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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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+ história

Morto há 50 anos, Stálin desprezou o dogma comunista pela eficiência a todo custo

O FARAÓ PRAGMÁTICO

por Tzvetan Todorov

Em março de 1953, eu morava em Sófia [capital da Bulgária], acabava de completar 14 anos e de entrar no liceu. No meu diário íntimo da época, escrevia (em búlgaro): "Quatro de março de 1953. Hoje foi anunciado pelo rádio: Stálin morreu! Hemorragia cerebral. Morte certa. Eu imagino o que se seguirá. Certamente uma nova guerra" [a morte seria anunciada oficialmente em 5/3". Stálin era para nós -e esse "nós" incluía muitos adultos- um ser quase sobrenatural, um faraó, que não poderia morrer como um simples mortal e que, além do mais, assegurava nossa proteção contra as ameaças externas, identificadas nessa época aos imperialistas anglo-americanos. Uma vez Stálin morto e nosso campo privado de seu defensor, eles iriam certamente nos atacar e nos submeter... As crianças e os homens do povo não eram os únicos a crer em Stálin. Pensemos em uma pessoa tão brilhante e honesta como o grande poeta russo Bóris Pasternak. Até o começo dos processos de Moscou, em 1936, admite ele, uma ligação misteriosa o prende a este ser que é mais do que um homem, que é como "um ato do tamanho do globo terrestre". É que, para Pasternak, a Revolução Russa cumpre um desígnio sagrado, o da marcha do universo; Stálin é por sua vez uma encarnação da história, do desenrolar inevitável do tempo. E mesmo 20 anos mais tarde, no momento do "degelo" promovido por Kruschóv, embora não ignorasse mais nada dos crimes de Stálin, Pasternak hesita em seu julgamento: o antigo chefe era por certo um assassino, mas, ao mesmo tempo, ele como que participava de elementos libertados, era animado de élans sublimes. Já o novo chefe era um porco que substituiu o culto da personalidade pelo culto do filistinismo. E o poeta se descobre pronto a preferir, ao reinado da mediocridade que se esboçava ao seu redor, o assassino grandioso que viveu no diapasão do destino universal...

Sedução
Nos nossos dias, a condenação de Stálin é, ao contrário, tão unânime que ela se arrisca a tornar ininteligível a sedução e o sucesso do personagem como homem político. Quando tentamos compreender, a satanização é um recurso medíocre. Ora, nós dispomos, desde 1997, de um documento excepcional, que pode nos ajudar nessa tarefa. Trata-se do "Diário" redigido entre 1933 e 1949 por Gueorgui Dimitrov, dirigente comunista búlgaro, mas também "herói" do processo de Leipzig em 1933 (ele havia refutado a acusação de estar por trás do incêndio do Reichstag, a sede do Parlamento alemão). Refugiado em Moscou, Dimitrov estará, de 1934 a 1943, à frente do Komintern [a Terceira Internacional Comunista" e, a esse título, frequentará regularmente o mestre do Kremlin. Seu "Diário" permite um olhar único sobre Stálin, tal como ele se mostra no dia-a-dia, diante de seus colaboradores mais próximos. O que parece o retrato desenhado por esse confidente? Para dizer a verdade, as características mais salientes do ditador soviético não lhe pertencem propriamente: nós as encontramos já em Lênin e podemos supor sem risco de engano que, se Trótski tivesse prevalecido sobre Stálin, ele não teria agido diferentemente. É a função que forja o homem, é a lógica mesma do totalitarismo que dita a conduta de seu chefe. O traço mais espetacular, e o mais conhecido, mas que, infelizmente, não lhe é próprio, é a desenvoltura com a qual Stálin pratica o terror. Ele não hesita jamais em dizer diante de Dimitrov (e este não hesita em transcrevê-lo no seu "Diário", embora não ignore nada da "curiosidade" das "tchekas" [comissões extraordinárias que faziam parte da polícia política do regime soviético") que era preciso ser impiedoso com os "inimigos", qualquer que seja o número deles e, de outro lado, seu mérito anterior. "Nós anularemos todos esses inimigos, mesmo que sejam velhos bolcheviques, nós anularemos todos os seus parentes, toda a sua família. Nós anularemos todos os que, por suas ações e pensamentos (sim, pensamentos)... resistam a nós", declara ele em 7 de novembro de 1937. Alguns dias depois, ele acrescenta que é preciso computar entre os inimigos todos os que "não suportam a coletivização, uma vez que seria preciso descascar o corpo do "kulak" [rótulo aplicado, na ex-URSS, ao "camponês rico", visto como resquício da mentalidade burguesa e ameaça à revolução"". Em janeiro de 1940, no momento da conquista da Finlândia, disseram-lhe que os adversários eram em número de 150 mil; ele reage tranquilamente: "Nós matamos 60 mil, é preciso matar os outros também, e o caso estará encerrado. Não podemos poupar senão as crianças e os velhos". Uma vez que o terror é extremo, o objetivo perseguido é atingido sem obstáculos. Mas o que choca mais nas transcrições de Dimitrov não é a violência, consubstancial ao projeto revolucionário. O que é surpreendente é a ausência de qualquer referência ao dogma comunista. As decisões de Stálin são tomadas em razão não de princípios ideológicos, mas de objetivos a atingir. Para escolher um curso de ação, é preciso antes de tudo se informar e, em seguida, se libertar dos sonhos do passado: "Não se apegue ao que foi ontem. Tenha em mente rigorosamente as novas condições". Não era preciso introduzir sovietes na China, contrariamente ao que se fez na Rússia em 1917. Nem desempenhar um papel de protagonista na Espanha, enquanto durasse a guerra civil. Deve-se encorajar, via de regra, a substituição de quadros por novos, sem referências ao passado. A improvisação, a adaptação às circunstâncias devem desgarrá-lo de toda conformidade para com o dogma: Stálin leva ao extremo a escolha dos modernos de se emancipar das tradições, ele é um aluno paroxístico de Maquiavel, que não deixa restar mais nenhuma ligação entre estratégia e ideologia. A assinatura do pacto germano-soviético, em agosto de 1939, não obedeceu a outra lógica. Stálin não se pergunta em nenhum momento se essa aliança era conforme ao dogma comunista; importa apenas saber se ela lhe é útil -e ele crê que sim. "Nós podemos manipular, sustentando um país contra um outro, para que eles se estraçalhem um ao outro." O defeito que ele vê em Hitler não é o de ser racista, mas o de obedecer a sua ideologia, em vez de se ocupar unicamente de seu interesse; comparado a Hitler, Stálin é um puro pragmático. O vício do racismo, por sua vez, é o de que nem todos podem reclamá-lo: ele condena as "raças inferiores" à resistência.

O poder pelo poder
Essa ideologia é má não porque ela é inumana, mas porque ela não pode assegurar uma vitória durável. O poder, segundo Stálin, não deve ser posto a serviço de uma idéia; são as idéias que servirão ao poder -e as melhores idéias são as que lhe são as mais úteis. Ainda mais, os dois se fundem: o comunismo se confunde doravante com a busca do poder pelo poder.
Essa indiferença ao conteúdo da doutrina comunista levanta porém um perigo do qual Stálin é consciente: as massas necessitam de paixões coletivas, elas não podem vibrar à vista da mera eficácia. É por isso que, muito rapidamente, ele convoca uma outra paixão bem conhecida: o amor à pátria. Promotor do nacional-comunismo, Stálin explica que os bolcheviques são os verdadeiros continuadores dos czares da Rússia, fundadores desse imenso Estado; os ataques contra a Rússia são piores que os ataques contra o comunismo.
A Dimitrov, perplexo, Stálin explica que, na nova conjuntura, o Komintern iria se auto-eliminar. No dia da invasão hitlerista (22/6/1941), Stálin -que, diga-se, não perde nunca seu sangue-frio- exige do militante internacionalista que deixe de lado a retórica comunista: "Não ponha mais a questão da revolução socialista. O povo soviético faz uma guerra patriótica contra a Alemanha fascista".
Ao longo dos anos, a estratégia de Stálin provará sua eficácia duvidosa. Digno herdeiro de Lênin, ele não terá, porém, sucessor da mesma cepa e, um mês após sua morte, apareceriam as primeiras fissuras do império totalitário.


Tzvetan Todorov é diretor de pesquisa do CNRS (Centro Nacional da Pesquisa Científica), na França, e autor de, entre outros, "Memória do Mal, Tentação do Bem" (ed. Arx). Este texto foi originalmente publicado no "Le Monde".
Tradução de Caio Caramico Soares.


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