São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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Em "O Esplendor de Portugal", Lobo Antunes transforma a raiva em escrita poderosa
Vozes de um mundo hipócrita

Reprodução
O escritor Antônio Lobo Antunes, autor de "O Esplendor de Portugal"


Bernardo Carvalho
Colunista da Folha

O Esplendor de Portugal" é um livro extraordinário. Desses que não se encontram todos os dias, nem em qualquer país. É óbvio que o título tem a sua ironia, que é das mais corrosivas e impiedosas. Não há grande escritor no mundo que consiga louvar as glórias pátrias sem uma ponta de sarcasmo. A menos que seja cego, louco, burro ou esteja de má-fé. Toda nação tem os seus interesses a defender e impor, dependendo da extensão do seu poderio, contra os interesses de outras nações e muitas vezes a despeito do bom senso da justiça. Toda nação, como os homens que a governam e os que a povoam, tem seus podres, suas mesquinharias, suas hipocrisias. Todo grande escritor tem uma percepção aguda do que o cerca, e que resulta no mal-estar cujo desdobramento mais positivo é a literatura e o mais negativo, o rancor e o isolamento.

Ciosos e medíocres
Os escritores muito ciosos e orgulhosos de suas pátrias costumam ser os mais medíocres -ou, no melhor dos casos (quando calham de ser verdadeiros artistas), os mais loucos, ofuscados pela demência de seus projetos. Os que se satisfazem com o estado do mundo em que vivem ou bem são tontos ou bem são cínicos. Assim como Thomas Bernhard em relação à Áustria, António Lobo Antunes transforma a raiva da pátria em motor de uma escrita das mais poderosas. E, paradoxalmente, assim como Thomas Bernhard em relação à Áustria, não poderia haver maior honra para Portugal do que poder contar, entre as fileiras de seus escritores mais significativos, com o nome de um romancista da virulência de Lobo Antunes. Nos últimos anos, a imagem do autor de "Os Cus de Judas", "Auto dos Danados" e "Manual dos Inquisidores", entre outros, ficou marcada, graças ao folclore da vida literária veiculado pela mídia, por um perfil idiossincrático, ainda que demasiado humano. Considerado um dos favoritos ao Nobel de 1998, ao lado de Saramago, ele teria se amargurado a tal ponto ao ver suas chances se dissolverem no ar, com o resultado final do prêmio atribuído ao conterrâneo, que já não precisaria mais conter suas manifestações de repúdio à pátria, alardeando estar mais interessado em ser publicado em países onde sua obra é reconhecida com o devido respeito, como a França e a Alemanha. Para quem está acostumado à valorização do extraliterário quando se pretende falar de livros, pode ser difícil entender que a vida literária não tem necessariamente nada a ver com literatura. Em geral, ela é apenas um meio para a manifestação do que pode haver de mais mesquinho entre os homens, como em qualquer outra profissão. É uma arena para egos, invejas e ressentimentos que pouco têm a ver com as obras. E os livros de Lobo Antunes, a despeito do que se diz sobre o autor, são extraordinários.

Marca registrada
"O Esplendor de Portugal" (1997) é desses romances que você gostaria que nunca chegassem ao fim. Lobo Antunes inventou uma forma narrativa própria, uma marca registrada, que consiste em parágrafos interrompidos por frases intercaladas, que formam uma espécie de quebra-cabeças polifônico. São diversos personagens e momentos que vão se narrando simultaneamente, em paralelo, e que terminam por estabelecer uma complexidade romanesca muito peculiar.
Essa originalidade não é, porém, desprovida de raízes e influências facilmente reconhecíveis. Faulkner é a mais evidente, e por vezes até uma autora como Marguerite Duras vem à cabeça.
"O Esplendor de Portugal" é dividido em três partes, que correspondem às vozes de três filhos, intercaladas por capítulos em que fala a mãe. Contam a saga -e a derrocada- de uma família proprietária de terras em Angola até a guerra de independência e, por decorrência, acabam falando desse "esplendor" de Portugal a que se refere ironicamente o título: "O meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar na África não era dinheiro nem poder mas pretos sem dinheiro e sem poder algum que nos dessem a ilusão do dinheiro e do poder que de fato ainda que o tivéssemos não tínhamos por não sermos mais que tolerados, aceitos com desprezo em Portugal, olhados como olhávamos os bailundos que trabalhavam para nós e portanto de certo modo éramos os pretos dos outros da mesma forma que os pretos possuíam os seus pretos e estes os seus pretos ainda em degraus sucessivos descendo ao fundo da miséria, aleijados, leprosos, escravos de escravos, cães, o meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar na África era transformar a vingança de mandar no que fingíamos ser a dignidade de mandar". Lobo Antunes nasceu em 1942 e é psiquiatra de formação. Serviu como médico nas guerras coloniais. Seus livros usam as ex-colônias como espelho, um anteparo para que a imagem de Portugal não se perca em devaneios acerca de um suposto espírito nacional que teria algo a ver com a mistificação da saudade, da melancolia e das glórias passadas. Se existe algo que define todas as relações desse "esplendor" é, antes, a hipocrisia.

Fingidores
"O Esplendor de Portugal" tem, assim, não só algo a ver com Eça de Queirós, mas, inadvertidamente, com Nelson Rodrigues, já que aqui a família é o lugar da mentira. Todos fingem que não vêem o que têm diante dos olhos e que os envergonha por desviá-los das convenções de que precisam para manter, nem que seja só na aparência, o núcleo familiar coeso: que a mãe é amante de um comandante de polícia que a trata como puta na frente dos outros enquanto o marido bebe, que um dos filhos não é dela, mas fruto da relação do marido alcoólatra com uma negra, que a filha desde pequena se insinua a qualquer homem que lhe passa pela frente etc. A forma fragmentária de diversas vozes e momentos entrecruzados, construída como uma memória coletiva, um passado composto, uma combinação de lembranças cujo sentido só se completa na multiplicidade dos pontos de vista, é especialmente propícia para narrar esse mundo hipócrita, uma vez que vai criando suspeitas, suspenses e surpresas. O que um diz em meias palavras só se revela em sua totalidade pelas meias palavras do outro. As revelações mais importantes, os dramas raciais, sexuais e incestuosos são interrompidos e retomados: o que a lembrança de um deixa em suspenso só vai ser respondido pela lembrança de outro.

Decadência
E chega a ser comovente a decadência desses personagens que vão vivendo como podem, diante das circunstâncias mais adversas, escondendo os podres debaixo da mesa, tentando sobreviver às piores atrocidades, numa vida eufemística e de denegação.
Depois de conseguir mandar os filhos para Lisboa, a mãe, viúva, decide permanecer sozinha em Angola, contra todo o bom senso, na fazenda onde foi criada e que herdou do pai, acossada diante da barbárie e do ódio da guerra. Enquanto ela se lembra da infância, dos pais, do seu casamento e dos três filhos, estes em Lisboa vão se lembrando também da infância e da mãe cujas cartas já não lêem.
O romance começa com o irmão mais velho à espera dos outros dois ("um epiléptico e uma infeliz") para a ceia de Natal de 1995, no apartamento de Lisboa. Deixaram Angola há 18 anos e já não se vêem há 15. Enquanto ele espera, a mãe em Angola tenta salvar a própria pele, assombrada pelo "esplendor" de um passado que só a ferocidade implacável do presente pode restituir em suas verdadeiras cores.
Assim, também, "O Esplendor de Portugal" é um livro implacável por restituir, para quem anda obnubilado por tanta impostura de marketing, o que a grande literatura ainda é capaz de ser.



O Esplendor de Portugal
383 págs., R$ 34,00 de António Lobo Antunes
Editora Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/ xx/21/507-2000).




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