São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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Um historiador olímpico


Escrito no estilo lúcido e espirituoso do autor, "Tempos Interessantes" é um livro estimulante não apenas pelo que diz acerca do próprio Hobsbawm, mas também por sua descrição de lugares e momentos


Peter Burke

O historiador britânico Eric Hobsbawm é bastante conhecido no Brasil. Como ele mesmo afirma orgulhosamente, mais cópias da primeira edição de sua história do século 20, "Era dos Extremos" (Companhia das Letras), foram vendidas no Brasil do que em qualquer outro país. Ele foi consultado quando a Universidade Estadual de Campinas foi fundada e visitou o país muitas vezes desde então, com destaque para a passagem pelo Brasil em 1995, quando foi convidado para a cerimônia de posse de Fernando Henrique Cardoso e apareceu no programa de Jô Soares (se eu me lembro bem, a conversa foi em inglês, com legendas, e Soares estava sério, deixando a Hobsbawm o encargo de fazer as piadas). Algum tempo atrás, Hobsbawm publicou sua autobiografia ["Tempos Interessantes], Cia. das Letras". Escrito no estilo caracteristicamente lúcido, vívido e espirituoso do autor, "Tempos Interessantes" é um livro extremamente estimulante, não apenas pelo que diz acerca do próprio Hobsbawm, mas também por sua descrição de lugares e momentos e até mesmo pelo modo como aborda a autobiografia. Hobsbawm é um homem muito reservado e tem vivido uma existência bastante discreta de pesquisa, escrita e ensino no Birkbeck College, da Universidade de Londres. Como historiador, entre suas características principais, além de sua clareza de exposição e sua análise penetrante, estão seu amplo campo e sua visão olímpica, sua quase inumana (ou supra-humana) imparcialidade. Tenho certeza de que não fui o único leitor a se indagar, ao virar a primeira página desta autobiografia, se Hobsbawm nos contaria qualquer coisa a respeito de si mesmo. Ele o faz, embora não se alongue. Ele voltou seu extraordinário poder de análise sobre si mesmo para tentar, como ele diz, "escavar os depósitos geológicos de três quartos de século e recuperar ou descobrir e reconstruir um estranho enterrado". Ele não se lembra de Alexandria, onde nasceu em 1917 e viveu seus dois primeiros anos de vida, mas tem memórias vívidas tanto de Viena quanto de Berlim, onde viveu até que Hitler subisse ao poder. Ele nos fala de sua família, judaica pelos dois lados, de seu pai inglês e de sua mãe vienense, ambos mortos cedo. Ele nos fala do adolescente que temia não ser atraente para as mulheres e que se filiou ao Partido Comunista quando era um colegial (ele foi membro de uma organização jovem que havia sido fundada por Olga Benario antes que ela tivesse conhecido Luís Carlos Prestes). Ele descreve suas atividades políticas, participando de demonstrações e distribuindo panfletos, com uma combinação de humor e uma imparcialidade quase clínica: "Além do sexo", ele escreve, "a atividade que combina experiência corpórea e emoção intensa no mais alto grau é a demonstração política numa época de grande exaltação pública".

A paixão pelo jazz
Hobsbawm prossegue para descrever seu primeiro encontro, como imigrante adolescente, com a Inglaterra, país no qual ele tem vivido por aproximadamente 70 anos, e destaca o número de anos após sua chegada em que continuou a escrever seu diário em alemão. Ele tem pouco a dizer a respeito de seu amor pela arte e pela literatura e bem mais sobre sua longa paixão pelo jazz. É fascinante aprender que seu marxismo "se desenvolveu como uma tentativa de compreender as artes". Hobsbawm não nos conta muito, entretanto, a respeito de sua formação como historiador, além do fato de que ele estudou história no King's College de Cambridge, de que trabalhou com o distinto historiador -antimarxista- M.M. Postan e de que pensou em escrever uma dissertação sobre os territórios franceses no norte da África antes de mudar para um estudo sobre a esquerda britânica. Ele fala muito pouco sobre o famoso grupo dos historiadores do Partido Comunista na década de 50, excepcional não apenas pelas carreiras posteriores de seus membros (destacando-se Christopher Hill e Edward Thompson), mas também pelo fato de que tenha existido em um país em que, ao contrário da França ou da Itália, o Partido Comunista era minúsculo e virtualmente não-representado no Parlamento. À medida que o seu sujeito se torna adulto, o autobiógrafo se apaga cada vez mais -mais inglês que os ingleses, poderia ser dito. Os últimos capítulos do livro se preocupam não tanto com sua vida mais recente, e sim com os países estrangeiros que ele conhece melhor e que significaram mais para ele: a França, a Itália, as Américas do Norte e do Sul. Hobsbawm nos permite breves olhares sobre sua vida, como um homem de meia-idade viajando tão frugalmente quanto um estudante e falando com pessoas comuns sempre que possível. Ao mesmo tempo, ele se concentra na história desses países na última metade de século. Ele descreve experiências pessoais e conta anedotas a respeito de indivíduos (o historiador francês Fernand Braudel, o editor italiano Giulio Einaudi, o economista norte-americano Paul Baran etc.), mas ele também associa essas impressões e anedotas às tendências gerais sociais e culturais, do mesmo modo que fez suas histórias dos séculos 19 e 20, tão iluminadoras.

Hobsbawm e Thompson
Como deveria alguém descrever Hobsbawm como historiador? Talvez pelo método de comparação que ele utiliza tão eficientemente, neste livro como em outros. Uma figura óbvia com a qual comparar Hobsbawm é Edward Thompson, historiador da mesma geração e colega marxista. Um falante carismático, Thompson combinava modos de alta classe com uma identificação apaixonada pela classe trabalhadora, do mesmo modo como combinava seu marxismo com uma desconfiança da teoria, em especial da teoria francesa, e gostava de descrever a si mesmo como empirista. Ele fazia o seu melhor imaginando e descrevendo experiências e lutas da classe trabalhadora em um cenário local, especialmente Yorkshire e Lancashire. Hobsbawm era e é bastante diferente. Seus horizontes são muito mais amplos, o mundo em vez da Inglaterra. Seu tom é mais discreto. Graças quem sabe à sua juventude nômade, ele enxerga o mundo, ele mesmo incluído, com uma imparcialidade verdadeiramente impressionante. A vontade de evitar ilusões é muito forte nele, e ele não teme a autocrítica. Gosta do papel de espectador, um observador com um olho afiado para os detalhes. Não admira que ele tenha achado a antropologia interessante, desde que deu as palestras que se tornariam o livro "Primitive Rebels" (Manchester University Press, Reino Unido) no departamento de antropologia da Universidade de Manchester, em 1956.

Simpatias humanas
Entretanto seria um erro descrever Eric Hobsbawm como historiador frio, em contraste com Edward Thompson, que era morno ou até quente. Neste livro, apesar de seu tom discreto, as simpatias humanas de Hobsbawm estão aparentes. "O sonho da Revolução de Outubro ainda está lá em algum lugar dentro de mim", ele escreve, "como textos deletados ainda estão esperando para ser recuperados por especialistas, em algum lugar no disco rígido de computadores". E ainda assim ele consegue escrever na mesma página que o projeto revolucionário "falhou de modo demonstrável", que "estava fadado ao fracasso". É talvez a sua incrível combinação de comprometimento político com imparcialidade antropológica que fez Eric Hobsbawm um comentador tão penetrante tanto sobre o passado quanto sobre o presente.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do "Mais!".
Tradução de Victor Aiello Tsu.


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