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Ponto de fuga
O percurso da linha
Laurent Rebours/Associated Press
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Retrato de Lunia Czechowska visto entre as sombras de dois visitantes na exposição de Modigliani no Museu de Luxemburgo |
Jorge Coli
especial para a Folha
O gosto moderno, próprio ao século 20, valorizou
muito o desenho provocado pelos impulsos do gesto.
Com ele, o papel expõe a marca de traços nervosos, habitada por um frêmito que parece traduzir o interior do
artista. Tomada por agitações inconscientes, a mão, rápida, move-se, como que autônoma, numa espécie de
estenografia mediúnica. O braço e todo o corpo participam desses movimentos espontâneos.
Há porém um outro desenho. Mental, controlado,
pensado, ele repousa sobre a firmeza da mão e eleva o
traço à dignidade da linha. Cria fronteiras, recortando
superfícies. O risco é fino, seguro e nítido. Há uma longa
estirpe de pintores que foram supremos desenhistas,
fascinados pela beleza imaterial da linha. Com eles, ondulando em nuances infinitesimais, o fio adquire uma
certa autonomia, levado por leis íntimas que só o pintor
conhece. São artistas que tomam a imagem humana como tema de preferência e submetem a forma dos modelos às exigências fluidas de um contorno implacável. Os
aspectos mais emotivos do quadro, que podem ser muito intensos, dissimulam-se quase sempre por trás de
uma contenção elegante e aristocrática. Emerge, nesses
casos, algo que poderia ser chamado de melancolia linear.
Dos sieneses a Botticelli, do Parmigianino a Ingres,
vários pintores cultivaram esse modo ao mesmo tempo
abstrato e plástico, pressionando a forma que se alonga
e se inclina, em estiramentos. Modigliani foi o último
desses grandes artistas.
Brumas - O Museu de Luxemburgo, em Paris, sob a tutela do senado francês, renovou-se e estabeleceu um
programa de mostras que tem duas direções: o Renascimento e a modernidade. Depois de uma exposição sobre Rafael, segue-se a de Modigliani, aberta até o dia 2
de março. Deve ser a maior retrospectiva já consagrada
ao pintor. O sucesso é enorme, com filas quilométricas e
salas apinhadas.
Modigliani é um artista favorito do grande público,
pela firmeza constante de suas escolhas formais, facilmente reconhecíveis, e pela infelicidade boêmia de sua
curta existência. Ele não goza do mesmo favor entre críticos, intelectuais e entre universitários, para quem a
popularidade exala sempre um cheiro suspeito. Há
também o fato de que a obra de Modigliani foi comprometida por uma grande quantidade de telas falsas, autenticadas por próximos do artista, sem muito rigor.
A exposição parisiense o afirma como grande artista,
de trajetória constante. Apresenta esculturas, desenhos
e mais de cem telas. A vocação inicial de Modigliani, para a estatuária, foi truncada, por causa de sua saúde frágil, mas também por pressão do marchand Paul Guillaume: as esculturas eram mais difíceis de serem vendidas. Estão reunidos na mostra diversos esboços para
uma idéia que Modigliani nunca levou a termo: um
"Templo da Volúpia", onde cariátides dialogam com
Brancusi e com a arte africana.
Paulicéia - São Paulo possui um conjunto incomparável de obras máximas de Modigliani. Cinco telas paulistas foram para a exposição parisiense. Das seis que pertencem ao Masp, saíram quatro: o espantoso e atípico
retrato que ele fez de Diego Rivera, um fogo de artifício
em azuis; a imagem emblemática de Léopold Zborowsky, marchand cuja devoção por Modigliani era extrema; duas estupendas versões que representam Lunia
Czechowska. Do MAC-USP foi o único auto-retrato e
última obra do pintor, a mais essencial de todas, que é
apresentada no catálogo como "seu verdadeiro testamento". Ele mereceu uma sala exclusiva, ao lado da
máscara mortuária de Modigliani, que faleceu em 1920,
com 36 anos.
Fantasma - Jacques Becker realizou, em 1958, um filme
tenso e triste sobre a vida de Modigliani: "Montparnasse 19" ("Os Amantes de Montparnasse"). Ele retomou o
projeto, que era de Max Ophuls, falecido antes da filmagem. Gérard Philipe, prodigioso ator, galã romântico,
encarnou o artista. Gérard Philipe morreu no ano seguinte, com a mesma idade de Modigliani.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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