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Cada um de nós nutre pelos seus semelhantes um infinito anseio de ser
aceito e um medo também infinito das consequências que o contato
com os outros pode acarretar
Paixão bem temperada
RENATO MEZAN
especial para a Folha
"Paixão" não é um livro fácil:
pede atenção na leitura e disposição para acompanhar um argumento que se desenvolve em vários planos e segundo diversas direções. Mas isto não é um defeito,
por mais que contrarie os ideais
contemporâneos de imediatez e de
transparência, que na verdade são
disfarces bem tênues da preguiça
de pensar.
O livro compõe-se de três partes.
A "Introdução" resgata a idéia de
que uma teoria da identidade humana pode e deve ser capaz de
proporcionar um critério de avaliação das possibilidades psicológicas, éticas e políticas que se
abrem para o ser humano. Os quatro capítulos centrais desenvolvem uma doutrina das paixões,
baseada no postulado de que cada
um de nós nutre pelos seus semelhantes um infinito anseio de ser
aceito e um medo igualmente infinito das consequências que o inelutável contato com os outros pode acarretar. Por fim, o "Apêndice", além de apresentar de modo
resumido o argumento do livro,
aplica as considerações precedentes a algumas questões fundamentais da psiquiatria contemporânea.
Mesmo por esta brevíssima
apresentação, pode-se perceber o
ambicioso escopo de Roberto
Mangabeira Unger. Inscrevendo-se explicitamente na tradição
dos moralistas clássicos, ele quer
reabrir questões que atravessam
todo o pensamento ocidental e cuja relevância não precisa ser sublinhada: como descrever a experiência humana? Que tipo de sociedade é compatível com a realização dos possíveis que comporta
esta experiência? E que obstáculos, ainda nesta experiência (e nas
crenças que a orientam e de certo
modo a fundamentam), podem se
antepor à visada emancipatória?
Talvez a noção mais essencial ao
pensamento do autor seja a de
possibilidade. O ser humano está
constantemente inventando a si
mesmo e ao mundo que o cerca;
embora isso aconteça sempre dentro de dados contextos que cada
qual já encontra prontos, tais contextos -por serem produto da sociedade e da história- podem ser
rompidos e substituídos por outros, novos. Mas esta idéia se encontra circunscrita por outra,
igualmente essencial: a de que somente no contato face a face com o
outro é que estes possíveis podem
ganhar realidade e concretude.
Ora, se o anseio pelo outro é fundante do humano, também o é o
medo de que o vínculo com ele
produza servidão e despersonalização (pág. 94). Aqui transparece
o caráter profundamente político
da psicologia proposta pelo autor,
caráter que não deixa de evocar a
"Ética" de Espinosa.
Esta associação, que poderia parecer incongruente, é ao contrário
reforçada quando se observam
outros aspectos do pensamento
ungeriano: a ênfase na liberdade
como abertura para a multiplicidade simultânea dos possíveis; a
colocação, no centro do universo
das paixões, do medo e da esperança (que para Espinosa são paixões tristes, isto é, que diminuem
nossa potência para agir, sentir e
pensar -mas esta é uma outra
discussão); a preocupação em descrever um sistema das paixões e
seu impacto sobre a vida social e
política...
Mas Espinosa não é a única referência discernível neste tratado:
temos o pensamento cristão, manifesto na presença do amor, da fé
e da esperança como contraponto
ao ódio e às paixões por ele engendradas -a vaidade, o orgulho, o
ciúme e a inveja- e também na
fina análise da lascívia e do desespero apresentada no capítulo dois.
Isto para não falar no romantismo, nos pensadores clássicos da
política e na filosofia contemporânea, em especial a de corte pragmático predominante nas universidades americanas: com esta,
"Paixão" é de ponta a ponta uma
polêmica lúcida e... apaixonada.
Mas o que é uma paixão? "Cada
paixão é um modo específico de
lidar com a relação entre o medo
que uma pessoa tem de outra e o
anseio que sente por ela", diz Unger à pág. 110. Desta oposição surgem, como primeira metamorfose, o amor e o ódio -as primeiras
paixões por assim dizer derivadas.
Da intensidade e das oscilações do
amor e do ódio surgem, por sua
vez, todos os outros sentimentos.
A esta gênese ideal ou conceitual
Unger opõe uma outra, mais próxima do empírico, examinando no
capítulo dois de que modo a criança vai, em sua evolução, tornando-se "capaz de paixão" (pág.
141).
Aqui nos deparamos com uma
versão existencial das etapas da individuação estudadas pela psicanálise, outra referência constante
com a qual dialoga o autor. Por
"versão existencial" estou aqui
entendendo o que permite, da situação clássica do choro da criança ao perceber a ausência da mãe
(que Freud estuda em "Inibição,
Sintoma e Angústia"), uma leitura como esta: "A criança que chora pela mãe ou pelo pai chora por
algo além do cumprimento do desejo (...). Chora também contra o
tempo. Chora porque teme a separação como lembrete de uma perda ainda mais terrível, à qual não
consegue dar nome. Chora porque, deixada sozinha e consciente
da sua dependência, ela tem um
pressentimento de que tudo é vulnerável e equívoco, que tudo pode
desaparecer, mudar ou revelar-se
diferente do que parece ser" (pág.
147).
A criança faz assim a experiência
de vulnerabilidade, a qual está na
base tanto da confiança (disposição para aceitar a vulnerabilidade)
quanto da desconfiança (medo simétrico àquela disposição). O
próprio da condição humana é
que a vulnerabilidade abre espaço
tanto para o crescimento e enriquecimento do eu quanto para a
sua frustração e para o seu desespero. É daqui que partem as análises extremamente sutis que Unger
propõe da reciprocidade e da solidariedade -encaminhando-se
para a vertente mais política do
seu livro assim como da divisão do
eu e da recusa dele em permitir
que suas crenças e convicções sejam abaladas-, encaminhando-se para a vertente propriamente psicopatológica.
E como ambas estão inextrincavelmente vinculadas, não é de espantar que o livro termine com
uma conferência pronunciada
num congresso da Associação Psiquiátrica Americana. Aqui o autor
traça para a psiquiatria todo um
programa, que vai da concepção
do que é um transtorno mental
(programa "biológico") à crítica
da incapacidade da psiquiatria para lidar com a indeterminação
constitutiva do seu objeto (programa "psicológico") e à formulação por extenso do que "um psiquiatra deveria ser", passando,
como disse, pela apresentação resumida do seu argumento sobre as
paixões.
Em suma: "Paixão" é um livro
que põe em prática seus próprios
princípios, abrindo-se com confiança ao diálogo com o leitor e
abrindo para este um leque impressionante de questões e de possibilidades de refletir. Seria apenas
de desejar que a tradução fosse um
pouco mais elegante, evitando anglicismos desnecessários no vocabulário e na sintaxe. Mas isto não
impede que o pensamento de Roberto Mangabeira Unger nos chegue como é: rigoroso, respeitoso e
generoso.
Renato Mezan é psicanalista, professor titular
da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e
autor, entre outros, de "Escrever a Clínica" (Casa
do Psicólogo) e "Tempo de Muda" (a sair neste
mês pela Companhia das Letras).
O LIVRO
Paixão - de Roberto Mangabeira Unger.
Boitempo Editorial (tel. 011/3865-6947),
tradução de Renato Schaeffere e Luis Carlos Borges, 288 págs., R$ 30,00.
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