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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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Poder dos Estados modernos se assenta na escalada do conhecimento e na educação dos trabalhadores, e não na força das massas

O NOVO IMPÉRIO

Win McNamee - 6.fev.2002/Reuters
Bandeira dos EUA diante da entrada do Tribunal Federal de Alexandria, no Estado da Virgínia


Formou-se o consenso de que estamos assistindo ao nascimento de um novo império, de uma nova forma de poder. Foram-se os tempos do imperialismo, quando o capital tinha como trampolim os Estados-nação.
Quais as características, então, desse novo poder que tudo percola? Como desenhar seu tipo ideal?
Sempre se reconheceu que, além do poder do Estado, representante de uma totalidade em nome da qual se exerce o monopólio da força legítima, vicejam diversos poderes articulando a vida cotidiana. Mas foi Michel Foucault quem ensinou a ver em certas instituições sociais mecanismos de poder que tanto conformam os indivíduos quanto os dominam. A prisão, a fábrica, o asilo, a universidade, as instituições e técnicas de controle da sexualidade etc. constituem dispositivos, matrizes conformando condutas e pensamentos, tecendo uma rede de micropoderes. Mais do que a capacidade de fazer com que alguém obrigue o outro a agir de acordo com seus desejos e prescrições, mais do que conformar a agenda dos dominados, o micropoder estrutura atitudes, comportamentos e subjetividades, socializando indivíduos a fim de que respeitem fronteiras e hierarquias.


Foucault já mostrara que a vida se tornara objeto do poder, mas para tanto não seria necessário esmiuçar como isso pôde acontecer?


Não me parece, entretanto, que Foucault tenha dado uma explicação satisfatória da relação entre esses poderes e o poder do Estado, principalmente quando se leva em conta que este sempre se apresenta, retomando a formulação de Marx, na condição de comunidade imaginária, em nome da qual decisões são tomadas. O Estado, além de poder soberano, constitui-se como sistema de ordenamentos de justiça, identidade ideal sem fissuras. Nesse ocultamento dos conflitos, o Estado arma-se como dispositivo dispensando o bem e a verdade, mas também se pondo como a verdade de uma população, o espelho no qual ela desenha sua identidade, transcendendo as condutas daqueles que operam em seu nome. Ora, não é porque se aponta o caráter ilusório dessa transcendência que ela desaparece da articulação da vida em sociedade. Daí a necessidade de explicar como o poder estatal, ancorado em condições econômicas, sociais, culturais etc., só pode funcionar se indivíduos falarem em seu nome e de toda uma população. Em suma, qual o caráter "sui generis" dessa dimensão representativa do poder estatal e como este funciona diante da emergência de um novo poder, ao mesmo tempo global e microscópico? Os herdeiros de Foucault igualmente deixaram na sombra essa questão, mas procuraram expandir o conceito de dispositivo para que cobrisse um poder totalizante. Os trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari marcam um passo importante nessa direção. Mais do que uma sociedade disciplinar, cujos paradigmas foram em grande parte retirados do Antigo Regime, a nossa, comentam esses autores, é uma sociedade de controle, onde os mecanismos de comando se entranham de tal modo no corpo social, afetando corpos e cérebros, que terminam por orquestrar uma forma de vida. Foucault já mostrara que a vida se tornara objeto do poder, mas para tanto não seria necessário esmiuçar como isso pôde acontecer? Esse passo foi dado quando Deleuze substituiu o conceito foucaultiano de prazer por aquele de desejo, e, em vez da aceitação imanente do prazer, vê no indivíduo uma máquina desejante.

O pensamento parisiense
O resultado mais abrangente dessa reconceitualização de um poder global parece-me vir a ser o livro "Império", que Michael Hardt e Antonio Negri publicaram em 2000 e que foi traduzido em 2001, no Brasil, pela ed. Record. Trata-se, a meu juízo, de verdadeira suma do pensamento parisiense sobre a crise da modernidade e, por isso mesmo, combinando intuições geniais com sínteses apressadas. Mas vale a pena lê-lo com cuidado, pois nos oferece uma tela onde podemos projetar nossas próprias preocupações, identificá-las e corrigi-las. Não farei dele uma resenha, mas selecionarei alguns pontos que me permitem mensurar a distância que nos separa. Como indica o título, império, o conceito básico, exprime nova forma de poder a atravessar os Estados-nação tradicionais, inclusive os Estados Unidos, a potência dominante. Trata-se de uma espécie de substância jurídico-política que passa a regular trocas econômicas e culturais de modo global, articulando-se como governo do mundo. A nova soberania funda-se agora na construção de caminhos e limites de novos fluxos globais, responsáveis pela construção da própria vida social, na qual o econômico, o político e o cultural cada vez mais se sobrepõem e se completam. Essa produção biopolítica recusa a distinção entre um dentro e um fora, um interior e um exterior, exercendo-se sem fronteiras e desconhecendo sua exterioridade. O aparelho geral de comando do império apresenta três momentos: o primeiro, inclusivo, promete a todos integração universal; o segundo, diferencial, esvazia as diferenças, situando-as no plano da cultura; finalmente, o terceiro, gerencial, propõe-se a administrar e hierarquizar as diferenças numa economia geral de comando. Nesse contexto, a dialética entre as forças produtivas e o sistema de dominação não ocupa mais um local determinado, sendo que as determinações de poder do trabalho (diferença, medida e determinação) se confundem, deixando de ser o objeto de exploração e domínio. Agora o poder se exerce sobre a própria capacidade de produzir em geral. O trabalho vem a ser abstrato graças à cooperação de cérebros e mãos, mentes e corpos, que por sua vez exclui e difunde o trabalho ativo; é o desejo e o esforço de miríades de operários móveis e flexíveis e também a energia intelectual e linguística, construção comunicativa de uma multidão de operários intelectuais e afetivos (pág. 229). Essa dominação pós-moderna do trabalho, a virtualidade de sua liberação estão ligadas ao fato de que a natureza foi de tal modo transformada pela técnica capitalista que se tornou ela mesma rede comunicativa de símbolos.

Objeto exterior
É quase consenso essa perda das determinações do trabalho, mas o desafio é entender seu sentido. Uma fenomenologia como a proposta ignora uma característica do processo de trabalho que, como tenho tentado demonstrar, foi tanto um dos pilares como a maldição do conceito marxista de relação social de produção: o processo de trabalho se finaliza num objeto que passa a fazer parte do mundo cotidiano, de sorte que só pode ser consumido, individual ou produtivamente, se um terceiro permitir que isso aconteça, ainda que o faça por sua indiferença. Noutras palavras, a reflexão do processo de trabalho cria um objeto exterior a ela que só pode ser recuperado por ela se um terceiro exercer um poder positivo ou negativo para que isso ocorra. Em resumo, não é possível socializar trabalhos sem alguma forma de propriedade, privada ou coletiva. Isso se evidencia até mesmo nas formas mais imateriais de trabalho: o escritor, ao ter uma idéia genial, ou um pesquisador, ao obter um resultado extraordinário, precisam conservar seu achado e, para isso, são forçados a escrevê-lo, gravá-lo etc. Isso não cria a possibilidade do ladrão de idéias? É ilusão hegeliana abolir, no processo produtivo, o contraste entre o fora e o dentro. Por mais que os pós-modernos parisienses lutem contra a dialética hegeliana, eles caem na sua malha continente, pois, ao fazerem com que a identidade sempre escorregue para a diferença, o jogo de ambos, sem exterioridade, se transforma num discurso totalizante. Não é por isso que a nova definição de império namora com o Espírito Absoluto?

Legião de fiandeiras
Somente porque se esquecem desse momento de exterioridade fugidia, mas intransponível, sustentado na coisa pelo trabalho efetuado, podem fazer da propriedade uma questão basicamente jurídica, distante de seu fundamento nas relações sociais de produção. Somente por isso podem analisar essas relações no nível do desejo, desprezando assim o terceiro personagem sempre implícito nas relações de trabalho. A relação dual entre a máquina desejante e a coisa, ao descartar esse terceiro, fica cega para as determinações adquiridas por essa coisa como produto do trabalho social, notadamente sua transformação em símbolo.
É sintomático que a economia clássica tenha estudado como um produto se transforma em dinheiro e que os modelos da economia contemporânea sempre estejam se havendo com a idéia de valor (tratei dessa questão em "Certa Herança Marxista", Companhia das Letras, 2000).


Em resumo, não é possível socializar trabalhos sem alguma forma de propriedade, privada ou coletiva


A transformação da coisa trabalhada em elemento de um objeto técnico é o primeiro momento de sua conversão em símbolo. Lembremos que um objeto de uso, uma coisa-à-mão, isto é, conformada pelo trabalho para exercer determinada finalidade, já consiste numa regra segundo a qual as condutas se tornam adequadas ou inadequadas para seu bom funcionamento. Os objetos de uso contemporâneo, ademais, se converteram em fabulosos objetos técnicos, coisas ajustadas entre si segundo algumas propriedades abstraídas pelo conhecimento e pela técnica, objetos que só podem funcionar integrados em sistemas, redes interdependentes. O telefone, a televisão, o computador, a internet são alguns exemplos dessa fantástica segunda natureza, na dependência da qual passamos a viver.
Mas, se esses dispositivos conformando condutas, mentes e subjetividades são comunicativos e simbólicos, é porque um exército de trabalhadores está repondo e conformando seus elementos materiais. É como se uma legião de fiandeiras, escondidas atrás de uma tapeçaria, estivesse recompondo os fios gastos pelos passos do tempo. Um sistema técnico pode ser anulado por outro, mas esse jogo, que se reporta a uma natureza científico-tecnológica como seus meios de produção, abre fissuras por onde emerge a natureza bruta. Cada passo que venha a aperfeiçoar um sistema tecnológico cria simultaneamente um ponto nevrálgico, aquele em que as peças, ao se ajustarem por meio de suas propriedades abstratas e sutilíssimas, ficam expostas aos efeitos de um pedaço de matéria estranho ao processo. Um grão de areia, colocado num lugar apropriado, não emperraria um computador? Essa determinação recíproca entre o aumento de eficácia de um sistema técnico, por conseguinte de seu poder, e o aumento de sua fragilidade, revela como um poder sofisticado gera de imediato um contrapoder bruto. Contra o novo império, travejado pela ciência e pela tecnologia, a brutalidade do terror não se apresentaria como a força mais eficaz, o grão de areia que tudo emperra? Sob esse aspecto, o ataque às torres gêmeas é paradigmático, pois toda a sofisticação dos planos e aparelhos utilizados pelos terroristas só se tornou eficaz pela massa de um avião a chocar-se com uma estrutura de ferro, cimento e tijolos.

Política como sua própria negação
Hardt e Negri tocam num ponto essencial quando afirmam que a origem da diferenciação e acumulação da riqueza social se encontra atualmente na capacidade de produzir. Mas se enganam, a meu ver, quando desligam essa capacidade de um monopólio. Essa capacidade não se estrutura socialmente no nível do desejo, mas a partir do simples fato de que o grande capital tem, hoje em dia, o monopólio da invenção científica e tecnológica. Por certo a invenção de uma teoria pode ser feita por um grupo reduzido de pesquisadores competentes. Mas esse conhecimento só se confirma e se perfaz num objeto técnico depois de consumir enormes investimentos e mobilizar caros e sofisticados laboratórios.


Não é a partir dessa plataforma mais profunda que os ricos se tornam cada vez mais ricos, e, os pobres, mais pobres?


Claro Cortes -13.jan.2003/Reuters
Operários chineses da construção civil erguem prédio em Xangai


Se o conhecimento, de um lado, nunca esteve tão disponível, o novo conhecimento, de outro, torna-se privilégio de algumas grandes empresas que o mobilizam tão-somente em vista de seus próprios interesses. Daí continuar valendo a definição do capital como controle sobre o trabalho alheio. Se de fato as diferentes determinações do processo de trabalho se esvanecem, o desafio é explicar como esse fenômeno se funda numa forma muito peculiar de propriedade, mais do que nas vicissitudes do desejo.
O monopólio da invenção científica e tecnológica não se exerce por meio de barreiras que o outro não pode atravessar, como o monopólio da terra ou da fábrica. Ele se exerce apropriando-se de um processo em que os meios de produção respondem a novas informações, e os agentes, embora substituíveis, devem estar preparados para exercer determinadas funções. Daí a importância da base tecnológica para gerar a riqueza, e da qualificação, para estruturar o mercado de trabalho. O poder do novo império se assenta na escalada do conhecimento e na educação dos trabalhadores. Não é a partir dessa plataforma mais profunda que os ricos se tornam cada vez mais ricos, e, os pobres, mais pobres?
Dessas determinações do novo poder seguem-se as determinações do contrapoder: tem pouco efeito ocupar terras ou fábricas, é preciso enfiar uma cunha no modo pelo qual se exerce a preparação dos meios de produção e dos agentes que os movem.
Isso pode ser feito positivamente por uma política adequada, ou negativamente, pelo terror e a burocratização dos aparelhos do Estado. Os sujeitos do futuro não são os pobres, aqueles que "vivem o ser efetivo" tendo se transformado numa figura da produção (pág. 175), pois a desqualificação para o trabalho os exclui do sistema produtivo contemporâneo. O desafio é como prepará-los para que não caiam nas malhas do terror, que destrói sem construir.
É interessante notar que Hardt e Negri continuam a pensar a política como a negação dela, como um movimento de base espontânea a abolir de modo imanente o poder, em vez de conformá-lo e ordená-lo por fora.
Acusando de liberal toda política que se ponha além dessa imanência revolucionária, só podem ignorar o papel do Estado no exercício do novo poder. Se o Estado-nacional mingua quando se cria uma nova soberania sem fronteiras, não é por isso que deixa de desempenhar o papel fundamental de qualificar e proteger a força de trabalho de uma população como um todo, assim como de assegurar seu nível de vida pelo emprego justo dos fundos públicos.
Por certo uma grande empresa prepara seus próprios trabalhadores, mas com isso ela apenas continua aumentando a distância entre os cultos e os incultos, os mais ricos e os mais pobres. É outra a força do Estado, ao fazer valer a ilusão de que essa população é comunidade, identidade na qual todos possuem direitos iguais, particularmente o direito à educação e de viver dignamente. A ilusão se transforma em força social à medida que vem a ser política, isto é, jogo entre representantes de forças e interesses antagônicos, que julgam e atuam, entretanto, em nome do todo. O futuro não pertence de maneira imanente aos pobres, mas esses poderão vir a ser menos pobres, e até mesmo modestamente ricos, se o jogo da política for capaz de impor a disciplina da justiça, reforçando aqueles dispositivos que permitem conviver com diferenças, desde que o crescimento da riqueza social venha a beneficiar os menos preparados. Confiar nas forças imanentes das massas me parece uma ilusão perigosa.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Marx - Vida e Obra (ed. L&PM). Escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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