São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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Cada um de nós nutre pelos seus semelhantes um infinito anseio de ser aceito e um medo também infinito das consequências que o contato com os outros pode acarretar
Paixão bem temperada

RENATO MEZAN
especial para a Folha

"Paixão" não é um livro fácil: pede atenção na leitura e disposição para acompanhar um argumento que se desenvolve em vários planos e segundo diversas direções. Mas isto não é um defeito, por mais que contrarie os ideais contemporâneos de imediatez e de transparência, que na verdade são disfarces bem tênues da preguiça de pensar.
O livro compõe-se de três partes. A "Introdução" resgata a idéia de que uma teoria da identidade humana pode e deve ser capaz de proporcionar um critério de avaliação das possibilidades psicológicas, éticas e políticas que se abrem para o ser humano. Os quatro capítulos centrais desenvolvem uma doutrina das paixões, baseada no postulado de que cada um de nós nutre pelos seus semelhantes um infinito anseio de ser aceito e um medo igualmente infinito das consequências que o inelutável contato com os outros pode acarretar. Por fim, o "Apêndice", além de apresentar de modo resumido o argumento do livro, aplica as considerações precedentes a algumas questões fundamentais da psiquiatria contemporânea.
Mesmo por esta brevíssima apresentação, pode-se perceber o ambicioso escopo de Roberto Mangabeira Unger. Inscrevendo-se explicitamente na tradição dos moralistas clássicos, ele quer reabrir questões que atravessam todo o pensamento ocidental e cuja relevância não precisa ser sublinhada: como descrever a experiência humana? Que tipo de sociedade é compatível com a realização dos possíveis que comporta esta experiência? E que obstáculos, ainda nesta experiência (e nas crenças que a orientam e de certo modo a fundamentam), podem se antepor à visada emancipatória?
Talvez a noção mais essencial ao pensamento do autor seja a de possibilidade. O ser humano está constantemente inventando a si mesmo e ao mundo que o cerca; embora isso aconteça sempre dentro de dados contextos que cada qual já encontra prontos, tais contextos -por serem produto da sociedade e da história- podem ser rompidos e substituídos por outros, novos. Mas esta idéia se encontra circunscrita por outra, igualmente essencial: a de que somente no contato face a face com o outro é que estes possíveis podem ganhar realidade e concretude.
Ora, se o anseio pelo outro é fundante do humano, também o é o medo de que o vínculo com ele produza servidão e despersonalização (pág. 94). Aqui transparece o caráter profundamente político da psicologia proposta pelo autor, caráter que não deixa de evocar a "Ética" de Espinosa.
Esta associação, que poderia parecer incongruente, é ao contrário reforçada quando se observam outros aspectos do pensamento ungeriano: a ênfase na liberdade como abertura para a multiplicidade simultânea dos possíveis; a colocação, no centro do universo das paixões, do medo e da esperança (que para Espinosa são paixões tristes, isto é, que diminuem nossa potência para agir, sentir e pensar -mas esta é uma outra discussão); a preocupação em descrever um sistema das paixões e seu impacto sobre a vida social e política...
Mas Espinosa não é a única referência discernível neste tratado: temos o pensamento cristão, manifesto na presença do amor, da fé e da esperança como contraponto ao ódio e às paixões por ele engendradas -a vaidade, o orgulho, o ciúme e a inveja- e também na fina análise da lascívia e do desespero apresentada no capítulo dois. Isto para não falar no romantismo, nos pensadores clássicos da política e na filosofia contemporânea, em especial a de corte pragmático predominante nas universidades americanas: com esta, "Paixão" é de ponta a ponta uma polêmica lúcida e... apaixonada.
Mas o que é uma paixão? "Cada paixão é um modo específico de lidar com a relação entre o medo que uma pessoa tem de outra e o anseio que sente por ela", diz Unger à pág. 110. Desta oposição surgem, como primeira metamorfose, o amor e o ódio -as primeiras paixões por assim dizer derivadas. Da intensidade e das oscilações do amor e do ódio surgem, por sua vez, todos os outros sentimentos. A esta gênese ideal ou conceitual Unger opõe uma outra, mais próxima do empírico, examinando no capítulo dois de que modo a criança vai, em sua evolução, tornando-se "capaz de paixão" (pág. 141).
Aqui nos deparamos com uma versão existencial das etapas da individuação estudadas pela psicanálise, outra referência constante com a qual dialoga o autor. Por "versão existencial" estou aqui entendendo o que permite, da situação clássica do choro da criança ao perceber a ausência da mãe (que Freud estuda em "Inibição, Sintoma e Angústia"), uma leitura como esta: "A criança que chora pela mãe ou pelo pai chora por algo além do cumprimento do desejo (...). Chora também contra o tempo. Chora porque teme a separação como lembrete de uma perda ainda mais terrível, à qual não consegue dar nome. Chora porque, deixada sozinha e consciente da sua dependência, ela tem um pressentimento de que tudo é vulnerável e equívoco, que tudo pode desaparecer, mudar ou revelar-se diferente do que parece ser" (pág. 147).
A criança faz assim a experiência de vulnerabilidade, a qual está na base tanto da confiança (disposição para aceitar a vulnerabilidade) quanto da desconfiança (medo simétrico àquela disposição). O próprio da condição humana é que a vulnerabilidade abre espaço tanto para o crescimento e enriquecimento do eu quanto para a sua frustração e para o seu desespero. É daqui que partem as análises extremamente sutis que Unger propõe da reciprocidade e da solidariedade -encaminhando-se para a vertente mais política do seu livro assim como da divisão do eu e da recusa dele em permitir que suas crenças e convicções sejam abaladas-, encaminhando-se para a vertente propriamente psicopatológica.
E como ambas estão inextrincavelmente vinculadas, não é de espantar que o livro termine com uma conferência pronunciada num congresso da Associação Psiquiátrica Americana. Aqui o autor traça para a psiquiatria todo um programa, que vai da concepção do que é um transtorno mental (programa "biológico") à crítica da incapacidade da psiquiatria para lidar com a indeterminação constitutiva do seu objeto (programa "psicológico") e à formulação por extenso do que "um psiquiatra deveria ser", passando, como disse, pela apresentação resumida do seu argumento sobre as paixões.
Em suma: "Paixão" é um livro que põe em prática seus próprios princípios, abrindo-se com confiança ao diálogo com o leitor e abrindo para este um leque impressionante de questões e de possibilidades de refletir. Seria apenas de desejar que a tradução fosse um pouco mais elegante, evitando anglicismos desnecessários no vocabulário e na sintaxe. Mas isto não impede que o pensamento de Roberto Mangabeira Unger nos chegue como é: rigoroso, respeitoso e generoso.


Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor, entre outros, de "Escrever a Clínica" (Casa do Psicólogo) e "Tempo de Muda" (a sair neste mês pela Companhia das Letras).

O LIVRO
Paixão - de Roberto Mangabeira Unger. Boitempo Editorial (tel. 011/3865-6947), tradução de Renato Schaeffere e Luis Carlos Borges, 288 págs., R$ 30,00.



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