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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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Na fronteira entre o jurídico e o político, estado de exceção se tornou uma prática frequente entre as nações contemporâneas, atingindo desde o 3º Reich até o USA Patriot Act

A ZONA MORTA DA LEI

Grigoris Siadimis - 12.fev.2002/Reuters
Manifestantes gregos protestam em Tessalônica contra as condições de tratamento dados a membros da Al Qaeda presos na base norte-americana de Guantánamo


Foi na "Teologia Política" (1922) que Carl Schmitt [1888-1985] estabeleceu a contiguidade essencial do estado de exceção e da soberania. No entanto, ainda que sua célebre definição do soberano como "aquele que decide o estado de exceção" tenha sido muitas vezes comentada, uma verdadeira teoria do estado de exceção continua faltando no direito público. Tanto para os juristas quanto para os historiadores do direito, o problema parece ser mais uma questão de fato do que um autêntico problema jurídico. A definição mesma do termo tornou-se difícil, porque ele se encontra no limite do direito e da política. Com efeito, segundo uma opinião difundida, o estado de exceção se situaria numa "franja ambígua e incerta na interseção do jurídico e do político" e, portanto, constituiria um "ponto de desequilíbrio entre o direito público e o fato político". A tarefa de determinar essas linhas de fronteira é assim ainda mais urgente. Em realidade, se as medidas excepcionais que caracterizam o estado de exceção são o fruto de períodos de crise política e, se, por essa razão, é preciso compreendê-las no terreno da política, e não no terreno jurídico e constitucional, elas se acham na situação paradoxal de serem medidas jurídicas que não podem ser compreendidas de um ponto de vista jurídico, e o estado de exceção apresenta-se então como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal. Por outro lado, se a exceção soberana é o dispositivo original mediante o qual o direito refere-se à vida para incluí-la no gesto mesmo em que ele suspende seu exercício, então uma teoria do estado de exceção é a condição preliminar para compreender a relação que liga o vivo ao direito. Levantar o véu que cobre esse terreno incerto entre o direito público e o fato político, de um lado, e entre a ordem jurídica e a vida, de outro, é a condição para perceber a questão da diferença -ou da suposta diferença- entre o político e o jurídico e entre o direito e a vida. Entre os elementos que tornam difícil a definição do estado de exceção, deve-se contar a relação que ele mantém com a guerra civil, a insurreição e o direito de resistência. Com efeito, a partir do momento em que a guerra civil é o contrário do estado normal, ela tende a confundir-se com o estado de exceção que vem a ser a resposta imediata do Estado diante dos conflitos internos mais graves. Assim, no século 20, pôde-se assistir ao fenômeno paradoxal que foi definido como uma "guerra civil legal". Tome-se o caso do Estado nazista. Assim que Hitler assume o poder (ou melhor, como seria mais exato dizer, assim que o poder lhe é oferecido), ele proclama, em 28 de fevereiro de 1933, o decreto em favor da proteção do povo e do Estado. Esse decreto suspende todos os artigos da Constituição de Weimar que garantiam as liberdades individuais. Ele jamais foi revogado, de modo que se pode, do ponto de vista jurídico, considerar o conjunto do Terceiro Reich como um estado de exceção que durou 12 anos. Nesse sentido, pode-se definir o totalitarismo moderno como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação não apenas dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras da população que parecem não poder ser integradas ao sistema político. Desde então, a criação deliberada de um estado de emergência permanente tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive das democracias. Aliás, não é necessário que o estado de emergência seja declarado no sentido técnico da palavra. Atualmente, diante da progressão contínua do que chegou a ser definido como uma "guerra civil mundial", o estado de exceção tende sempre mais a apresentar-se como o paradigma de governo dominante da política contemporânea. Uma vez que o estado de exceção tornou-se a regra, há o perigo de que essa transformação de uma medida provisória e excepcional em técnica de governo ocasione a perda da distinção tradicional entre as formas de Constituição.


Pode-se definir o totalitarismo moderno como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal


Indeterminação extrema
A significação profunda do estado de exceção como uma estrutura original pela qual o direito inclui em si o vivo por meio de sua própria suspensão se revelou em toda a sua clareza com a "military order" que o presidente dos Estados Unidos decretou em 13 de novembro de 2001. Tratava-se de submeter os não-cidadãos suspeitos de atividades terroristas a jurisdições especiais que incluíam sua "detenção ilimitada" ("indefinite detention") e sua transferência ao controle de comissões militares. O "USA Patriot Act" de 26 de outubro de 2001 já autorizava o "attorney general" [procurador-geral da República] a deter todo estrangeiro ("alien") suspeito de pôr em perigo a segurança nacional. Era preciso, porém, que em sete dias esse estrangeiro fosse expulso -ou então acusado de ter violado a lei de imigração ou cometido outro delito.
A novidade da ordem do presidente Bush foi apagar radicalmente o estatuto jurídico desses indivíduos e de produzir assim entidades que o direito não podia nem classificar nem nomear. Não apenas os talebans capturados no Afeganistão não podem gozar do estatuto de prisioneiros de guerra pela Convenção de Genebra, mas também não correspondem a nenhum caso de imputação fixado pelas leis americanas: nem prisioneiros nem acusados, mas simples "detainees" (detidos), eles se acham submetidos a uma pura soberania de fato, a uma detenção que não é apenas indefinida num sentido temporal, mas também por sua própria natureza, pois ela escapa completamente à lei e a toda forma de controle judiciário. Com o "detainee" de Guantánamo, a vida nua atinge sua indeterminação mais extrema.
A tentativa mais rigorosa para construir uma teoria do estado de exceção é a obra de Carl Schmitt. Encontramo-la, basicamente, em seu livro "A Ditadura" e na "Teologia Política". Como eles, publicados no início dos anos 1920, descrevem um paradigma que não é apenas atual, mas do qual se pode dizer que somente hoje encontrou seu verdadeiro acabamento, é necessário resumir suas teses fundamentais.


O estado de exceção é um espaço onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei; essa força de lei é seguramente um elemento místico


Frank Augstein - 3.mar.2001/Associated Press
Manifestação de neonazistas em Dortmund, na Alemanha


O objetivo dos dois livros é inscrever o estado de exceção num contexto jurídico. Schmitt sabe perfeitamente que o estado de exceção, à medida que instala uma "suspensão da ordem jurídica em seu conjunto", parece "subtrair-se a toda consideração de direito"; mas trata-se precisamente, para ele, de assegurar uma relação, qualquer que seja, entre o estado de exceção e a ordem jurídica: "O estado de exceção distingue-se sempre da anarquia e do caos, e, num sentido jurídico, há nele ainda uma ordem, ainda que não se trate de uma ordem jurídica". Essa articulação é paradoxal, quando se considera que o que deve ser inscrito no interior do direito se revela essencialmente exterior a ele, pois corresponde a nada menos que a suspensão da própria ordem jurídica. Seja qual for o operador dessa inscrição do estado de exceção na ordem jurídica, trata-se de mostrar que a suspensão da lei ainda pertence ao domínio do direito, e não à simples anarquia. Assim o estado de exceção introduz no direito uma zona de anomia que, segundo Schmitt, torna possível a ordenação efetiva do real. Em 1990, [o filósofo] Jacques Derrida pronunciou em Nova York uma conferência intitulada: "Força de Lei -O Fundamento Místico da Autoridade". A conferência, que em realidade consistia na leitura de um ensaio de Benjamin, "Para uma Crítica da Violência", suscitou um amplo debate tanto entre os filósofos quanto entre os juristas. Que ninguém tenha proposto analisar a fórmula aparentemente enigmática que dava título à conferência é não apenas o sinal da separação consumada da cultura filosófica e da cultura jurídica, mas também da decadência desta última. O sintagma "força de lei" apóia-se numa longa tradição do direito romano e medieval, em que significa, de maneira geral, "eficácia, capacidade de obrigar". Mas é somente na época moderna, no contexto da Revolução Francesa, que essa expressão passa a designar o valor supremo dos atos expressos pela assembléia representativa do povo. No artigo 6º da Constituição de 1791, força de lei designa assim o caráter intangível da lei, que o próprio soberano não poderia revogar nem modificar. É porém decisivo que, de um ponto de vista técnico, tanto na doutrina moderna quanto entre os antigos, o sintagma "força de lei" se refira não à lei propriamente, mas aos decretos que têm, como diz justamente a expressão, "força de lei", decretos que o Poder Executivo pode ser autorizado a formular em certos casos, particularmente no caso do estado de exceção. O conceito de força de lei, como termo técnico do direito, define assim uma separação entre a eficácia da lei e sua essência formal, separação pela qual os decretos e as medidas que não são formalmente leis adquirem no entanto sua força. Essa confusão entre os atos do Poder Executivo e os do Legislativo é uma das características essenciais do estado de exceção (o caso-limite é o regime nazista, no qual, como Eichmann não cessava de repetir, "as palavras do Führer têm força de lei"). Mas, de um ponto de vista técnico, a particularidade do estado de exceção não é tanto a confusão dos poderes quanto o isolamento da força de lei da lei. O estado de exceção define um regime da lei no qual a norma vale, mas não se aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o valor de lei adquirem sua força. Isso significa que, no caso-limite, a força de lei flutua como um elemento indeterminado que pode ser reivindicado ora pela autoridade do Estado, ora pela autoridade de uma organização revolucionária. O estado de exceção é um espaço anômico, onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei. Essa força de lei é seguramente um elemento místico, ou melhor, uma ficção pela qual o direito tenta anexar a anomia. Mas como compreender esse elemento místico, por meio do qual a lei sobrevive a seu próprio apagamento e age como uma pura força no estado de exceção?

O espaço vazio de direito
O próprio do estado de exceção aparece claramente no exame de uma medida do direito romano que pode ser considerada como seu verdadeiro arquétipo, o "iustitium".
Assim que o Senado romano ficava ciente de uma situação que parecia ameaçar ou comprometer a República, ele pronunciava um "senatus consultum ultimum" pelo qual pedia aos cônsules (a seus substitutos, a cada cidadão) tomar todas as medidas possíveis para garantir a segurança do Estado. O "senatus consultum" implicava um decreto pelo qual declarava-se o "tumultus", isto é, um estado de emergência causado por uma desordem interior ou uma insurreição, que tinha por consequência a proclamação de um "iustitium".
O termo "iustitium", construído exatamente como "solstitium", significa literalmente "deter, suspender a ius, a ordem jurídica". Os gramáticos romanos explicam assim o termo: "Quando a lei marca um ponto de parada, assim como o sol em seu solstício". Assim, o "iustitium" não era tanto uma suspensão no quadro da administração da Justiça, e sim uma suspensão do direito como tal. Se queremos captar a natureza e a estrutura do estado de exceção, precisamos primeiro compreender o estatuto paradoxal dessa instituição jurídica que consiste simplesmente em produzir um vazio jurídico, em criar um espaço inteiramente privado de "ius". Veja-se o "iustitium" mencionado por Cícero (106-43 a.C) numa de suas "Filípicas".
O exército de Antônio está em marcha contra Roma, e o cônsul Cícero fala no Senado nestes termos: "Julgo necessário declarar o "tumultus", proclamar o "iustitium" e preparar-se para o combate". A tradução convencionada de "iustitium" por "vacância jurídica" não teria aqui nenhum sentido. Ao contrário, o que se trata de suprimir, diante de uma situação de perigo, são as restrições que as leis impõem à ação dos magistrados, isto é, basicamente, a interdição de condenar à morte um cidadão sem recorrer a um julgamento popular.
Diante desse espaço anômico, que vem bruscamente coincidir com o da comunidade política, os autores antigos e modernos parecem oscilar entre duas concepções contraditórias: fazer corresponder o "iustitium" à idéia de uma completa anomia -na qual todo poder e toda estrutura jurídica são abolidos- ou concebê-lo como a plenitude mesma do direito, na qual ele coincide com a totalidade do real.
Donde a questão: qual a natureza dos atos cometidos durante o "iustitium"? A partir do momento em que são cometidos num vazio jurídico, eles deveriam ser considerados como puros fatos, sem a menor conotação jurídica. A questão é importante, pois considera-se aqui a esfera de ação que implica, antes de mais nada, a possibilidade de matar. Assim, os historiadores do direito se perguntam se um magistrado que matasse um cidadão durante o "iustitium" podia ser submetido a um processo por homicídio tão logo o "iustitium" terminasse. Estamos aqui diante de um gênero de ações que parecem exceder a classificação jurídica tradicional entre legislação, execução e transgressão. O magistrado que age durante o "iustitium", assim como o oficial durante o estado de exceção, não cumpre nem transgride a lei -e tampouco está criando uma nova, obviamente. Poder-se-ia dizer, utilizando uma expressão paradoxal, que ele está inexecutando a lei. O estado de exceção não é uma ditadura, mas um espaço vazio de direito. Na Constituição romana, o ditador era uma figura específica de magistrado que recebia seu poder de uma lei votada pelo povo. Ao contrário, o "iustitium", assim como o estado de exceção moderno, não implica a criação de nenhuma magistratura nova, mas unicamente a de uma zona de anomia na qual todas as determinações jurídicas são desativadas. De resto, a despeito de um lugar-comum, nem Mussolini nem Hitler podem ser definidos tecnicamente como ditadores. Hitler, em particular, era o chanceler do Reich, legalmente nomeado pelo presidente. O que caracteriza o regime nazista -e torna também seu modelo tão perigoso- é que ele deixou subsistir a Constituição de Weimar, acrescentando-lhe uma segunda estrutura, juridicamente não-formalizada, que só podia subsistir ao lado da primeira graças à generalização do estado de exceção. Esse espaço vazio de direito parece, por uma razão ou outra, tão essencial à própria ordem jurídica que esta última deve tentar por todos os meios assegurar uma relação com o primeiro, como se, para garantir seu funcionamento, o direito devesse necessariamente manter uma relação com uma anomia. É precisamente nessa perspectiva que devemos ler o debate que opôs, de 1928 a 1940, Walter Benjamin e Carl Schmitt sobre o estado de exceção. Considera-se geralmente que o ponto de partida do debate é a leitura que Benjamin fez da "Teologia Política" em 1923, bem como o conjunto das citações da teoria da soberania de Schmitt em seu livro sobre o "Drama Barroco Alemão". O reconhecimento por Benjamin da influência de Schmitt sobre seu pensamento foi sempre considerado escandaloso. Sem entrar aqui no detalhe da demonstração, creio poder inverter a acusação de escândalo sugerindo que se leia a teoria schmittiana da soberania como uma resposta à crítica que Benjamin faz da violência.

Violência "pura"
Qual é o problema que Benjamin se coloca em sua "Crítica da Violência"? Trata-se, para ele, de estabelecer a possibilidade de uma violência no exterior ou além do direito, de uma violência que possa, enquanto tal, romper a dialética entre a violência que instaura e a que conserva a lei. Essa outra violência, Benjamin chama-a "pura", "divina" ou "revolucionária". O que a lei não pode suportar, o que ela sente como uma ameaça intolerável, é a existência de uma violência que lhe seja exterior, e isso não apenas porque suas finalidades são incompatíveis com os fins da ordem jurídica, mas pelo "simples fato de sua exterioridade".
Compreende-se agora em que sentido a doutrina schmittiana da soberania pode ser considerada uma resposta à crítica de Benjamin. O estado de exceção é precisamente o espaço no qual Schmitt tenta capturar e incorporar a tese de uma violência pura existindo no exterior da lei. Para Schmitt, não existe nada como uma violência pura, não há violência absolutamente exterior ao "nomos", porque, com o estado de exceção, a violência revolucionária já se encontra incluída no direito.
O estado de exceção é portanto o meio inventado por Schmitt para responder à tese de Benjamin de uma violência pura. O documento decisivo do dossiê Benjamin-Schmitt é certamente a oitava das "Teses sobre o Conceito de História": "A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" no qual vivemos é a regra. Devemos chegar a uma concepção da história que esteja à altura desse fato. Perceberemos então claramente que nossa tarefa é produzir o estado de exceção efetivo, e isso melhorará nossa posição na luta contra o fascismo".
Que o estado de exceção tenha doravante se tornado a norma não significa apenas a passagem ao limite de sua indecidibilidade, mas também que ele não é mais capaz de cumprir a função que Schmitt lhe atribuíra. Segundo este, o funcionamento da ordem jurídica repousa em última instância sobre um dispositivo, o estado de exceção, que tem por finalidade tornar aplicável a norma ao suspender de maneira temporária seu exercício.
Mas, se a exceção se torna a regra, o dispositivo não pode mais funcionar, e a teoria schmittiana do estado de exceção é posta em xeque. Nessa perspectiva, a distinção proposta por Benjamin entre um estado de exceção efetivo e um estado de exceção fictício é essencial, embora raramente percebida. Ela já se achava em Schmitt, que a tomara da doutrina jurídica francesa; mas este último, em conformidade à sua crítica da idéia liberal de um Estado de direito, chama fictício um estado de sítio que se pretenda regulado pela lei.

Direito e anomia
Benjamin reformula a oposição para voltá-la contra Schmitt: uma vez cessada qualquer possibilidade de um estado de exceção fictício no qual a exceção e a regra são temporalmente e localmente distintas, o que é doravante efetivo é o estado de exceção no qual vivemos e que não poderíamos mais distinguir da regra. Aqui, toda ficção de um vínculo entre violência e direito desaparece: não há mais que uma zona de anomia em que prevalece uma pura violência sem nenhuma cobertura jurídica.
Percebe-se melhor, desde então, o que está em jogo no debate que opõe Schmitt e Benjamin. A disputa ocorre nessa zona de anomia que para Schmitt deve ser mantida a qualquer preço em relação ao direito, ao passo que para Benjamin ela deve ser, ao contrário, separada e liberada dessa relação. O que está em questão aqui é realmente a relação entre violência e direito, isto é, o estatuto da violência como cifra da ação política. Essa logomaquia sobre a anomia parece ser, para a política ocidental, tão decisiva quanto a "luta de gigantes em torno do ser" que define a metafísica ocidental.
Ao ser puro como questão última da metafísica corresponde a violência pura como questão última do político; à estratégia ontoteológica que pretende se apoderar do ser puro nas malhas do logos, corresponde a estratégia da exceção que deve assegurar a relação entre violência e direito. Tudo se passa assim como se o direito e o logos tivessem necessidade de uma zona anômica ou alógica de suspensão para poderem fundar sua relação com a vida.
A proximidade estrutural entre o direito e a anomia, entre a pura violência e o estado de exceção, possui também, como sucede com frequência, uma figura invertida. Os historiadores, etnólogos e especialistas do folclore estão acostumados a festas anômicas, como as saturnais romanas, o charivari e o Carnaval da Idade Média, que suspendem e invertem as relações jurídicas e sociais que definem a ordem normal. Os patrões se põem a servir seus criados, os homens se vestem e se comportam como animais, os maus costumes e os crimes que seriam punidos pela lei são de repente autorizados.
Mas Karl Meuli [folclorista, 1891-1968] foi o primeiro a sublinhar o vínculo entre essas festas anômicas e as situações de suspensão do direito que caracterizam certas instituições penais arcaicas. Nelas, como no "iustitium", pode-se matar um homem sem processo, destruir sua casa ou apoderar-se de seus bens. Longe de reproduzir um passado mitológico, a desordem do Carnaval e as destruições tumultuosas do Charivari reatualizam uma situação histórica real de anomia. O vínculo ambíguo entre o direito e a anomia é assim plenamente evidenciado: o estado de exceção é transformado numa festa sem restrição, na qual se exibe a violência pura para que se usufrua dela em toda a liberdade.
Assim, o sistema político do Ocidente parece ser uma máquina dupla, fundada sobre a dialética entre dois elementos heterogêneos e, de certo modo, antitéticos: o "nomos" e a anomia, o direito e a violência pura, a lei e as formas de vida, cuja articulação o estado de exceção tem por vocação garantir. Enquanto esses elementos permanecem separados, sua dialética pode funcionar, mas quando eles tendem à indeterminação recíproca e a coincidir num poder único de duas faces, quando o estado de exceção se torna a regra, então o sistema político se transforma num aparelho de morte.
Perguntamo-nos então: por que o "nomos" tem necessidade de maneira tão constitutiva da anomia? Por que a política ocidental deve se pautar por esse vazio interior? Qual é portanto a substância do político, se ele é por essência destinado a esse "vacuum" jurídico? Enquanto não formos capazes de responder a essas questões, não poderemos tampouco responder a esta outra, cujo eco atravessa toda a história da política ocidental: o que é que significa agir politicamente?

Giorgio Agamben é filósofo italiano, autor, entre outros, de "Homo Sacer" (Ed. da UFMG). É professor na Universidade de Verona e, atualmente, professor convidado na Universidade da Califórnia (EUA). Este texto é parte de uma conferência pronunciada em dezembro de 2002 no Centro Roland Barthes da Universidade de Paris 7/Denis Diderot.
Tradução de Paulo Neves.


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