.
Em entrevista à Folha, no Rio, Freire Costa mostra que podemos nos livrar de um ideal de amor caduco, mas não estamos livres da necessidade de reinventá-lo.

Folha - Na origem de seu livro sobre o amor está uma pesquisa sobre a sexualidade. Como ocorreu esse desvio de rota?
Jurandir Freire Costa -
Nós pesquisávamos a quantas andava a hierarquia sexual de adolescentes entre 13 e 16 anos e adultos-jovens, universitários, das zonas sul e norte do Rio de Janeiro. O que eles pensavam sobre o avanço e a supersaturação da temática sexual, inclusive nos meios de comunicação. O amor foi surgindo como subproduto desta pesquisa. A gente percebeu que a sexualidade não era mais problemática.
Eles guardavam as mesmas categorias sexuais conservadoras, só que justificavam as preferências morais e as escolhas com argumentos diferentes. Não eram mais argumentos religiosos, nem de degradação moral, mas uma questão de competência pessoal.
A homossexualidade, por exemplo, era em geral tratada como uma inferioridade psicológica. Era como se esses jovens tivessem introjetado as crenças psicológicas da maioria das teorias que evitam a condenação moral, mas seguem hierarquias científicas, inclusive a própria psicanálise.
Mas em tudo o que eles diziam ou faziam o grande problema era o conflito amoroso, não a sexualidade. Quer eles tivessem a preferência x ou y, o impasse maior era que eles não conseguiam mais se satisfazer amorosamente. Era a grande frustração. O amor estava no topo da expectativa, tinha um valor imenso, e não havia como relativizar essa preferência, como outras pessoas relativizam outros ideais, por exemplo os religiosos -o que não é mais problemático.
Folha - De que maneira essa insatisfação amorosa era formulada?
Freire Costa -
As pessoas não querem mais compromissos. Elas não olham mais para os outros como alguém com quem elas quisessem construir uma história de parceria, de ternura -tudo aquilo que o amor tem de mais elevado.
Por outro lado, sempre culpavam o outro por isso acontecer. Cada um deles se julgava disposto e aberto ao amor, mas dizia encontrar uma barreira. Todos afirmavam: eu me precavenho sempre, porque sei que vou me apaixonar e sei que o outro não vai querer, ele vai me abandonar, então não vou me arriscar. O resultado é uma grande apatia, uma descrença em relação ao amor.
Folha - Quer dizer: todos querem o amor, mas temem amar.
Freire Costa -
Sim, porque eles acham que não vão receber em troca, seja porque o outro é fútil, não tem constância, é inibido etc. É a realidade psicológica de cada um. Se você olha um pouco de fora, vê que todo mundo está na dança sem perceber que está. E o que o que ele está dizendo, o outro também está dizendo dele.
Também constatei isso na minha prática de psicanalista, na qual a situação ecoa inclusive em pessoas de faixa etária mais alta, acima dos 35 anos, todos com o mesmo discurso de descrença e desilusão.
Assim, percebi que o problema não era a sexualidade, que esta era na verdade uma cortina de fumaça. A questão que permanecia não tematizada, não discutida, era que todos criticam os ideais sexuais do outro, e é fácil fazer isso, mas há uma unanimidade absoluta em torno do valor do amor. Você pode resolver a sexualidade trocando as expectativas, fazendo mudanças, mas isso não ocorre com o amor. As pessoas acreditam que o amor é intocável, absolutamente bom, isto é, ideal.
Folha - Que tipo de ideal?
Freire Costa -
É um ideal que esconde os compromissos culturais, pois é apresentado como sendo espontâneo, e não um aprendizado de regras de satisfação pessoal, de admiração do outro, e dele por você, e de administração da habilidade de ter o êxtase, que é basicamente o que o amor romântico oferece.
Você aprende que o amor é natural e, quando não tem essa capacidade de realizar o amor, o defeito é seu. Você raramente consegue perceber que o próprio ideal pode ser contraditório com outras injunções que estão sendo pedidas para você ser feliz, como a exigência em nossa época, direcionada à satisfação sensual, ao prazer.
Folha - Você escreve que o amor não é natural, que é uma invenção, como a roda, o fogo e o casamento. Diz ainda que ele é uma crença historicamente construída. Como um ideal pode ter persistido por tanto tempo na cultura?
Freire Costa -
Quando eu digo que ele é uma invenção, forço um pouco a comparação para poder chamar a atenção das pessoas. Ele é uma invenção, assim como a invenção do religioso.
Além disso, a unicidade do amor é reconstruída. Quando você começa a criar o valor cultural do amor romântico, por exemplo, no final do século 18, há um remanejamento de todas as imagens à disposição para dar legimitidade ao que se está defendendo.
Da mesma maneira aconteceu com os ideais políticos. Quando os revolucionários quiseram defender a república, eles remanejaram todas as imagens que tinham na cultura, por exemplo, a democracia grega, os experimentos republicanos de algumas cidades burguesas. De tal maneira que, quando se aprende o ideal republicano, aprende-se que o ideal da humanidade caminha nessa direção, que o resto é barbárie. Mas sabemos que até o advento da democracia, da república moderna, o progresso da humanidade era descrito como em direção à aristocracia.
Da mesma maneira, o romantismo remaneja do passado todos os elementos que serão os do amor-paixão: o amor platônico, a "caritas" (caridade) cristã, o amor cortês medieval etc.
Folha - Mas, se nos dirigirmos para mais longe do universo romântico, por exemplo à Grécia clássica, iremos encontrar o mesmo amor? Os gregos amavam como nós?
Freire Costa -
Amavam. Alguma coisa na experiência erótica grega se assemelha à nossa. Mas o amor de um grego por uma pessoa era praticamente restrito a episódios esporádicos de sua vida. Quando era por uma mulher, então, a coisa se tornava ainda mais estranha, porque esse amor era apresentado como desvio. Quando se tratava de amores masculinos, isso era submetido a um código que não tem nada a ver com a forma como nós pensamos. O amor grego era um amor no qual a cidade intervinha, ele estava a serviço da pólis (cidade grega). Não era um amor autônomo. Seria como se você pensasse hoje que vai amar para ser um bom cidadão e que, no momento em que você não estiver sendo assim, então esse amor não prestará mais. Seria inconcebível.
Da mesma maneira, no início do cristianismo, eu posso amar, sim, mas o meu amor está diluído. No momento em que minha tarefa de evangelizador, de mantenedor da comunidade cristã, for prejudicada, eu paro de amar, porque o meu amor se tornou pecado, um desvio, uma aberração.
O problema não é dizer que um grego não era capaz de amar como eu sou, ou seu amor ter um parentesco com o atual. Seguramente que sim. O fato, no entanto, é que o sentimento só, como a gente imagina, o sentimento de êxtase, não garante a identidade do complexo emocional. Tento demonstrar que a própria ênfase no sentimento já é uma escolha que o romantismo amoroso faz para produzir uma identidade. Essa mesma emoção era sustentada na Grécia, por exemplo, por crenças e julgamentos diferentes que alteram sensivelmente o complexo da emoção.
O valor do amor para o grego era um valor submetido à idéia de verdade, da razão e do interesse pela pólis e da própria transcendência desse interesse pela pólis, como em Platão.
Os gregos, além disso, não tinham a idéia de privacidade, nem mesmo no sentido de interioridade. A singularidade do grego era basicamente a de quem age de maneira diferente, de quem tem uma excelência na vida pública. O que podemos chamar de interioridade nele não é a interioridade dos sentimentos, pois isso não era valorizado, mas era a interioridade do pensamento.
Nunca se passaria que a tarefa mais nobre de um grego fosse a de encontrar por meio do sentimento sua singularidade como pessoa. Essa, ele iria encontrar nos feitos, nas ações, naquilo que fazia, nunca na descoberta sentimental. Esse homem interior que conhecemos demorou séculos para existir.


Quando o amor romântico se instalou, ele tinha uma expressividade cultural enorme, enquanto ideal; era aceito por todo mundo, porque se apresentava como qualquer coisa que não atendia apenas ao interesse e às sensações do indivíduo


Folha - Como se realizou a passagem desse amor intelectual grego para o amor religioso cristão?
Freire Costa -
Como disse Nietzsche, o cristianismo é um platonismo para o povo. O que os cristãos fizeram, Santo Agostinho particularmente, foi substituir a cidade terrena pela cidade de Deus. Agostinho desloca o amor platônico do lugar ideal, das formas eternas, das essências, para Deus. E boa parte das regras do platonismo, o entendimento como o caminho para alcançar o amor perfeito e verdadeiro, por exemplo, vai ser reproduzida no cristianismo, assim como as regras do estoicismo, da contenção, da sexualidade resumida ao casal, do abandono de interesses mundanos da cidade, do recolhimento.
Folha - Que impacto teve a fórmula cristã "amai-vos uns aos outros" na ordem amorosa?
Freire Costa -
Na literatura cristã dos três primeiros séculos a Igreja era uma Igreja do martírio. Você canta o amor a todos, mas é mais importante cantar os grandes feitos dos mártires, dos evangelizadores, da luta contra o opressor. Depois, pouco a pouco, a idéia foi se cristalizando, mas não se tem ainda o amor para com o outro como a preocupação central. Isso se vê em autores como São Paulino de Nola, no qual o amor ao próximo é visto como algo muito extenso e que nós, humanos, não podemos alcançar, senão no final de um percurso. No início, o próximo é o próximo mesmo, um amigo.
Folha - No entanto, há uma faceta "apaixonada" do cristianismo, manifestada nos místicos.
Freire Costa -
Sim, na corrente mística já começa a se desenvolver muito êxtase sentimental como a gente vive no amor, mas isso em relação a Deus. Como eu procurei mostrar, boa parte do vocabulário que a gente usa hoje para falar das pessoas que estão apaixonadas era aquele que os místicos espanhóis usavam, mas mesmo antes.
Folha - O amor cortês, surgido na Idade Média, significou a reemergência do amor profano?
Freire Costa -
No amor cortês você não tem mais o sentimento em relação a Deus, mas em relação à mulher. Isso era inusitado. Você pega a literatura do amor cortês, nos anos 1100, 1140, o ciclo arturiano, Tristão e Isolda etc. e começa a ver então duas pessoas dizerem que é legítimo elas sentirem o que sentem, independentemente do mundo, contra o mundo todo. Isso é uma revolução absoluta. Tanto assim, que a Igreja sentiu aquilo como um inimigo. Nos séculos 12, 13, começa então a se desenvolver o culto à Maria, a mariologia, que praticamente não existia antes: se há uma mulher que pode merecer o amor é a mãe de Deus, nunca as damas. Então, os homens podem de fato amar uma mulher, mas essa mulher é a Virgem, não uma mulher mortal.
Folha - Foi só então com o romantismo que o amor se deslocou para a esfera do privado e se tornou um problema individual?
Freire Costa -
Sim, primeiro, começa a haver forte predisposição para se acreditar que o sentimento amoroso não era um bem objetivo, que estava do lado de fora e vinha habitar as pessoas, como na teologia cristã ou mesmo no helenismo. Nestes, o amor não dependia de mim, eu chegava até ele por asceses racionais ou emocionais, dependendo se fosse racionalista ou místico. Antes do romantismo, ninguém imaginava que o amor fosse qualquer coisa que viesse de dentro, das entranhas.
Quando chega o final do século 18 começa a existir um grande número de autores sentimentalistas e filósofos políticos e moralistas, como La Rochefoucauld. Todos esses autores já começam a definir o indivíduo como um composto de sentimentos e interioridade. Assim, havia uma preparação para acabar com toda a explicação religiosa ou sobrenatural e buscar uma explicação materialista.
Outro fator foi uma reação que surgiu ao modo de vida da corte, conforme analisa Norbert Elias. Uma reação contra aquele estilo descrito em "As Ligações Perigosas", que é a arte da sedução, do amor como arte de representação em corte, muito ligada à performance da sexualidade.
Há um grande movimento, psicologicamente muito opressivo, de interiorização dos sentimentos, para que as pessoas não manifestem aquilo que sentem e não percam a posição no jogo da corte, nem os privilégios. Gerações cultas inteiras vão aprendendo a modelar as emoções e a dizer que o verdadeiro sentimento elas trazem dentro de si.
Folha - Isso quer dizer que o romantismo nega o teatro sexual da corte no século 18 por meio de uma espécie de moral do amor?
Freire Costa -
Acredito que a partir do romantismo tivemos uma espécie de vitória da corrente moderada do rousseauísmo: o amor surge, pode ser apaixonado, extático, sexual na adolescência, mas depois tem que se tornar sensato, atender os compromissos de criação dos filhos, da reprodução da família e formação do cidadão.
É uma espécie de métrica, de desejo de harmonia, um tríplice encaminhamento: eu passo do amor de si para o amor sexual e, em seguida, para o amor aos filhos etc. Mas, ao mesmo tempo em que falava do apaixonamento da juventude, Rosseau abria espaço para que o amor fosse cristalizado e se dissesse: por que só a juventude e não a vida toda? É como se ele parasse a meio caminho de uma revolução, porque era um homem prático, queria organizar uma sociedade que funcionasse.
Você tem então esta espécie de equilíbrio extremamente interessante. De um lado, tensões sendo acalentadas por tudo que há de mais vulcânico, exuberante, e, de outro, algo totalmente pedestre, articulado à reprodução da sociedade e à criação do indivíduo burguês e do cidadão democrático. Essa partilha do ponto de vista privado, em que se pode experimentar a princípio o que queira, mas que do lado público é o terreno da calma, sem grande excitação, é esse o ideal romântico.
Folha - Esse equilíbrio impedia que o amor se reduzisse às paixões individuais e ao egoísmo?
Freire Costa -
Quando o amor romântico se instalou, ele tinha uma expressividade cultural enorme, enquanto ideal, transcendência. Era difundido e aceito por todo mundo, porque se apresentava como qualquer coisa que não atendia exclusivamente ao interesse e às sensações do indivíduo. Os indivíduos que amavam apenas para poder gozar sexualmente, apenas para ter o êxtase sentimental, eram apresentados como desviantes, dissipados, libertinos, cortesãos -e o fim deles era o da dama das camélias, que morreu tuberculosa, sofrendo sob acordes de ópera.
Folha - O romantismo, no entanto, parece incitar como nunca antes a sexualidade, não?
Freire Costa -
Ele incitava a sexualidade para que ela fosse a lenha da fogueira dos sentimentos. Ele insuflava o sexo, enquanto ele permitia a coesão social, independentemente de potências externas. É como se minha unidade com o outro fosse pelo magnetismo que a sexualidade dá. Eu não precisaria do Leviatã para me reunir ao outro. Mas a sexualidade não podia perder o freio. Senão, poderia reverter num novo egoísmo, que segundo Hobbes estava na base de qualquer amor.
Quando falamos de uma potência disruptiva, que emerge muitas vezes como a figura do mal, temos a impressão que é a potência da sexualidade. Mas eu volto a discutir isso no livro, pois, quando escrevi sobre Santo Agostinho, tentei demonstrar que a sexualidade também não é uma coisa natural, espontânea, que tem que explodir dessa forma.
O título do livro, "Sem Fraude Nem Favor", é uma citação do opositor de Santo Agostinho, Juliano de Eclano, que tinha o ideal do que eu chamei de sexo discreto. Para Juliano, a sexualidade é a da civilização romana, que tinha séculos de regulação e que não causava nenhum problema mais, estava perfeitamente solidificada no que devia e não devia.
Mas, depois de Agostinho, começa-se a fazer disso o mal por excelência, o sinal da discórdia entre a vontade humana e a vontade divina. Porque o sexo não obedece à minha vontade, ele é símbolo de que eu me tornei homem de fato e perdi minha harmonia com Deus. E você vai medir o seu tutano ético pela força com que é capaz de domesticar a sua sexualidade. Quanto mais se constrói isso, mais se difunde a idéia de que ali há algo de poderoso, irrefreável e incontido. Mas o que se vê é que na modernidade isso acabou.


O que existe hoje é uma despreocupação com o bem comum, é o fim do político; a sexualidade não caminha no sentido de poder nos unir em torno de questões coletivas


Folha - O século 20 tornou-se a época da desrepressão da sexualidade, ao ponto de não termos mais fronteiras entre público e privado, como no episódio do presidente Clinton. O que se passou?
Freire Costa -
A privacidade, como eu escrevo, tem duas acepções. Uma, é que a minha vida pessoal, no que diz respeito aos meus sentimentos, é livre para se fazer e refazer independentemente de intervenção pública -é uma das conquistas do idéário democrático. Mas também significa intimidade, essa fronteira bem clara entre o que é público e "publicizável" e o que fica na alcova e é da ordem da minha interioridade e dos meus sentimentos.
O que você tem hoje é um apagamento dessas fronteiras. Você vê que grandes temas privados passam a se tornar públicos, quando não políticos. Em particular a sexualidade das pessoas, a exemplo de Clinton. O que é novo é que a fronteira da intimidade está se dissolvendo.
Se havia algo que delimitava o que era da ordem dos sentimentos, era que só eu sabia dos meus sentimentos e não o outro. Aquilo formava o reino do pudor, que antigamente era virtude pública.
Hoje em dia você tem essa espécie de exposição sistemática da intimidade ao olhar de todos, e isso passa a ser objeto de atenção, de atração e de debate, mas sem se constituir em bem comum. Na verdade, o que existe hoje é uma despreocupação com o bem comum -o que eu chamo de decadência do político.
E, no lugar do político, que era uma espécie de contrapartida pública do íntimo, você tem uma espécie de espaço indiferenciado que está se constituindo, que consiste em trazer temas da intimidade para a publicidade. Isso aí passa então a interessar a todos, embora não seja algo do bem comum.
Folha - A sexualidade não poderia substituir o amor na função de criar um bem comum?
Freire Costa -
É impossível. Não que não possamos recriar uma sexualidade que possa servir de parâmetro ao bem público -podemos inventar tudo-, mas eu não vejo no horizonte da cultura essa possibilidade.
Por quê? Porque a sexualidade não caminha no sentido de poder nos unir em torno de questões coletivas ou de algo que seja comum a todos nós. Ela continua esse movimento de singularização das sensações de que somos capazes. O que a sexualidade está fazendo é proliferar as diferenças. Ora, tudo que você quer quando constrói utopias é encontrar aquilo que une, que é semelhante, que é solo comum a muitos. Liberdade, igualdade e fraternidade independem de saber se a pessoa sente mais ou menos orgasmos.
Acho que a sexualidade atualmente é vivida para criar em nós uma identidade cujo modelo é o do reconhecimento das sensações. Com ela, o que eu estou dizendo é apenas isso: busque seu lugar numa sociedade de ofertas múltiplas, encontre seu produto numa sociedade na qual o supermercado de sensações nunca foi tão pródigo.
Folha - O que é um supermercado de sensações?
Freire Costa -
De um lado, a nossa identidade é basicamente referida ao modelo do prazer e do desprazer que temos, sexual ou outro -de drogas, de conforto etc. Somos uma geração mimada. Não há ninguém que passe hoje por dores que durem mais de 24 horas. A idéia de dor e sofrimento foi se tornando marginal.
Então, a cultura das sensações é aquela que diz o seguinte: você é tanto mais autêntico e mais realizado como pessoa quanto menos sofrer; você tem que ter uma boa saúde, uma boa forma...
Do ponto de vista moral ocorre a mesma coisa. Queremos que as sensações psíquicas que temos cumpram o mesmo modelo das sensações físicas agradáveis. Assim, vou sempre em busca de uma espécie de autarquia, de uma autonomia, vivida no sentido de alcançar sensações prazerosas. Você tira da economia da vida mental e sentimental as frustrações, desilusões e os lutos, que são realidades indiscutíveis -porque o outro é imprevisível, ele pode sempre me dizer não, não obstante todo cálculo racional que eu faça. Só me tornando autárquico eu não corro o risco do desprazer.
Mas podemos construir um mundo humano onde caiba uma resposta do outro e caiba esse sofrimento, sem que ele seja desesperador ou dilacerante.
O indivíduo hoje não é livre para escolher, ele é passivamente obrigado a se conformar a isso. Ele já nasce recebendo indicações de que não deve sofrer, mas sim buscar o prazer do sensível.
Pegue duas "dores" de hoje, as frustrações profissionais e as frustrações amorosas. O que um estóico diria a respeito? Pense e reflita sobre o que é a crença no sucesso e o que é a crença no amor, e se afaste disso. Hoje, seja para o insucesso amoroso, seja para o profissional, receita-se Prozac. Não há esforço nenhum dos indivíduos. Esse é o pior dos mundos. É o mundo de George Orwell. É o primeiro passo para a servidão voluntária.
Folha - O amor seria então um antídoto à servidão do sujeito às sensações fugazes?
Freire Costa -
Sim, no sentido de que, enquanto ele dá esse potencial de crítica em relação a essa imanência pobre, ele tem mais ou menos o papel que Adorno ou os frankfurtianos davam à cultura com relação à civilização.
Esta é uma omissão em meu livro que eu só percebi depois que terminei de escrevê-lo: o fato de o amor persistir como algo que instiga à transcendência dá a ele um valor. Mesmo sendo uma coisa historicamente formada, ele tem um valor de crítica em relação a essa civilização das sensações.
Agora, dizer que ele carrega em si essa espécie de potência crítica em relação à norma de vida da imanência do consumo não significa afirmar que o amor tem que permanecer como ele é. A meu ver, não dá mais para ser como antes. A gente pode até guardar dele algumas coisas, mas suas bases históricas estão todas se diluindo.
Folha - O sr. não tem receio de estar sendo nostálgico? O próprio amor-paixão romântico foi atravessado por histórias de opressões, desesperos, hipocrisia, histerias, de que ficamos em boa parte livres em nossa época.
Freire Costa -
Mas a somatória ideal do amor romântico se mantinha. Todos esses casos que você citou eram tidos como desviantes. A crise do ideal vem quando a média das pessoas já não acredita mais que pode realizá-lo. Antes, todo fracasso era um pouco imputado a desvios, à incapacidade pessoal de amar, mas a média das pessoas não se colocava esse problema. Agora, o centro explodiu.
Por exemplo, no que diz respeito ao compromisso das famílias e das gerações. Hoje não há mais famílias duráveis. As crianças têm um, dois ou três pais e mães. Os pais que continuam ligados aos filhos depois da adolescência são descritos por eles como neuróticos. Quando chegam à vida adulta, os filhos não se sentem comprometidos com os pais.
O grande investimento hoje das pessoas é quando as crianças são pequenas. Ser pai ou ser mãe se tornou não mais uma obrigação cultural e simbólica -de ter uma família e reproduzir a sociedade. Tornou-se um dado de satisfação pessoal, de prazer, de realização de um certo estágio psíquico.
Eu programa meus filhos, aborto quando quero, eu os tenho depois de comprar um apartamento -eles são um acréscimo de prazer que eu posso ter. E os filhos, no momento em que deixam de ser esse acréscimo de prazer, são desinvestidos, entregues de novo ao mundo técnico, vão se tornar arrivistas, drogados.
Eu não sou pessimista, penso que podemos criar outras formas de articulação. Mas não quero também voltar ao tempo da vovó. Isso não me parece desejável. Digo, aliás, com todas as letras, que o "ethos" que produziu o amor romântico é de uma família baseada na dissimetria, na opressão das crianças, na exclusão pelo preconceito sexual.
Folha - Mas qual seria a forma de amar e de se relacionar sem que isso signifique fazer uma paródia do amor romântico ou recuar para um regime repressivo?
Freire Costa -
Posso estar enganado, mas hoje o que se poderia fazer é voltar a amar de uma forma tranquila, recuperar o que Hannah Arendt chamava de amor ao mundo. É ser capaz de perceber que estamos de fato articulados com coisas muito maiores e deixar de representar o parceiro como uma subespécie entre as coisas que nos dão satisfações prazerosas.
O amor hoje é vivido como deficiência, frustração. Isso nos mantém sempre num estágio afetivo infantilizado, o de alguém que nunca cumpre o que quer para si, em vez de estar renovando os estilos de vida com os outros.



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