UOL


São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

O percurso da linha

Laurent Rebours/Associated Press
Retrato de Lunia Czechowska visto entre as sombras de dois visitantes na exposição de Modigliani no Museu de Luxemburgo


Jorge Coli
especial para a Folha

O gosto moderno, próprio ao século 20, valorizou muito o desenho provocado pelos impulsos do gesto. Com ele, o papel expõe a marca de traços nervosos, habitada por um frêmito que parece traduzir o interior do artista. Tomada por agitações inconscientes, a mão, rápida, move-se, como que autônoma, numa espécie de estenografia mediúnica. O braço e todo o corpo participam desses movimentos espontâneos.
Há porém um outro desenho. Mental, controlado, pensado, ele repousa sobre a firmeza da mão e eleva o traço à dignidade da linha. Cria fronteiras, recortando superfícies. O risco é fino, seguro e nítido. Há uma longa estirpe de pintores que foram supremos desenhistas, fascinados pela beleza imaterial da linha. Com eles, ondulando em nuances infinitesimais, o fio adquire uma certa autonomia, levado por leis íntimas que só o pintor conhece. São artistas que tomam a imagem humana como tema de preferência e submetem a forma dos modelos às exigências fluidas de um contorno implacável. Os aspectos mais emotivos do quadro, que podem ser muito intensos, dissimulam-se quase sempre por trás de uma contenção elegante e aristocrática. Emerge, nesses casos, algo que poderia ser chamado de melancolia linear.
Dos sieneses a Botticelli, do Parmigianino a Ingres, vários pintores cultivaram esse modo ao mesmo tempo abstrato e plástico, pressionando a forma que se alonga e se inclina, em estiramentos. Modigliani foi o último desses grandes artistas.
Brumas - O Museu de Luxemburgo, em Paris, sob a tutela do senado francês, renovou-se e estabeleceu um programa de mostras que tem duas direções: o Renascimento e a modernidade. Depois de uma exposição sobre Rafael, segue-se a de Modigliani, aberta até o dia 2 de março. Deve ser a maior retrospectiva já consagrada ao pintor. O sucesso é enorme, com filas quilométricas e salas apinhadas.
Modigliani é um artista favorito do grande público, pela firmeza constante de suas escolhas formais, facilmente reconhecíveis, e pela infelicidade boêmia de sua curta existência. Ele não goza do mesmo favor entre críticos, intelectuais e entre universitários, para quem a popularidade exala sempre um cheiro suspeito. Há também o fato de que a obra de Modigliani foi comprometida por uma grande quantidade de telas falsas, autenticadas por próximos do artista, sem muito rigor.
A exposição parisiense o afirma como grande artista, de trajetória constante. Apresenta esculturas, desenhos e mais de cem telas. A vocação inicial de Modigliani, para a estatuária, foi truncada, por causa de sua saúde frágil, mas também por pressão do marchand Paul Guillaume: as esculturas eram mais difíceis de serem vendidas. Estão reunidos na mostra diversos esboços para uma idéia que Modigliani nunca levou a termo: um "Templo da Volúpia", onde cariátides dialogam com Brancusi e com a arte africana.
Paulicéia - São Paulo possui um conjunto incomparável de obras máximas de Modigliani. Cinco telas paulistas foram para a exposição parisiense. Das seis que pertencem ao Masp, saíram quatro: o espantoso e atípico retrato que ele fez de Diego Rivera, um fogo de artifício em azuis; a imagem emblemática de Léopold Zborowsky, marchand cuja devoção por Modigliani era extrema; duas estupendas versões que representam Lunia Czechowska. Do MAC-USP foi o único auto-retrato e última obra do pintor, a mais essencial de todas, que é apresentada no catálogo como "seu verdadeiro testamento". Ele mereceu uma sala exclusiva, ao lado da máscara mortuária de Modigliani, que faleceu em 1920, com 36 anos.
Fantasma - Jacques Becker realizou, em 1958, um filme tenso e triste sobre a vida de Modigliani: "Montparnasse 19" ("Os Amantes de Montparnasse"). Ele retomou o projeto, que era de Max Ophuls, falecido antes da filmagem. Gérard Philipe, prodigioso ator, galã romântico, encarnou o artista. Gérard Philipe morreu no ano seguinte, com a mesma idade de Modigliani.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: + cinema : Eu, tu, eles e outras fontes
Próximo Texto: José Simão: Buemba! O mundo tá botocado!
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.