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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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+ sociedade

Inimigos cordiais desde o século 18, França e EUA podem tornar irreversível a atual incompreensão mútua

ALIADO CONTRA ALIADO

A cerca de uma hora de carro de Paris, os viajantes que disparam pela auto-estrada para Bruxelas vislumbram uma placa: Blérancourt - Museu da Amizade Franco-Americana. Poucos a seguem. O museu fica entre as ruínas de um castelo, no local onde os franceses, ajudados pelos americanos, detiveram a invasão alemã durante a Primeira Guerra Mundial. Como professor americano de história francesa, servi numa comissão franco-americana para reorganizar as exposições do museu, de modo que oferecessem uma imagem dos contatos entre nossos países nos últimos cinco séculos. Reunimo-nos durante duas semanas em 1997-98 e discutimos infindavelmente as complexidades históricas desse cruzamento cultural: "Por que os franceses saúdam Jerry Lewis como um profeta do dadaísmo?"; "como os americanos puderam receber Marcel Duchamp como se fosse Picasso?". Chegamos à conclusão de que as relações franco-americanas eram construídas sobre enganos criativos, uma série de desacordos cordiais. Nossos países se interpretaram mal reciprocamente desde o início da aliança que nos uniu no século 18. Os franceses imaginaram nobres selvagens do nosso lado do oceano; nós inventamos jacobinos comedores de homens no deles. O que nos manteve juntos? O interesse próprio, certamente. Tínhamos um inimigo comum na Grã-Bretanha e colaboramos gananciosamente nos males do comércio escravagista. Mas compartilhamos um compromisso com os ideais do Iluminismo e enfrentamos um destino comum como repúblicas em um mundo hostil e brutal.

Mão invisível
As afinidades que ligaram a França e os EUA não foram geradas por meio das artimanhas da história ou da ação de uma mão invisível. Foram feitas por homens e mulheres, em geral a elite educada, mas também pelos soldados de ambos os lados na Primeira Guerra. Franklin e Jefferson atraíram os franceses para nosso lado por meio do tato e da estadística. Lafayette e Condorcet responderam da mesma forma.
Onde está a estadística hoje? Os apelos no Congresso para o boicote dos produtos franceses mostram uma profunda compreensão de uma crise diplomática e da história por trás dela? Será que o presidente francês, o ministro das Relações Exteriores francês, a imprensa francesa e a grande maioria da população francesa têm algo a dizer que mereça ser ouvido nos EUA? Precisamos de discussão, e não do apoio cego de nossos aliados.
A estadística hoje vem dos franceses. Eles ofereceram argumentos racionais contra a corrida para a guerra. Eles indicaram a falta de ligação significativa entre a Al Qaeda e o Iraque, o terreno a ser ganho pela constante inspeção da capacidade militar do Iraque, a viabilidade da contenção, o caráter contraproducente de responder ao fundamentalismo muçulmano com violência e o terrível custo da guerra -econômico, político e sobretudo humano: centenas de milhares de vidas destruídas sem necessidade.
Uma aliança envolve um debate constante. Os franceses estão nos servindo de aliados ao argumentar contra nós e estão ganhando a discussão não pela força maior, mas pelo raciocínio superior.
Qual a nossa resposta? Fracos contra-argumentos nas Nações Unidas, uma pobre estadística no mundo todo e, na frente interna, a estereotipagem hostil de modo já feito desde o século 18. As incompreensões mútuas são maiores que nunca, assim como nossa necessidade de superá-las. Estamos correndo numa supervia para a catástrofe. Precisamos desacelerar, pensar, pegar a saída para Blérancourt e avaliar o lado mais esclarecido das relações franco-americanas, a herança de Condorcet, Lafayette, Franklin e Jefferson.


Robert Darnton é professor de história européia na Universidade Princeton (EUA) e autor de, entre outros, "Edição e Sedição" e "O Iluminismo como Negócio" (Companhia das Letras).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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