São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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Ponto de fuga

Renina em negro

Há, em São Paulo, uma exposição que mostra 23 gravuras, não muito grandes, de Renina Katz. São, todas, águas-fortes. Estão no Ana Cláudia Roso Escritório de Arte, rua José Maria Lisboa, 1.008, um lugar agradável, com boa luz, e todo branco. Elas compõem paisagens sonhadas, onde os traços do buril se amiúdam para obter as gradações de negro mais aveludadas que se possa imaginar. A incisão da ponta, a corrosão do ácido, nessa técnica que depende de tanto controle, criam um tecido de tramas mais estreitas ou mais largas, por onde o branco do papel se infiltra. Não se trata de claro-escuro, no sentido mais comum, em que o escuro toma a natureza da sombra, e, o claro, os poderes da luz, num confronto de avanços e resistências. A gravadora emprega diversas gradações de intensidade. Elas ocupam regiões bem recortadas e se isolam em unidades que podem ser lidas como uma torre ou um horizonte.
Não há, porém, sombras projetadas sobre nenhum suporte, volume ou superfície. Um círculo branco, mas um círculo negro também, graças à estratégia da composição, sugerem o Sol ou a Lua. Esses astros não irradiam luz: são signos; integram a imagem preservando sua própria autonomia. O branco pleno que revela, intacta, a superfície do papel, irrompe o mais das vezes em retalhos gráficos bem delineados; alguns lembram a segurança elegante de caligrafias orientais. Uma das gravuras, intitulada "Linha de Sombra", é como o ideograma de civilizações ignotas.

Dimensão - A exposição de Renina Katz foi pensada de modo estrito: número discreto de gravuras, proporções comedidas, emprego de uma única técnica. A artista escolheu parâmetros demarcados, mas que, para ela, não formam limites. São formas de rigor que se harmonizam com o horror ao aproximativo, ao faz-de-conta, à facilidade. Em tempos nos quais a arte desaparece tantas vezes sob golpes midiáticos, essa pequena mostra é uma lição de grandeza.

Crisol - Paulo Pasta apresenta "Pinturas Recentes", na Galeria Nara Roesler (av. Europa, 655, SP). Há telas de tamanhos diversos, com um número maior de grandes formatos. São nestes que os procedimentos do artista atingem sua plenitude. Ele sabe fazer cantar as cores, isto é, avivá-las por reações de proximidade. Escolhe tons muito próximos, cujas tensões infinitésimas criam uma espécie de vertigem.
O jogo se faz com duas faixas verticais interrompendo a continuidade de uma superfície. Evocam, em outra escala e como fantasmas remotos, as garrafas de Morandi, cuja arte marcou Paulo Pasta. No entanto Morandi, desconfiado diante das forças luminosas que ativam o colorido, empregava surdinas acinzentadas. Ao contrário, as telas de Paulo Pasta buscam uma vibração de matizes, em que diferenças mínimas se confrontam e se exacerbam. Trata-se de campos monocrômicos que retomam caminhos abertos por Rothko, desde os anos de 1940, e estabelecem um diálogo, mesmo se involuntário, com o último Ianelli. Porém não conduzem à meditação grave de Rothko ou de Ianelli. Provocam, antes, a euforia de um júbilo aéreo.

Pamela - Depois de interrompido por algumas semanas, o ciclo do Festival Marlboro de Cinema, que percorre algumas cidades brasileiras, foi reativado. Continua, porém, sem a divulgação que mereceria. O programa é excelente. Nele encontra-se "La Nuit Américaine", de François Truffaut, rodado em 1972. Com "Singin" the Rain", de Gene Kelly e Stanley Donen, de 1952, com "Oito e Meio", de Fellini, de 1963, forma a trilogia das obras-primas nas quais o cinema fala de si mesmo. Truffaut escolheu interpretar ele próprio o papel de um diretor fictício em ação. Do filme "verdadeiro" ao "imaginário", cujo título seria "Je vous Présente Paméla", o espectador se enfronha numa rede de afetos humanos, efêmeros e frágeis diante da paixão maior pelo cinema, verdadeiro vetor de todos aqueles destinos. Truffaut faz como um mágico que desvendasse os truques de sua arte para melhor maravilhar seu público.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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