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País asiático governado por um Estado comunista enfrenta
o dilema de ter uma sociedade cada vez mais capitalista
China em obras
Peter Burke
especial para a Folha
Na República Popular da China é tempo de comemorações. Num dos prédios que margeiam a praça Tiananmen, números iluminados exibem a contagem regressiva em dias, horas e segundos, não, como
um estrangeiro talvez esperasse, para o milênio, mas
para o momento em que Macau passará ao domínio
chinês. O mês de outubro de 1999 foi marcado por comemorações do 50º aniversário da República Popular,
uma república proclamada por Mao Tsé-tung na Tiananmen (Porta da Paz Celestial) em 1º de outubro de
1949. Em setembro de 1999, um gigantesco retrato de
Mao já estava à mostra na praça, não longe do mausoléu erigido após sua morte, em 1976, para exibir seu corpo aos peregrinos, nos moldes do mausoléu de Lênin na
Praça Vermelha em Moscou.
Esse outono parece um bom momento para refletir
sobre as mudanças pelas quais passou a China nos últimos 50 anos. As pessoas mais bem qualificadas para
traçar um tal balanço são obviamente os próprios chineses, em especial aqueles que presenciaram o último
meio século de história; mas mesmo visitantes estrangeiros podem ter algo com que contribuir.
Por acaso acabei de regressar de uma visita à China,
onde minha mulher e eu fomos convidados a dar palestras, em setembro passado, em universidades de três cidades diversas, Pequim, Nanquim e Xangai. Nunca havíamos visitado a China e foi fascinante comparar e
contrastar nossas impressões anteriores, baseadas em
livros, filmes e reportagens de jornais, principalmente
reportagens dos acontecimentos da Revolução Cultural, com uma experiência mais direta da sociedade chinesa. Complementamos essas impressões com várias
conversas com nossos anfitriões, professores e estudantes de pós-graduação que nos levaram para passear e
eram mais ou menos fluentes em inglês. Em Pequim,
sobretudo, a escala gigantesca dos monumentos, da Cidade Proibida à praça Tiananmen, é de impressionar
qualquer um, fazendo os visitantes se sentirem pequenos e insignificantes (em comparação, mesmo o monumental centro de Brasília parece ter sido construído
quase numa escala humana). A impressão causada por
esses vastos espaços desaparece ou, quando menos, dilui-se nas fotografias. É preciso estar de corpo presente.
Liberdade de expressão
O ano de 1999 parece ter
sido uma boa época para visita. Quase o primeiro comentário que ouvimos, de um historiador chinês, foi
que "podemos dizer tudo agora, embora não possamos
imprimir tudo". Outro historiador nos contou que estava trabalhando numa história oral da Revolução Cultural, gravando entrevistas com participantes, embora estivesse resignado a esperar 20 ou 30 anos antes de publicá-la. Nosso desejo de aprender mais sobre a Revolução
Cultural só rivalizava com o desejo de alguns dos chineses que encontramos para nos contar sobre ela. Muita
gente sente necessidade de falar sobre esses acontecimentos, talvez como um jeito de exorcizá-los ou finalmente haver-se com eles.
A história da adolescência de Jung Ghang nos anos 60,
que ela publicou na Inglaterra em 1991 sob o título
"Wild Swans" ("Cisnes Selvagens"), é somente uma
história dramática entre muitas. Um professor que encontramos era pai de um guarda vermelho que, num
belo dia, voltou do colégio e começou a enterrar os livros estrangeiros do pai no jardim. Um outro havia sido
ele próprio guarda vermelho e descreveu como certa
vez teve de ficar de pé numa mesa enquanto seus colegas o criticavam por seus deslizes políticos. Um dos estudantes que nos mostrava Pequim era filho de um
guarda vermelho e nos disse que sua mãe ainda acreditava em Mao e que, quando visitou seu filho na universidade, fizera também a peregrinação para ver Mao em
seu mausoléu na praça Tiananmen.
Outras reações eram mais céticas. Falava-se muitas
vezes sobre a terceira mulher de Mao, a atriz Jiang
Ching, e os demais membros da "Turma dos Quatro",
como o grupo foi descrito desde sua prisão em 6 de outubro de 1976, menos de um mês depois da morte de
Mao. Uma estudante que nos ciceroneava em Nanquim
nos disse que seu nome significava "recordar" e que
seus pais escolheram esse nome porque ela nascera no
mesmo dia que a "Turma dos Quatro" foi presa. Um
professor observou que melhor nome para o grupo teria sido "Turma dos Cinco", insinuando que o próprio
Mao aprovava o que faziam ou pelo menos permitia
que continuassem a fazê-lo.
Ouvimos muitas críticas à política de Mao a partir de
1950, embora ele ainda seja um herói para os chineses,
por ser o fundador do Estado moderno. A exemplo de
Bolívar, ele é visto como o "libertador". Os sucessos de
1949 são oficialmente descritos na China como "a libertação". O período dominado pela "Turma dos Quatro",
por outro lado, é definido como a "contra-revolução".
Nesse ponto não pude evitar o comentário de que o
termo "contra-revolução" seria mais apropriado para o
período iniciado em 1979, quando Deng Xiaoping abriu
a China ao capitalismo, mas essa foi uma das poucas
ocasiões em que as pessoas preferiram não ouvir meus
comentários a respondê-los. Mesmo agora, parece, os
chineses não podem dizer tudo.
Minha impressão da China pode ser resumida numa
série de contrastes, de paradoxos, de contradições aparentes que mesmo um visitante estrangeiro pode observar, mas que somente o estudo de toda uma vida sobre
os assuntos chineses pode tentar explicar com proveito.
Meus postos de observação foram três cidades, especialmente as ruas pelas quais caminhamos e os campi
universitários onde demos palestras, comemos e dormimos. Uma das primeiras coisas que notamos sobre
as cidades, sobretudo Pequim, foi o número de carros e
bicicletas que trafegam praticamente por onde bem
queiram. Atravessar a rua era um suplício, sendo necessário a todo instante saltar do caminho de alguém sobre
rodas. A China é menos disciplinada na prática do que
na teoria. De fato, comecei a ver a tradicional disciplina
do Partido Comunista não tanto como uma expressão
de uma sociedade metódica, mas, antes, como uma tentativa de impor um mínimo de ordem!
Quanto às universidades onde ficamos, elas haviam
sido fundadas no começo do século por missionários
americanos, a fim de ensinar estudantes cristãos em inglês -universidades que foram tomadas pelo Estado
em 1949. Elas parecem estar a meio caminho entre campi americanos e jardins chineses, com pontes e muitas
árvores e alguns prédios construídos no estilo tradicional chinês. Como fosse o início do ano letivo, bandeiras
pendiam entre as árvores. Pedimos a nossos anfitriões
para nos traduzir algumas das mensagens, e elas se revelaram exortações morais aos estudantes para que cuidassem de sua saúde, fossem simpáticos com os colegas
e, acima de tudo, queimassem as pestanas. Se essas
mensagens remontavam à tradição marxista ou confuciana era difícil dizer: elas pareciam dever algo a ambas.
Nos cantos do campus podiam-se ver inúmeros prédios altos, em geral malconservados. Esses eram os alojamentos dos estudantes, cujos quartos eram divididos
por seis a dez pessoas, com seus jeans e camisetas recém-lavados pendurados das janelas para secar.
Como numa utopia socialista, ou numa faculdade de
Cambridge, os estudantes não cozinhavam para si mesmos, mas desfrutavam da cozinha universitária (ao
contrário de Cambridge, porém, tinham de levar seus
próprios pratos e tigelas).
Tudo parecia muito igualitário até que perguntamos
aos estudantes que conhecíamos sobre suas famílias.
Todos eles provinham da classe média urbana e nos disseram que isso era normal. Para os estudantes alcançarem uma boa nota no exame de admissão, é necessário
que paguem uma mensalidade extra -em outras palavras, uma espécie de cursinho faz parte do sistema. Os
estudantes recebem dinheiro do Estado, mas os pais
complementam-no. Nessa sociedade comunista, os estudantes e suas famílias, sejam ou não membros do Partido, são um tipo de elite.
As filhas de camponeses também são vistas na universidade, mas não como alunas. Elas vêm para trabalhar
nas cozinhas, assim como nas cidades trabalham como
garçonetes em restaurantes ou empregadas em famílias
de classe média. Embora Mao fosse filho de camponeses e diferisse de Marx ao frisar o papel dos camponeses
-mais que o do proletariado- na revolução comunista e sua importância na sociedade comunista, parece
que a posição dos camponeses na China não mudou
tanto. Uma viagem de trem de Nanquim a Xangai nos
permitiu entrever os camponeses trabalhando no campo. Para o olho ocidental, pelo menos, a ausência de
maquinário agrícola era gritante.
Forças modernas
Nas metrópoles, por outro lado,
o visitante impressiona-se vivamente com as forças da
modernidade. Alguns anos atrás, os prédios mais chamativos eram sedes do partido, mas agora são em geral
bancos ou hotéis (ou mais raramente salas de concerto
ou museus, construídos por vezes com dinheiro estrangeiro). Caminhar ao longo da amurada do rio, no centro de Xangai, é como caminhar ao longo do que talvez
seja o Tâmisa londrino em 2010 ou 2020.
De um lado, há os prédios públicos de 1920, vários deles construídos pelos ingleses. De outro, as torres e globos e colunatas pós-modernos erigidos nos anos 90,
com sua aparência teatral acentuada pelos holofotes
(que se apagam às 10h da noite, para que as pessoas não
se sintam encorajadas a dormir tarde).
Que o elemento capitalista na China não é um fenômeno puramente superficial ou circunscrito a poucas
pessoas é sugerido pela difusão dos restaurantes McDonald's -o grande "M" virou um novo ideograma chinês, que significa a presença de comida ocidental- e
sobretudo pelo rápido crescimento recente das filiais da
Bolsa de Valores, nas quais as pessoas (não particularmente ricas, a julgar por suas roupas) sentam-se com os
olhos grudados em telas, que exibem os preços das
ações. Ao que parece, é normal para o chinês mediano
das cidades possuir ações e também comprá-las e vendê-las sem o auxílio de um corretor. O maior paradoxo
de todos na China é aquele de um governo comunista à
frente de uma sociedade cada vez mais capitalista.
Peter Burke é historiador inglês, autor de, entre outros, "O Renascimento
Italiano" (Nova Alexandria). Escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de José Marcos Macedo.
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