São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+livros

UM DIÁLOGO EXTRAORDINÁRIO


CORRESPONDÊNCIA COMPLETA ENTRE MÁRIO DE ANDRADE E DRUMMOND, QUE SAIRÁ EM JANEIRO PELA ED. BEM-TE-VI, JÁ SE DESTACA COMO UM DOS MAIS IMPORTANTES DOCUMENTOS PARA REAVALIAR A CULTURA E A HISTÓRIA DO BRASIL


Carlos & Mário - Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade
630 págs., preço não-definido Organização e notas de Silviano Santiago. Ed. Bem-Te-Vi (av. Presidente Wilson, 231, 10º andar, Centro, CEP 20030-021, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/ 3804-8678).

Alcides Villaça
especial para a Folha

Um dos frutos (e não dos menores) do modernismo de 22 foi a abertura de diálogos genuinamente críticos entre artistas e intelectuais, para muito além das picuinhas, poses e beletrismos de ocasião. Amizades e discussões fortaleceram-se reciprocamente na intensidade das palavras e dos gestos -fenômeno que, numa cultura tradicionalmente tão permeável às acomodações, já é, em si, uma pequena revolução. A correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade é um dos mais extraordinários desses diálogos.
Desde 1982 conheciam-se as cartas de Mário a Drummond recolhidas, anotadas e publicadas por iniciativa deste em "A Lição do Amigo" (ed. José Olympio), título que traduz uma justíssima avaliação. Saem agora as de Drummond a Mário, entremeando-se às primeiras e constituindo, assim, o diálogo completo -pois diálogo já havia na inflexão e no espírito das cartas do escritor paulista, que nos faziam deduzir as perguntas e respostas de seu interlocutor mineiro.
Antes de ler o volumoso conjunto, que abarca o período de 1924 a 1945, imaginava eu que esta outra metade completaria a primeira, numa simples adição, mas o produto é evidentemente mais complexo: as cartas já conhecidas de Mário ganham nova densidade no confronto com as de Drummond, e as deste dão corpo e alma ao que especulávamos nas entrelinhas. Perfaz-se, enfim, o diálogo por todas as razões histórico entre os dois grandes escritores -travessia pela qual cada leitor fica a partir de agora responsável, ampliando as conversas na ressonância da interpretação.
Numa brutal tentativa de síntese, diria que há três temas fundamentais nessa longa correspondência: o do eu, o do Brasil e o da literatura -a corporeidade de cada um firmando-se na articulação com os demais. A frieza do esquema talvez se relativize se aceitarmos que o primeiro tema compõe-se das modulações emocionais e das questões objetivas que implicam a definição em processo do sujeito que fala e ouve, na prática profunda da amizade pelo outro. O segundo tema -o Brasil- configura-se como o problemático chão histórico e comum de todas as conversas, incluindo-se aí a disposição para negá-lo e ultrapassá-lo por força de um racionalismo cético, tomado como universal (Drummond), ou para reconhecê-lo em bem determinadas manifestações de cultura que podem despertar -aí, sim- proposituras de universalidade (Mário). A literatura, com ênfase na poesia, é o expressivo campo de prova de todas as mediações, particularizando-se tanto na discussão de detalhes formais quanto no direcionamento mais amplo da compreensão da arte moderna.
Sim, Mário é o mestre, buscado nessa condição pelo jovem Drummond. Não tardou que a simpatia inicial se revelasse empatia profunda, a tal ponto que a relação entre ambos galgou o foro privilegiado da verdadeira pedagogia, na qual todos os problemas são comuns e o confronto das análises é também prova da amizade que estima as diferenças. O jovem aprende com o mais velho, reservando-se porém a ordem dos conflitos que lhe pertencem como inalienáveis; o mais velho reage com a ambição de demovê-los do outro, mas com isso também expõe a verdade dos seus. Os contrastes de personalidade entre Drummond e Mário são do tipo harmônico, isto é, enriquecem-se no apuro da argumentação sincera e na franca avaliação das razões do outro. Se o individualismo culposo de Drummond postula a vantagem da lucidez irônica, o personalismo responsável e irredutível de Mário acusa todos os "sequestros" que impedem o amigo de algum empenho construtivo. A arte não vale a vida, a amizade é maior que a literatura.
O Brasil -centro da paixão problemática, mas inamovível, nos projetos e nas realizações de Mário- era para o jovem Drummond um brejo insalubre, que convinha sobrevoar espiritualmente, rumo à Europa. Não tarda, porém, que o criador de Macunaíma transforme as razões de expatriação do amigo em pontos de interrogação, conquistando-o não para o nacionalismo, mas para a investigação dessas problemáticas raízes nossas que, volta e meia, paradoxalmente, se alçam na busca de um desterro consolador. Na trajetória da poesia de Drummond, essa busca traça uma polaridade que, aqui e ali, se apresenta como desejo de chão, de origem, de enraizamento, seja para enfrentar um compromisso histórico, seja para dar fé da condição de uma aporia. Há presença de Mário naquela polaridade.
Quanto à literatura (incluindo-se aí o cenário cultural, os debates, as circunstâncias de afirmação e de circulação das idéias no decênio modernista e depois dele), cada um dos interlocutores tem inúmeras lições a dar. As de Mário derivam de sua poética mais sistêmica, com a vocação dos princípios e conceitos que sabem se transfigurar em rapsódias, sátiras ou "meditações"; as de Drummond obedecem ao dinamismo dramático de sua lírica, trazendo o leitor para os poemas em que a inteligência, a timidez e a sensibilidade se combatem ferozmente, como tão bem compreendeu seu amigo paulista.
O resto é o principal: nossa apreensão das tonalidades afetivas, das questões feridas, dos fatos políticos repercutindo entre dois brasileiros, do limite das obsessões intelectuais, da significação que se insinua entre o dito e o silenciado. As cartas estão abertas, em sua minuciosa humanidade. Na edição primorosa, fartamente ilustrada e documentada, destaca-se o trabalho amoroso de Silviano Santiago, que as introduz discutindo-as e que as anota com profusão -empenho com que nos convida à interpretação da matéria viva dessas falas nascidas da inteligência e da amizade.


Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.


Texto Anterior: por Beatriz Resende
Próximo Texto: Drumond a Mário: "estou farto de literatura"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.