São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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DRUMMOND A MÁRIO: "ESTOU FARTO DE LITERATURA"

Sem data [1929]
Gabinete do inspetor geral da instrução


Mário

Sua carta meio triste de 19 de maio me causou um certo mal-estar, pelo tom diferente que achei nela e de que talvez você não se lembre mais. Depois de me considerar uma folha ao vento, resignada com o destino de folha, embora reagindo intelectualmente, você compara os nossos destinos, diz que jogou e perdeu, ao passo que eu não perdi porque não joguei, e me inveja. Finalmente, confessa que a princípio quis mudar o meu jeito, mas com o tempo desistiu e apesar de tudo continuamos amigos. Por que apesar de tudo? E que ironia você terá posto na "melancolia invejosa" com que olha para a minha não opção? Como se eu também não tivesse jogado... Como se até não fosse mais triste fazer o jogo cético que eu fiz, em que nunca tive esperanças e certezas para me abastecer, e sabia previamente que perderia. Eu também quero ter a honra de declarar que perdi o jogo. Assim, ao passo que você na plenitude de sua saúde moral, no dinamismo intenso da sua vida de trabalho, você não pode dizer o mesmo, entregar as cartas e retirar-se... Continuou tendo uma serena desconfiança em você e no que você fará ainda, e continuo a achar você o homem essencial do nosso momento intelectual. À proporção que cresce o meu nojo por esses filhos-da-puta que descobriram um rótulo novo para mascarar uma coisa tão antiga como o mundo, que é a falta de caráter, dando-lhe apenas uma nova aplicação: a literatura - cresce também essa confiança lúcida e alta em você, no ser moral e mental que você é. Estou farto de modernismo, de nacionalismo, de antropofagismo, de crioulismo, de burrismo, de tudo que enodoa a nossa época e dá aos espectadores insuspeitos uma triste impressão ou de canalhice ou de burrice, quando não das duas coisas ao mesmo tempo. Estou farto de literatura... Preciso repousar em um coração amigo, não para me lastimar nem para protestar, apenas para fazer abstração de tudo isso, esquecer tudo, ser um homem livre e incontaminado.
Fraternalmente, Carlos.


Carta extraída de "Carlos & Mário"


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