São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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+ sociedade

ESTÉTICA DA NECROFILIA

Oscar Angel Cesarotto
especial para a Folha

Londres, novembro de 2002: Gunther von Hagens, médico alemão, realizou uma necropsia pública. O fato ganhou destaque na imprensa mundial, dada a proibição de autopsias em espaços leigos. O cadáver em destaque era tão teutônico quanto o doutor; alguém que, antes de morrer, (se) doara para a exposição. Numa galeria de arte, seus restos foram "extimados" sob o olhar dos presentes, que pagaram 12 libras para aceder ao local. No salão, uma maca metálica era o centro das atenções; atrás dela, uma reprodução do quadro "A Aula de Anatomia", de Rembrandt (1606-1669). O oficiante usava um avental cirúrgico e luvas, como corresponde, e um chapéu de feltro preto, a marca de sua personalidade. Von Hagens operou durante três horas, descontruindo o defunto, separando seus órgãos, para depois embutir tudo de novo. A seguir, foi entrevistado na TV, onde defendeu sua atitude, alegando ser educativa para a população. Por ter contrariado o decoro médico e a lei britânica, a polêmica foi deflagrada. Impressionante, o episódio todo merece comentário. Fosse na aula magna da Faculdade de Medicina, seu sentido seria outro, segundo a tradição. Contudo, no palco profano de uma galeria, o que estava sendo apresentado? Uma experiência plástica ou uma lição de anatomia? A destreza com o bisturi até poderia ser considerada um gesto sublime, "sign of the times", dependendo do ponto de vista. Porém o ingresso cobrado, dividindo o espaço público do privado, confirmava se tratar de um espetáculo. O que queriam presenciar os 500 pagantes? O que teria Von Hagens para lhes oferecer? Uma didática aplicada, um show assustador, arte hipermoderna ou um macabro toureiro em ação, esfaqueando a carne inerte? Em outras palavras, médico, monstro ou... artista?

Anseio mimético
Qualquer semelhança não seria mera coincidência. Séculos antes, Leonardo da Vinci desvendara os mistérios do organismo, aplicando seus achados na pintura. E o dr. Tulp, retratado por Rembrandt, ensinaria seu saber à posteridade. Entretanto um alemão, no mundo das artes, nunca poderia usar um chapéu de feltro impunemente, após Joseph Beuys (1921-86). Citação, apropriação ou homenagem, essa identificação não apenas invoca a figura de referência, mas também denuncia um anseio mimético, para inscrever seu procedimento como ato criativo e, seu resultado, como uma obra acabada.
Todavia anos antes dessa performance, Von Hagens já tinha exposto seus lúgubres trabalhos na mesma galeria.
Em 1999, um dos mais lúcidos pensadores da atualidade, Paul Virilio, proferiu uma palestra titulada "Uma Arte Impiedosa", assombrando críticos e frequentadores de vernissages. No final do milênio, constatava como a arte contemporânea era um fiel reflexo das profanações que caracterizaram o século 20. Depois de tantas guerras cruéis e crimes contra a humanidade, a arte ocidental teria abandonado -ou até superado- a pretensão de representar a realidade, para apresentá-la cada vez mais real, se constituindo numa arte mostrativa, capaz de exibir a abjeção como objeto de fruição, longe de compaixões ou ressalvas morais. Imediata, a obra de arte tenderia a ser concebida como uma evidência absoluta, sem mediações reflexivas ou pieguices; impiedosa, portanto, mas não impudica. Antes, talvez, afinada com o despudor próprio dos torturadores, na arrogância ilimitada dos carrascos.


Necropsia pública feita pelo médico alemão Von Hagens em uma galeria de Londres, diante de câmeras de TV, força os limites da arte e a aproxima do inumano


Vitória da transparência
Nessa linha de raciocínio, a vitória radiográfica da transparência, na vontade extrema de tudo ser oferecido à avidez do espectador, promoveria ao primeiro plano o que deve ficar oculto. Mas tal obscenidade, para sempre escancarada, nada teria a ver com a sexualidade, pois a pornografia, sofisticada ou grosseira, conquistara sua legitimação, sacramentada pelo relaxamento da censura, quase sempre em prol de iniciativas comerciais. A questão, agora, apontaria para um dos últimos tabus culturais, um dos primeiros da humanidade: a morte. Por esse viés era abordada a exposição que levara 200 mil visitantes a um museu em Mannhein. Chamava-se "Os Mundos do Corpo" e exibia 200 cadáveres, ali reunidos por obra e graça de Von Hagens. O anatomista tinha inventado um método de conservar os mortos, superior ao embalsamamento das múmias, plastificando-os, para depois esculpi-los. Travestidos de estátuas clássicas, os esfolados desfraldavam suas peles e brandiam suas vísceras, imitando a "Vênus de Milo com Gavetas", de Dali. Mais tarde, essa produção chegaria a Londres.

Ciência e arte
"O tempora, o mores": este assunto extrapola a alçada da estética para adentrar na ética. Pouco importa se um cidadão lega seu corpo "à ciência", querendo contribuir para o seu progresso. A boa intenção não elimina o desejo narcísico de ser visto e admirado, mesmo post mortem. E o cientista, voyeurista por dever de ofício, também seria um exibicionista, assinando a manufatura de Tânatos.
Em outros âmbitos da medicina, discute-se o limiar entre a vida e a morte, um dilema concreto. Aqui, trata-se do apagamento das fronteiras entre a ciência e a arte, um desafio pertinente. No entanto percebe-se algo sinistro em jogo, que leva a discussão alhures. Se o que resta da vida quando ela acaba pode ser transformado por um feito humano numa finalidade alheia à procura do conhecimento, visando a algum tipo de prazer visual, teria sido atingido o cúmulo do inumano, uma arte verdadeiramente "contra natura". Ou, parafraseando Hieronimus Bosch, o triunfo da morte.
Arte sem limites? A ciência como atividade recreativa, superinteressante? Muito pior: o discreto charme da necrofilia. Do além, Mengele fez escola.

Oscar Angel Cesarotto é psicanalista e professor na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de "No Olho do Outro" (ed. Iluminuras).


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