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Em "O Esplendor de Portugal", Lobo Antunes transforma a raiva em escrita poderosa
Vozes de um mundo hipócrita
Reprodução
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O escritor Antônio Lobo Antunes, autor de "O Esplendor de Portugal" |
Bernardo Carvalho
Colunista da Folha
O Esplendor de Portugal" é um livro
extraordinário. Desses que não se
encontram todos os dias, nem em qualquer país. É óbvio que o título tem a sua
ironia, que é das mais corrosivas e impiedosas. Não há grande escritor no mundo
que consiga louvar as glórias pátrias sem
uma ponta de sarcasmo. A menos que
seja cego, louco, burro ou esteja de má-fé. Toda nação tem os seus interesses a
defender e impor, dependendo da extensão do seu poderio, contra os interesses
de outras nações e muitas vezes a despeito do bom senso da justiça. Toda nação,
como os homens que a governam e os
que a povoam, tem seus
podres, suas mesquinharias, suas hipocrisias. Todo grande escritor tem
uma percepção aguda do
que o cerca, e que resulta
no mal-estar cujo desdobramento mais positivo é
a literatura e o mais negativo, o rancor e
o isolamento.
Ciosos e medíocres
Os escritores
muito ciosos e orgulhosos de suas pátrias
costumam ser os mais medíocres -ou,
no melhor dos casos (quando calham de
ser verdadeiros artistas), os mais loucos,
ofuscados pela demência de seus projetos. Os que se satisfazem com o estado do
mundo em que vivem ou bem são tontos
ou bem são cínicos.
Assim como Thomas Bernhard em relação à Áustria, António Lobo Antunes
transforma a raiva da pátria em motor de
uma escrita das mais poderosas.
E, paradoxalmente, assim como Thomas Bernhard em relação à Áustria, não
poderia haver maior honra para Portugal do que
poder contar, entre as fileiras de seus escritores
mais significativos, com o
nome de um romancista
da virulência de Lobo Antunes.
Nos últimos anos, a imagem do autor
de "Os Cus de Judas", "Auto dos Danados" e "Manual dos Inquisidores", entre
outros, ficou marcada, graças ao folclore
da vida literária veiculado pela mídia,
por um perfil idiossincrático, ainda que
demasiado humano.
Considerado um dos favoritos ao Nobel de 1998, ao lado de Saramago, ele teria se amargurado a tal ponto ao ver suas
chances se dissolverem no ar, com o resultado final do prêmio atribuído ao
conterrâneo, que já não precisaria mais
conter suas manifestações de repúdio à
pátria, alardeando estar mais interessado
em ser publicado em países onde sua
obra é reconhecida com o devido respeito, como a França e a Alemanha.
Para quem está acostumado à valorização do extraliterário quando se pretende
falar de livros, pode ser difícil entender
que a vida literária não tem necessariamente nada a ver com literatura. Em geral, ela é apenas um meio para a manifestação do que pode haver de mais mesquinho entre os homens, como em qualquer outra profissão. É uma arena para
egos, invejas e ressentimentos que pouco
têm a ver com as obras. E os livros de Lobo Antunes, a despeito do que se diz sobre o autor, são extraordinários.
Marca registrada
"O Esplendor de
Portugal" (1997) é desses romances que
você gostaria que nunca chegassem ao
fim. Lobo Antunes inventou uma forma
narrativa própria, uma marca registrada,
que consiste em parágrafos interrompidos por frases intercaladas, que formam
uma espécie de quebra-cabeças polifônico. São diversos personagens e momentos que vão se narrando simultaneamente, em paralelo, e que terminam por estabelecer uma complexidade romanesca
muito peculiar.
Essa originalidade não é, porém, desprovida de raízes e influências facilmente
reconhecíveis. Faulkner é a mais evidente, e por vezes até uma autora como Marguerite Duras vem à cabeça.
"O Esplendor de Portugal" é dividido
em três partes, que correspondem às vozes de três filhos, intercaladas por capítulos em que fala a mãe. Contam a saga -e
a derrocada- de uma família proprietária de terras em Angola até a guerra de
independência e, por decorrência, acabam falando desse "esplendor" de Portugal a que se refere ironicamente o título:
"O meu pai costumava explicar que
aquilo que tínhamos vindo procurar na
África não era dinheiro nem poder mas
pretos sem dinheiro e sem poder algum
que nos dessem a ilusão do dinheiro e do
poder que de fato ainda que o tivéssemos
não tínhamos por não sermos mais que
tolerados, aceitos com desprezo em Portugal, olhados como olhávamos os bailundos que trabalhavam para nós e portanto de certo modo éramos os pretos
dos outros da mesma forma que os pretos possuíam os seus pretos e estes os
seus pretos ainda em degraus sucessivos
descendo ao fundo da miséria, aleijados,
leprosos, escravos de escravos, cães, o
meu pai costumava explicar que aquilo
que tínhamos vindo procurar na África
era transformar a vingança de mandar
no que fingíamos ser a dignidade de
mandar".
Lobo Antunes nasceu em 1942 e é psiquiatra de formação. Serviu como médico nas guerras coloniais. Seus livros
usam as ex-colônias como espelho, um
anteparo para que a imagem de Portugal
não se perca em devaneios acerca de um
suposto espírito nacional que teria algo a
ver com a mistificação da saudade, da
melancolia e das glórias passadas. Se
existe algo que define todas as relações
desse "esplendor" é, antes, a hipocrisia.
Fingidores
"O Esplendor de Portugal" tem, assim, não só algo a ver com
Eça de Queirós, mas, inadvertidamente,
com Nelson Rodrigues, já que aqui a família é o lugar da mentira. Todos fingem
que não vêem o que têm diante dos olhos
e que os envergonha por desviá-los das
convenções de que precisam para manter, nem que seja só na aparência, o núcleo familiar coeso: que a mãe é amante
de um comandante de polícia que a trata
como puta na frente dos outros enquanto o marido bebe, que um dos filhos não
é dela, mas fruto da relação do marido alcoólatra com uma negra, que a filha desde pequena se insinua a qualquer homem que lhe passa pela frente etc.
A forma fragmentária de diversas vozes e momentos entrecruzados, construída como uma memória coletiva, um
passado composto, uma combinação de
lembranças cujo sentido só se completa
na multiplicidade dos pontos de vista, é
especialmente propícia para narrar esse
mundo hipócrita, uma vez que vai criando suspeitas, suspenses e surpresas.
O que um diz em meias palavras só se
revela em sua totalidade pelas meias palavras do outro. As revelações mais importantes, os dramas raciais, sexuais e incestuosos são interrompidos e retomados: o que a lembrança de um deixa em
suspenso só vai ser respondido pela lembrança de outro.
Decadência
E chega a ser comovente a decadência desses personagens que
vão vivendo como podem, diante das
circunstâncias mais adversas, escondendo os podres debaixo da mesa, tentando
sobreviver às piores atrocidades, numa
vida eufemística e de denegação.
Depois de conseguir mandar os filhos
para Lisboa, a mãe, viúva, decide permanecer sozinha em Angola, contra todo o
bom senso, na fazenda onde foi criada e
que herdou do pai, acossada diante da
barbárie e do ódio da guerra. Enquanto
ela se lembra da infância, dos pais, do seu
casamento e dos três filhos, estes em Lisboa vão se lembrando também da infância e da mãe cujas cartas já não lêem.
O romance começa com o irmão mais
velho à espera dos outros dois ("um epiléptico e uma infeliz") para a ceia de Natal de 1995, no apartamento de Lisboa.
Deixaram Angola há 18 anos e já não se
vêem há 15. Enquanto ele espera, a mãe
em Angola tenta salvar a própria pele, assombrada pelo "esplendor" de um passado que só a ferocidade implacável do
presente pode restituir em suas verdadeiras cores.
Assim, também, "O Esplendor de Portugal" é um livro implacável por restituir, para quem anda obnubilado por
tanta impostura de marketing, o que a
grande literatura ainda é capaz de ser.
O Esplendor de Portugal
383 págs., R$ 34,00
de António Lobo Antunes
Editora Rocco (r. Rodrigo Silva,
26, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/
xx/21/507-2000).
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