São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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+ música

Radicada nos EUA, a regente e compositora cubana Tania León desconstrói os ritmos populares de seu país, revividos por grupos como Buena Vista Social Club

FOLCLORE DISSONANTE

Augusto de Campos
especial para a Folha

Quando escrevi, em artigos anteriores, sobre algumas raras compositoras da modernidade musical reveladas no fim do século passado, das pioneiras americanas Ruth Crawford e Johanna Magdalena Beyer à octogenária russa Galina Ustvólskaia, não tinha ainda notícia da cubana Tania León. Quem vir as suas fotografias publicitárias vai certamente achar que se trata de uma atriz de cinema ou de uma cantora. Seu nome, aliás, empata letricamente com o da celebrada Célia Cruz. Não, Tania León, beldade negra, não é nada disso, mas -pasmem!- uma compositora e regente de música contemporânea. Nasceu em 1943 em Havana e, pianista clássica formada, viajou em 1967 com uma bolsa de estudos "lotérica" para os EUA, onde se fixou, sem ser uma fugitiva do regime de Fidel ou uma opositora dele. Segundo diz, queria simplesmente aperfeiçoar-se em sua arte e, como o contexto certo eram os EUA, para lá se foi, sem ser incomodada. "Quando deixei Cuba -afirma em uma entrevista a Frank J. Otteri (1999)- eu era apenas uma estudante de conservatório e não constituía uma ameaça para ninguém. Eu era invisível." Só voltou em 1979 para rever a família, que continua a visitar periodicamente, via Cancun. Não sabe se sua música terá sido alguma vez executada em Cuba, onde nunca tocou ou regeu suas composições, embora já o tenha feito inúmeras vezes na Europa e nos EUA. Cubana ou norte-americana? "Considero-me uma compositora americana -diz ela-, as Américas abrangem a América do Norte, a América Central, a América do Sul e o Caribe." Política? "Não sou um animal político", afirma numa outra entrevista (a Ronald de Feo), "minha posição política é respeitar a humanidade, não separar as pessoas pela raça, tradição ou sexo". O interessante é que, apesar de obviamente afro-cubana, ela recusa esse binômio conceitual para definir-se como pessoa e como ente musical. Afirma que tem sangue cubano, espanhol, francês e chinês (seu avô paterno era sino-cubano) e uma vocação naturalmente multicultural, originária de sua imensa curiosidade pelo desconhecido. E estende essa consideração à própria música tida como cubana, onde encontra ritmos de mais de uma região africana, não apenas de ascendência nigeriana, mas igualmente forte influência hispano-arábica, além de traços ameríndios e chineses.

Boulez e Stockhausen
"A música cubana é totalmente sincrética, de muitos estilos e culturas", afirma. Aos 4 anos já estava no conservatório aprendendo música erudita, pela qual revelara incomum interesse ouvindo rádio. Supõe que se interessara por ela por ser diferente de tudo o que comumente ouvia. "Meu coração curioso", "minha mente curiosa", são expressões que ela usa para definir-se.
Mas tocava Lecuona e os standards populares da época e estava a par de todo o repertório musical recentemente revivido pelos velhos mestres do Buena Vista. "Posso cantar e tocar tudo o que o Buena Vista Social Club está fazendo porque é o que eu cresci ouvindo e cantando e dançando. Era a música da minha vizinhança. Eu poderia usá-lo em minha música. Mas transformado. As pessoas daqui, porque sabem de onde eu sou, poderiam dizer que é música "cubana", mas ela poderia não ser "cubana" em Cuba."
Sua carreira profissional começou quando foi convidada, em 1969, pelo coreógrafo Arthur Mitchell a integrar o Dance Theatre of Harlem, do qual foi arranjadora e diretora musical, antes de experimentar a composição. Sua curiosidade e despreconceito a levaram a interessar-se pelas obras mais complexas da música contemporânea, como as de Boulez, Stockhausen e Elliot Carter, ou pelo estudo da "tabla" (intriga-a o comprimento da frase na música indiana).
Mas, chegando nos EUA, teve o primeiro grande choque musical ao ouvir o pianista Art Tatum, que, diga-se de passagem, também foi muito admirado pelo desconstrutor das pianolas, o grande músico mexicamericano Conlon Nancarrow (este, ao contrário, deixou os States pelo México).
Uma característica das composições de Tania León, a julgar pelo seu único disco solo, "Indígena" (CRI #CD 662), editado em 1994, é o ritmo, poderoso e inconvencional. As "raízes" cubanas aparecem, aqui e ali, mas ou atravessam a obra em citações arrevesadas ou em elaborações percussivas que soam como construções inteiramente novas. Em suas entrevistas, não a vi mencionar Amadeo Roldán, o compositor cubano que muitos consideram precursor de Varèse com as suas descarnadas "Rítmicas" todo-percussivas (1930), não obstante a marca dos ritmos convencionais. Parece-me um elo pertinente, mesmo que ele possa não ter influenciado a compositora, pouco divulgado como é, dentro e fora de Cuba. O disco solo a que me refiro traz cinco composições, dominadas por ritmos agressivos, aqui e ali denotando algum vínculo com o folclore cubano, mas nunca apresentadas folcloricamente, transmudadas em ferozes polirritmias de acentos deslocados e imprevistos, muito distantes da regularidade pulso-dançante da música popular: "Indígena" (1991), para orquestra de câmara, "Parajota Delaté" (1988), para conjunto de câmara, "Rituál", para piano solo (1987), "A La Par" (1986), para piano e percussão; sem destoar propriamente das outras, "Batéy" (1989), para coro de seis vozes e percussão, é um caso à parte, por se tratar de música escrita em conjunto com Michel Camilo. "Indígena" e "Batéy" são regidas pela própria Tania León. Na composição "Indígena", a mais nova dentre as registradas, em meio a crescentes misturas de ritmo e de pulso em contexto harmônico dissonante, emergem frases carnavalescas puxadas por um trumpete desentoado -ecos da "comparsa", música dançante do carnaval cubano, da qual uma só, "La Jardinera", é breve mas literalmente citada, segundo esclarece o crítico K. Robert Schwarz, para logo submergirem, desconstruídas, nos arrancos rítmicos desencontrados que dominam a obra. "Rituál" traz à mente algo da russa Ustvólskaia pelos "ostinatos" e pelo uso da tessitura do piano, que obriga o instrumento a alternar seus ritmos do mais grave ao mais agudo em largos intervalos.

Ioruba
Mais colorida, "A La Par" se deixa invadir por uma variedade de ruídos percussivos, que se contrapõem ao piano em truncadas linhas paralelas e acabam por envolvê-lo nas angulosidades de suas explosões, interrompidas pela citação dos compassos congelados de uma rumba, até o engolfarem em apaziguantes ressonâncias vibrafônicas. Na mais lírica das composições, "Parajota Delaté" (para J. da T.), homenagem natalícia de Tania León à compositora Joan Tower, as pulsões rítmicas são atenuadas em favor de maior fluidez instrumental, para as intervenções ondulantes de sopros (flauta e clarinete), violino e violoncelo, que apenas sugerem, num contexto harmônico atonalizante, um arroubo melódico que não chega a acontecer. Tudo se passa num ambiente ultramodernista, lembrando, em linguagem atualizada, a fase mais inventiva de Villa-Lobos -a dos "Choros" e do esplêndido e sonegadíssimo "Noneto". A última obra do disco, "Batéy" (1989) -espécie de cantata, em parceria com Michel Camilo, talvez a mais comunicativa das composições- tenta um difícil equilíbrio entre a linguagem marcadamente discursiva e tonal de Camilo e a mais aventuresca e experimental de Tania León. O pianista e compositor dominicano Michel Camilo (1954), figura exitosa do que chamam de "latin jazz scene", parece mais interessante nesse âmbito do que no da música clássica contemporânea, ao que também se espraia, mas onde seu conservadorismo concertístico mostra-se muito defasado. O risco foi assumido voluntariamente e -digamos- com generosidade por Tania León. Até que conseguem um compromisso razoável.
Mas o estilo da compositora logo se evidencia nas partes mais ousadas -as intervenções de um e de outro estão autoralmente demarcadas- que são as que ela assina: algumas passagens iorubas de "Ritos", num contraponto de palavras entrecortadas à maneira de "hochetus" medieval (do francês, "hoquet" = soluço), sílaba e silêncios das várias vozes se interceptando num enredo complicado; as canções "a capela" de "Rezos", com um impossível solo vocal grave-agudíssimo para contratenor, e "Tarura" (em "scat singing"). O texto -uma mistura colageada e fragmentária de espanhol, cubano e ioruba- quer homenagear [o líder negro Martin" Luther King na única palavra inglesa que contém ("Dream") e traz esta reminiscência afetiva da infância cubana da compositora: "Llevo dentro del corazón/ la buena drume/ negrita dru...". A latino-americanidade implícita e ritualística junta essas peças de linguagem musical um tanto díspar, onde se sobressai a maior criatividade de Tania León.
Indagada por Frank J. Oteri sobre sua forma de compor, se sua música é dodecafônica, se usa técnicas seriais, ela desconversa, dizendo que não tem idéia de como suas composições podem ser codificadas ou classificadas, que assimila uma grande quantidade de informações e se espanta com o que os musicólogos encontram em suas criações, que, a seu ver, estão em constante movimento e evolução.
Resta conferir as numerosas outras obras da compositora pancubana, que somam, numa recente listagem, mais de 40, incluindo a ópera "A Scourge of Hyacinths" (Um Flagelo de Jacintos), baseada numa peça radiofônica de Wole Soyinka, encomendada em 1994 pela Bienal de Munique e que, com montagem e cenários de Robert Wilson, teve diversas apresentações na Europa e no México, a partir da estréia em Genebra em 1999.
Pelo que se ouve em seu disco, não há a menor dúvida quanto aos méritos de Tania León. Enquanto não conhecemos, a não ser pela rica amostragem de "Indígena", o conjunto de sua produção, só cabe esperar que o sucesso não tenha transformado a bravura das surpreendentes composições que se enfeixam nesse álbum e nos revelam mais uma compositora à esquerda da esquerda.


Onde encomendar
CDs de Tania León podem ser encomendados no site www.barnesandnoble.com


Augusto de Campos é poeta, crítico tradutor e ensaísta. É autor de "Música de Invenção".



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