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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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A solidão do artista

K. acordou inquieto. Atormentado pelos sonhos, sentia as costas tensas e uma vaga dor de cabeça. Antes de esfregar o rosto e de escovar os dentes, correu ao telefone:
- Bombeiros, por favor...
- Pode falar...
- Já socorreram a senhorita M.?
- Foi feito o possível.
Não fora um sonho. Definitivamente. A voz do bombeiro lhe confirmara. Então vestiu o robe sobre o pijama e se dirigiu à rua D., onde M. morava num apartamento do terceiro pavimento, queimado pelo fogo durante a noite, enquanto ele dormia.
Saltou do táxi.
Ainda restavam os curiosos: homens, mulheres e crianças que se colocavam atrás da corda imposta pelas autoridades. O edifício recendia a fumaça. A água ainda escorrendo pelas paredes.
Sombrio, verificou que ele próprio estivera no incêndio e o incêndio era ele. Por algum motivo obscuro, começara a pintar à noite uma tela que o sufocara depois no sono. O resultado não podia ser melhor.
No sonho e na tela, ele e M. se interpenetravam o tempo todo, um dentro do outro, ele era ele e, no entanto, ela era ele -os dois num só movimento, numa única, brilhante labareda. Logo ela queimava sozinha e K. lançou-lhe um lençol, convencido de que assim apagaria as chamas. Daí em diante pareceu-lhe que ela não queimava mais.
Dias depois, K. recebeu pelo correio um envelope que continha a foto de uma tela: M. aparecia apenas desmaiada e alegre por ter sido salva.
Ou espectral -feito tivesse sido desenhada com giz nas trevas.


Raimundo Carrero é autor de, entre outros, "Sombra Severa" e "As Sombrias Ruínas da Alma" (Iluminuras).


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