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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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A idéia de uma linguagem do sonho

Ele chega em Girona e o hospedam no Casco Viejo da cidade, o antigo centro medieval todo em pedra, do piso das ruelas às paredes internas das lojas. Puxando a mala ladeira acima na tarde cinza de inverno, vê os becos ainda mais íngremes que se abrem entre as casas maciças e terminam ao longe em paredões que vedam a perspectiva. Uma visão encantadora, pensa. Seu apartamento está num prédio renovado, um elevador minúsculo o leva ao último andar. Também o apartamento tem as paredes em pedra. É pequeno, mas com pé direito duplo. E uma sacada é visível desde a entrada. Vai direto para lá, abre a porta de vidro e sai ao ar gelado da quase noite. A sacada dá para os fundos e dela não se vê o horizonte, mas apenas os altos paredões das arcaicas construções ao redor, quase sem janelas, a poucos metros de distância. Olhando para baixo, vê a estrela de Davi desenhada em pedra num pátio interno: percebe que seu apartamento fica sobre o museu judaico que vira pouco antes, na ladeira. Uma velha varre o piso do pátio vazio.
Sai para jantar. Sem premeditar, pensa em Kafka, dentre todas as pessoas do mundo e da vida. Acredita ver nas vielas escuras e vazias à sua volta cenas como as que Kafka via em Praga, na Praga que ele mesmo não conhecera: a que conheceu foi a Praga da invasão soviética, dos tantos bêbados pelas ruas à noite e dos restaurantes de luxo para estrangeiros com dólar e que nunca tinham mais que uma mesa ocupada. Pensou em Kafka por causa da cidade, não por outra coisa.
Quando voltou, ouviu dez badaladas fortes ressoando no apartamento e, um minuto depois, outras dez ainda mais pesadas: o apartamento ficava bem abaixo da grande catedral cristã, cem metros acima na colina, e, como descobriu depois, os sinos soavam o quarto de hora, o duplo quarto de hora, o triplo quarto de hora e depois a hora cheia, e a hora cheia soava duas vezes, dois conjuntos iguais de badaladas para a hora cheia, a noite toda. Às dez horas, um conjunto de dez badaladas e, um minuto depois, outro conjunto de dez badaladas. Não entendia o motivo.
Cansado da viagem, buscou dormir. Mas, às 11 soaram 11 badaladas mais 11, e à meia-noite, 12 mais 12. Como se os sinos estivessem dentro do apartamento de pedra. À uma não sabia se estava em estado de vigília ou devaneio quando se recordou do que lhe contaram naquele mesmo dia, que Girona fora um centro de estudos judaicos da cabala. Os sinos da catedral, imaginou, buscavam abafar aquele outro passado místico para ele representado, sem dúvida erroneamente, mas àquela hora da madrugada isso não lhe seria censurado, pelo museu judaico logo abaixo.
Em algum momento depois da uma sonhou ou pensou, sem surpresa, que de nenhuma maneira gostaria de ser Kafka, de ter sido Kafka. Uma idéia surgida do nada: horrível, ser Kafka.
Passadas as duas, talvez três, viu-se em sonho explicando a alguém, com o que lhe pareceu uma inesperada clareza, os princípios gnósticos. Durante o longo tempo em que sua cabeça argumentou consigo mesma na noturna lógica cristalina inimiga do sono tranquilo, julgou entender que o mal não pode ser compreendido num sentido moral ou religioso, mas apenas no sentido físico. Biológico. Ouviu o discurso interno lhe dizer que o mal é a existência da matéria numa versão paródica da Criação, o sono da alma que toma por real o que é o mundo ilusório dos sonhos, as coisas todas e todas as estruturas do universo cotidiano, o tempo, a história, os poderes, os estados, as religiões, os partidos, as raças, as nações, as crenças, todas essas noções inventadas pelo homem, e ouviu sua própria argumentação lhe afirmar que o simples fato de viver, se alimentar, amar, implica o aumento do mal. Disse para si, nessa noite, que aquela era uma idéia do mundo quando tudo andava mal, quando tudo era ameaça à vida, mas se disse também que assim era o mundo de sempre. E de novo pensou que ser Kafka seria intolerável. E, em algum instante antes da aurora, seu discurso interior lhe disse como era tola a idéia de que Kafka escrevera sobre o absurdo da existência moderna e como Kafka, em sua obsessão pelas transmutações e pela perfeição, visível no desejo de não publicar seus textos que pensava tortos e que por isso só aumentariam o mal do mundo, alimentara na verdade uma real, embora contraditória, esperança atemporal.
Claro que, na manhã seguinte, zonzo pela falta de sono, havia se esquecido de quase todo o discurso que à noite lhe parecera tão preciso.


Teixeira Coelho é autor, entre outros, de "Niemeyer" e "As Fúrias da Mente" (Iluminuras).


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