São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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TRECHO

"A meu ver, é extremamente difícil imaginar outros modos de auto-realização pessoal numa cultura em que o amor romântico se tornou sinônimo de praticamente tudo o que entendemos por felicidade individual: êxtase físico-emocional socialmente aceito e recomendado, segurança afetiva, parceria confiável, consideração pelo outro, disponibilidade para a ajuda mútua, solidariedade sem limites, partilha de ideais sentimentais fortemente aprovados e admirados, como a constituição da família e a educação de filhos, enfim, satisfação sexual acompanhada de solicitude, ternura, carinho e compreensão.
Justamente porque foi colocado nesse lugar exorbitantemente idealizado, pedimos ao amor o que, um dia, pedimos a Deus, e fizemos do parceiro da relação amorosa uma espécie de substituto da Dama da cultura cavaleiresca ou das Formas Eternas e Perfeitas da metafísica grega. Como ninguém consegue preencher a contento tais papéis e funções -a não ser precariamente e por um pequeno período-, as expectativas idealizadas são sempre frustradas e o resultado é a oscilação entre a total descrença na possibilidade de amar e um culto cego ao romantismo, que nada fica a dever às mais desmesuradas exigências do amor puro agostiniano. E, bem pesados os argumentos, Agostinho não era nem mais nem menos excessivo do que somos quando pedimos aos homens o que ele pedia em assuntos de amor. Como homem medieval, não tinha a pretensão de exigir que a reciprocidade no amor fosse sinônimo de mutualidade. Fiel ao espírito do tempo, aceitava a dissimetria entre quem ama e quem é amado, sem pensar que a igualdade de trocas afetivas pudesse alcançar um equilíbrio ideal, exceto no céu. Nós, modernos ou pós-modernos, queremos mais ou queremos outra coisa. Fomos convencidos de que o ideal de igualdade jurídico-política podia ser transposto, sem problemas, para o interior de relações afetivas duais. Exigimos que ele seja permanente, que se refaça a cada dia e, em busca desse equilíbrio, estamos prestes a negociar qualquer outro interesse pelo mundo.
No período de ascensão do otimismo civilizatório burguês, o romantismo teve como manter sua eficácia simbólica. A projeção narcísica dos ideais de perpetuidade nos filhos e netos; a submissão das mulheres ao papel de esposa e mãe; as regras do pudor e dos preconceitos sexuais; a liberdade sexual do homem; a indissolubilidade do casamento e, finalmente, as grandes paixões utópicas e revolucionárias nas esferas da política, da arte, da ciência, da tecnologia, nos séculos 18 e 19, contribuíram para que o ideal romântico de felicidade se conservasse simultaneamente intocado e circunscrito à área da satisfação individual. Hoje tudo isso se tornou residual. A cultura da banalização do novo e da descrença nas esperanças políticas retirou do romantismo sua função restrita de "uma felicidade entre outras" para elevá-lo à condição de "única felicidade que restou" num mundo sem compaixão. (...)
O ataque de Agostinho à "cupiditas" era menos inocente ou estapafúrdio do que se pode pensar. Assentava-se na experiência de quem buscou nas imagens disponíveis aquilo que jamais pôde encontrar. Quando define o desejo amoroso como aquilo que termina com a posse do objeto amado, a menos que estejamos ameaçados de perdê-lo, e, quando diz que a natureza do desejo humano é desejar aquilo que falta, Agostinho criou ou solidificou uma mitologia amorosa que persiste entre nós com tanta ou mais força do que seu mito sexual. Essa mitologia nada deve em sobrevida à mitologia sexual e tem uma grande vantagem sobre a segunda: a de se apresentar como o supremo Bem, no mundo secularizado e racionalizado das multidões solitárias.


Trecho extraído do livro "Sem Fraude nem Favor", de Jurandir Freire Costa.



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