São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2005

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O professor Abel Barros Baptista, que organizou a edição portuguesa de ensaios de Antonio Candido, diz que ele é um dos grandes prosadores da língua e discute por que seu paradigma ainda é dominante na universidade brasileira

Formação continuada

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mais importante crítico literário brasileiro, Antonio Candido (1918) é praticamente desconhecido em Portugal, apesar de ter recebido em 1998 o Prêmio Camões. Isso pode mudar um pouco, com o lançamento neste mês da primeira antologia de seus textos por lá, "O Direto à Literatura e Outros Ensaios", que tem seleção e posfácio de Abel Barros Baptista e traz peças fundamentais, como "Dialética da Malandragem", "Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade" e "Inquietudes na Poesia de Drummond", além de um prefácio inédito do próprio Candido.
Esse desconhecimento, argumenta Barros Baptista em seu texto ao final do volume, é de certa forma recíproco, pois o autor "tem escassa ou até nenhuma relação crítica com a literatura e a cultura portuguesas". Ignorar Portugal, contudo, não foi, segundo o professor de literatura brasileira da Universidade Nova de Lisboa, uma mera circunstância, e sim parte de um programa, estratégia de um projeto que se confunde com o projeto modernista do país e, ao mesmo tempo, dá a ele um poderoso paradigma crítico, uma via de institucionalização universitária. O desconhecimento seria um "resultado natural do processo de "formação" da literatura brasileira".
A discussão dessa relação às vezes inexistente, às vezes tensa é o tema principal do ensaio de Barros Baptista, "O Cânone como Formação". É sobre as razões de seu texto e seus possíveis efeitos que fala a seguir o autor português.

 

Folha - Em seu posfácio, o sr. tenta fazer uma análise do conjunto da produção crítica de Antonio Candido?
Abel Barros Baptista -
Ressalvo que naturalmente não me é possível resumir no espaço de uma resposta uma argumentação demorada e, em vários pontos, minuciosa. O objeto do meu ensaio é o que chamo "teoria da literatura brasileira de Antonio Candido", e tento mostrar que corresponde ao "momento decisivo" da "história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura brasileira", ou seja, aquele que consuma a naturalização do processo brasileiro de estipulação de um cânone literário nacional. A literatura não foi componente acessória, mas essencial, da definição da nacionalidade.
O cânone nacional é por isso uma necessidade histórica inerente à constituição da nação brasileira, a necessidade de estipular um corpo de obras para educação dos cidadãos e representação da nação. Trata-se de um processo que implica projeto, estipulação, imposição, ou seja, construção. O romantismo fundou o projeto, apoiado numa noção naturalizadora -a literatura iria inevitavelmente exprimir o Brasil- e numa finalidade construtiva: a literatura deveria participar na construção do Brasil. A tensão entre essa pressuposição e essa finalidade produziu impasses que se foram reiterando ao longo da história da literatura brasileira.
Mas nem por isso deixou de ser também o legado de uma tradição assente numa harmonia aparente: a representação da realidade nacional constitui o critério determinante de inclusão na literatura brasileira, a qual, por sua vez, ao mesmo tempo se caracteriza pelo empenhamento na construção da nação.
Dada a natureza da literatura moderna, que necessariamente excede a determinação nacional, essa tradição é menos uma tradição separada da portuguesa do que uma tradição de separação da portuguesa. Ou, nos termos que adoto no ensaio, a estipulação do cânone brasileiro está desde sempre condenada ao fracasso, mas esse fracasso é paradoxalmente eficaz, porque tem sucesso enquanto estipulação brasileira do cânone literário.
Percebendo essa deslocação do atributo "brasileiro" do cânone para o processo de estipulação, percebe-se também a posição histórica da teoria da "formação", isto é, o fato de ser a que melhor dá conta dessa deslocação e simultaneamente a que melhor contribui para a ocultar.
Desde logo ela se distingue pela perspectiva que, por um lado, permite a Antonio Candido deslocar a questão do começo da literatura brasileira sem iludir o problema do desprendimento da portuguesa, enquanto, por outro, lhe permite afirmar que a literatura brasileira pertence às literaturas do Ocidente sem também deixar de sublinhar nela a condição particular, nacional e derivada. No primeiro ponto, a teoria da "formação" faz depender a definição da literatura brasileira não de uma origem, mas de um estado final e maduro de formação, definido pela síntese do elemento local com o universal, do nacional com o europeu.
A teoria é teleológica, a teleologia naturalizadora está inscrita na própria metáfora da "formação". Por outro lado, Antonio Candido percebe que nunca seria possível fundar o cânone nacional num critério de grandeza literária, não porque a literatura brasileira seja menor, mas porque nenhum cânone se constitui, se estipula e impõe sem recurso a um critério exterior ao literário; mas vai fundá-lo na idéia do empenhamento na construção da nação, prolongando o projeto romântico e de tal modo que, no limite, o estudo da literatura brasileira se torna inerente à condição de cidadão brasileiro.
Daí que a teoria de Candido preveja necessariamente a institucionalização. O movimento modernista e a universidade são os dois principais fatores a marcar a eficácia histórica da teoria da literatura brasileira de Antonio Candido, permitindo-lhe sustentar um paradigma crítico, ou seja, uma rede de pressupostos partilháveis, um programa de pesquisa, uma promessa de sucesso nessa pesquisa, e um sentido, a um tempo crítico, cívico e político, para essa pesquisa. Isso certamente deixa muito pouco espaço para teorias concorrentes e sobretudo para uma prática crítica alternativa.

Folha - Conhecendo os protagonistas do universo acadêmico brasileiro em literatura, o sr. acredita que um ensaio como "O Cânone como Formação" só poderia ter sido escrito por um estrangeiro?
Barros Baptista -
Não diria que conheço os protagonistas do universo acadêmico brasileiro; conheço decerto as tendências dominantes, que sobrevivem aos protagonistas e aliás se estendem além do universo acadêmico brasileiro. Isso explica, por um lado, que não me ocorra nenhum brasilianista estrangeiro que subscrevesse, pelo menos no essencial, as análises que levo a cabo nesse ensaio. A razão parece-me evidente: o paradigma crítico assente na teoria e no trabalho de Antonio Candido persiste dominante na interpretação da literatura brasileira dentro e fora do Brasil. Até sobretudo para um estrangeiro o trabalho de Candido é mais do que a melhor porta de entrada na literatura brasileira: articulando uma teoria da literatura brasileira com a leitura das suas obras decisivas, constitui todo um programa de "formação" do brasilianista.
De resto, sei disso por experiência pessoal: a minha aprendizagem da literatura brasileira fez-se em boa parte em diálogo com os estudos de Antonio Candido.
Por outro lado, conheço vários acadêmicos brasileiros que partilham as minhas análises e poderiam ter escrito um ensaio como este. Nem é necessário, portanto, ser estrangeiro, nem chega ser estrangeiro: mas é preciso estar colocado no exterior do paradigma crítico assente na teoria e no trabalho de Antonio Candido para se poder analisar-lhe os fundamentos e o vocabulário, descrever a sua posição histórica, delimitar os problemas a que respondeu e avaliar a eficácia e os limites da resposta construída.
Tudo isso pretendo fazer no meu ensaio, examinando passagens estratégicas de alguns textos de Candido. Por exemplo, o termo "formação": que função tem na teoria de Candido? O que vem a ser, afinal, um processo de "formação" aplicado a uma literatura nacional? A reiteração persistente do termo fez esquecer que se trata de fato de uma metáfora, aliás com forte peso na tradição ocidental: por que essa e não outra?
Essas perguntas, que não podem ser feitas no interior do paradigma candidiano, permitem perceber o que, creio, os opositores de Candido nunca perceberam, o caráter teleológico da sua teoria da literatura brasileira. No essencial, é esse o tópico do meu ensaio.
É possível, entretanto, que a sua pergunta tenha um outro sentido implicado: que apenas um estrangeiro conseguiria escapar à reverência ou à unanimidade em torno da figura e da obra de Antonio Candido. Custa-me aceitar que assim seja, mas não tenho noção precisa do que possa ser, no próprio terreno acadêmico brasileiro, essa reverência ou de quais sejam os seus efeitos.

Folha - O seu artigo busca mostrar como o trabalho de Antonio Candido é fundamental na consolidação do projeto modernista e, ao mesmo tempo, como determinadas contradições e "feridas" surgem ao longo desse processo. O sr. não estaria de certa forma adotando o mesmo instrumental crítico que provoca tais contradições e "feridas"?
Barros Baptista -
Não sei se entendo bem o sentido da pergunta: quererá sugerir que me oponho a um nacionalismo brasileiro a partir de um nacionalismo português? Se é isso, tenho que responder com veemente negativa. Devo confessar que não tenho com a literatura portuguesa nenhum laço que me faça orgulhar dela ou me sentir obrigado a defendê-la. Na célebre imagem de Candido, que a diz "arbusto secundário no jardim das musas", o que repudio não é o qualificativo "secundário", mas a metáfora do arbusto, que contém pressuposições para mim inaceitáveis.
Acresce o ponto essencial: o que chama progressiva "exclusão" de Portugal da literatura brasileira não é um fenômeno exclusivamente brasileiro que os portugueses lamentam ou devessem lamentar. Trata-se de um fenômeno luso-brasileiro, no campo literário provavelmente o mais forte traço de união das duas literaturas. Abordei esse problema noutro ensaio, tentando mostrar que a separação da literatura brasileira da portuguesa foi um projeto também da portuguesa e que esta, no processo histórico do romantismo, precisou ser excluída, digamos assim, para se defender das consequências da emergência da literatura brasileira. E precisou também excluir a literatura brasileira.
No caso do meu ensaio sobre Candido, o ponto de partida deve alguma coisa às circunstâncias: no posfácio de um livro de um dos maiores ensaístas de língua portuguesa, ademais Prêmio Camões, eu precisava explicar por que a produção dele é escassíssima na matéria portuguesa (o último livro de Candido, publicado já depois de pronto o livro dele aqui, inclui quatro ensaios de matéria portuguesa ["O Albatroz e o Chinês", editora Ouro sobre Azul]).
Mas essa explicação, por outro lado, interessava-me não por complacência com eventuais preconceitos nacionalistas do leitor português, mas para situar o trabalho de Candido na sua época e apresentar o problema literário a que ele responde: a constituição de uma tradição literária brasileira, una e contínua.
A "progressiva "exclusão" de Portugal da literatura brasileira" corresponde à progressiva constituição dessa tradição. Seria impossível analisar a teoria da "formação" sem considerar o problema da literatura portuguesa: como seria impossível avaliar a contribuição do modernismo para a constituição dessa tradição literária una e contínua sem ter em conta, e decisivamente, o problema português.
Que é fácil cair em reações nacionalistas, sem dúvida; que há em Portugal a tendência a ressentir o caminho literário brasileiro, supondo-o uma perda ou falta de respeito pela tradição lusitana, também é verdade: mas isso é muito diverso do que faço, pois pretendo tão-só descrever a emergência de um problema e a forma histórica de o encarar. Digamos que o meu interesse pela literatura brasileira, que me leva ao interesse de debater as teorias dela, nasce de uma pergunta, para a qual não há resposta única nem estável: o que significa pertencer à mesma língua?

Folha - Qual será, o sr. imagina, a repercussão do livro de Antonio Candido e de seu posfácio no mundo universitário e na imprensa de Portugal?
Barros Baptista -
Francamente, acho que não vai haver repercussão nenhuma. Em parte porque são raros os livros e autores brasileiros que aqui conseguem provocar alguma reação: o último deve ter sido Jorge Amado. Mas sobretudo porque o mundo universitário português permanece abúlico, como sempre deve ter sido, enquanto a imprensa apenas se interessa por livros que vendam muito, agora esoterismo de algibeira e livros ligados de alguma maneira à televisão. A esfera pública portuguesa não existe propriamente, resume-se a um simulacro povoado por colunistas medíocres.
Não creio, por isso, que haja algum interesse significativo no debate dos problemas que a simples publicação deste livro envolve. Terá decerto boa repercussão entre os professores de literatura brasileira, mas são muito poucos (menos de uma dezena...). E, quem sabe, alguma entre as poucas pessoas que aqui se interessam pelos problemas teóricos da literatura. Pode bem ser que, numa perspectiva otimista, a movimentação de poucas pessoas em volta deste livro não signifique necessariamente menor qualidade de repercussão.


Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (editora Globo).

O Direito à Literatura e Outros Ensaios
288 págs., preço não definido, org Abel Barros Baptista, ed. Angelus Novus. Portugal.

Literatur und Geselschaft [Literatura e Sociedade]
25o págs., preço não definido, org. de Ligia Chiappini, trad. de Marcel Vejmelka. Ed. Vervuert. Alemanha.

Onde encomendar Livros portugueses podem ser encomendados na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 3170-4033) e, em alemão, na livraria Bücherstube (tel. 0/ xx/11/ 5044-3735), ambas em São Paulo.


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