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A solidão do artista
K. acordou inquieto. Atormentado pelos sonhos, sentia as costas tensas e uma vaga dor de cabeça.
Antes de esfregar o rosto e de escovar
os dentes, correu ao telefone:
- Bombeiros, por favor...
- Pode falar...
- Já socorreram a senhorita M.?
- Foi feito o possível.
Não fora um sonho. Definitivamente. A voz do bombeiro lhe confirmara.
Então vestiu o robe sobre o pijama e
se dirigiu à rua D., onde M. morava
num apartamento do terceiro pavimento, queimado pelo fogo durante a
noite, enquanto ele dormia.
Saltou do táxi.
Ainda restavam os curiosos: homens, mulheres e crianças que se colocavam atrás da corda imposta pelas
autoridades. O edifício recendia a fumaça. A água ainda escorrendo pelas
paredes.
Sombrio, verificou que ele próprio
estivera no incêndio e o incêndio era
ele. Por algum motivo obscuro, começara a pintar à noite uma tela que o sufocara depois no sono. O resultado
não podia ser melhor.
No sonho e na tela, ele e M. se interpenetravam o tempo todo, um dentro
do outro, ele era ele e, no entanto, ela
era ele -os dois num só movimento,
numa única, brilhante labareda. Logo
ela queimava sozinha e K. lançou-lhe
um lençol, convencido de que assim
apagaria as chamas. Daí em diante pareceu-lhe que ela não queimava mais.
Dias depois, K. recebeu pelo correio
um envelope que continha a foto de
uma tela: M. aparecia apenas desmaiada e alegre por ter sido salva.
Ou espectral -feito tivesse sido desenhada com giz nas trevas.
Raimundo Carrero é autor de, entre outros,
"Sombra Severa" e "As Sombrias Ruínas da Alma" (Iluminuras).
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